A leitura pode ser definida como uma maneira de processamento da linguagem feita através da decodificação e interpretação de símbolos, individualmente, para a extração de significados. Apesar de existir desde a época das pinturas rupestres em cavernas, a leitura passou a ser mais extensivamente difundida no século XV com a criação da prensa por Johannes Gutenberg, que permitiu a impressão em massa de livros e tirou o quase monopólio da leitura dos olhos dos ricos e da Igreja. Entretanto, seis séculos depois e com mais ferramentas para se ler do que nunca, o índice de leitura do Brasil não é dos maiores.
Panorama da leitura no país
Em 2020, o Instituto Pró-Livro e o Itaú Cultural divulgaram a quinta edição da “Retratos da leitura no Brasil”, uma pesquisa feita pelo Ibope com dados de 2019 sobre o índice de leitura no país. Esta pesquisa define como leitora a pessoa que leu, inteiro ou em partes, pelo menos um livro nos últimos três meses. Dessa definição, podemos tirar duas conclusões: a primeira é a de que não é preciso muito para ser um leitor, já que ler ao menos um trecho de um livro já o caracteriza como tal; segundo, a leitura de textos, notícias, artigos e revistas não é considerada. Ainda, a pesquisa baseia-se somente na leitura de livros, definição que também continuarei utilizando nesta reportagem.
Sobre esta definição, Sandra Guardini Vasconcelos, professora de Literatura Inglesa e Comparada e Coordenadora do Laboratório de Estudos do Romance da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), aponta que um leitor é alguém que lê todos os dias, independentemente do tipo de mídia. Assim, uma pessoa que lê jornais online, por exemplo, já seria uma pessoa leitora, não dependendo da definição de ler um livro ou partes nos últimos meses. “Acho que a leitura é um hábito que você cria, que você forma e quem tem esse hábito não deixa para ler de maneira tão lenta e tão esporádica”.
Ainda segundo a pesquisa “Retratos”, 52% das 193 milhões de pessoas em 2019 se considerava leitora, e 48% não. Em 2015, o percentual de leitores era de 56% e o de não leitores, 44%. Em quatro anos, dessa forma, houve uma redução importante da parcela de leitores no país, principalmente nas regiões centro-oeste, sudeste e nordeste, a partir dos 11 anos de idade. Além disso, a média de livros lidos pela população foi de 4,95, sendo 2,55 inteiros e 2,41 em partes.
Dentre os motivos pelos quais não leram mais, a maioria dos entrevistados (43%) registrou que a principal razão foi falta de tempo. Obrigações como escola, faculdade, trabalho e tempo no trânsito com certeza contribuem para o sentimento de que há outras obrigações mais importantes a serem realizadas em detrimento da leitura. Entretanto, 23% dos entrevistados afirmaram que não gostariam de ter lido mais, 9% que preferem outras atividades e que não possuem paciência para ler. Em um país em que a educação básica não é prioridade do governo e que as pessoas não entendem os benefícios da leitura, esses índices espantam, mas não surpreendem.
De acordo com dados de 2018 do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) ― um estudo realizado pela OCDE em 79 países que mede o nível ensino e aprendizagem nas áreas de leitura, matemática e ciência ― a média de proficiência dos estudantes brasileiros em leitura foi de 413 de 550 pontos, 74 pontos abaixo da média dos países da OCDE (487). O Brasil ficou atrás de países como Chile, Uruguai, Costa Rica e México.
O índice de leitura mede o “compreender, usar, avaliar, refletir sobre e envolver-se com textos, a fim de alcançar um objetivo, desenvolver seu conhecimento e seu potencial, e participar da sociedade”. Os resultados obtidos indicam que os alunos brasileiros estão abaixo da média nos quesitos ler fluentemente, localizar informações, compreender e avaliar e refletir.
A mesma pesquisa ainda utiliza uma escala de proficiência em leitura, sendo ela 1c, 1b, 1a, 2, 3, 4, 5 e 6, em ordem crescente. O Brasil possuía 5% de estudantes no nível 1c, 17% no 1b, 26% no 1a, 24% no 2, 16% no 3, 7% no 4, 1% no 5 e 0,2% no 6. Esses percentuais mostram que a maioria dos estudantes brasileiros possuíam um nível de leitura que compreende o entendimento de frases curtas, simples e com significado literal e explícito.
Os dois últimos níveis de proficiência (5 e 6), nos quais o Brasil possui os piores índices, são aqueles relacionados à compreensão de textos longos, com interpretação indireta, lidando com conceitos abstratos. Analisando esse índice com o nível de analfabetismo em 2019 calculado em 6,6% pelo IBGE e com o fato de que aproximadamente metade da população brasileira no mesmo período não concluiu o ensino médio, temos um cenário em que a leitura não consegue ser incentivada quando faltam requisitos mais básicos como acesso à educação.
Segundo a pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, a penetração de livros, um índice que calcula a leitura de pelo menos um livro inteiro ou em partes, decaiu de 56% para 52% da população na comparação entre 2015 e 2019. A leitura de livros indicados pela escola já possuía o baixo percentual de 16% em 2015, decaindo para 13%. A quantidade de livros lidos por indicação da escola foi de 0,54, sendo 0,46 de livros didáticos e 0,28 de literatura. Esses números, em conjunto com os do Pisa, corroboram com a ideia de que a escola vem falhando no incentivo à leitura.
Em 2019, conforme o Portal da Transparência, os gastos públicos em educação somaram R$ 94 bilhões, do orçamento total de R$ 118 bilhões, sendo apenas 17% desse valor destinado à educação básica. A fim de comparação, este valor é menor que o repassado para a categoria “outros” (21%) e a junção entre serviços financeiros (9%) e assistência hospitalar (9%).
O índice já descrito de que 23% dos entrevistados afirmaram que não gostariam de terem lido mais encontra respaldo nas respostas de não leitores, na mesma pesquisa, do porquê não leram no período: 28% afirmou que não gosta de ler, 13% que não possui paciência, 10% que prefere outras atividades, 9% que possui dificuldade para ler e 20% que não sabe ler. Para além de toda a problemática sobre o nível de educação e alfabetização no país, compreende-se que o hábito da leitura não é estimulado nem na escola, nem em casa, nem por amigos e conhecidos.
O incentivo à leitura
Sobre a falta de incentivo, 60% dos entrevistados respondeu que os pais nunca leram para eles, nem na infância, e 61% afirmou que nunca ganhou um livro de presente. As informações do Pisa apontam que alunos provenientes de famílias com melhores condições de educabilidade e que propiciam um ambiente favorável ao desenvolvimento de habilidades cognitivas possuem, em média, melhor resultado na avaliação. Assim, a pesquisa conclui que “incentivar o hábito, a curiosidade e o prazer pela leitura tem efeitos positivos no processo de aprendizagem”.
A professora da rede pública de ensino fundamental Adriana Paula de Souza comenta que dentro da sala de aula, principalmente a nível de alfabetização, é possível a realização de atividades simples para o incentivo e manutenção da leitura. “Costumo fazer rodas de leitura, com a retirada de livros na biblioteca, uma vez por semana. Chamo a criança para ler o livro escolhido na semana e vamos comentando sobre a história e os personagens.”
Dessa forma, dentre os responsáveis pelos baixos índices de leitura no país estão o problema com a educação brasileira, de uma forma geral, e a falta de incentivo por todos os setores da sociedade, que se traduz em um não entendimento dos benefícios da leitura e da visão de que não se trata de algo prazeroso. Adriana menciona que crianças que são motivadas a ler em casa se interessam mais pelas atividades de leitura que são praticadas dentro da sala de aula. Ainda, a professora complementa que tenta fazer com que a hora da leitura seja divertida e, assim, “as crianças não encaram como obrigação, porque já falo que vão pegar um livro na biblioteca porque vão gostar da historinha e não por serem obrigados.”
A professora Sandra acrescenta que, para além da falta de incentivo, um fator importante para os baixos índices de leitura no país é o financeiro. “Uma família de menor poder aquisitivo tem que fazer escolhas, então não vai gastar dinheiro na compra de livros em detrimento da compra de bens mais necessários para a sobrevivência. Você vai esperar que essas pessoas tenham tempo, dinheiro e força para ler?” Assim, Sandra também complementa que a desigualdade é um fator que deve ser levado em conta no índice de leitura.
Esta percepção é refletida nos dados da pesquisa “Retratos”, que mostram que 7% dos leitores não leram mais por acharem os livros caros. Além disso, ela relaciona as questões de não gostar de ler e preferir realizar outras atividades em seu tempo livre. Assistir televisão (67%), usar a internet (66%), usar WhatsApp e outras redes (62% e 44%, respectivamente) e assistir filmes (51%), reflete uma sociedade que não estimula a leitura desde a infância, de modo que as pessoas não se acostumam com essa atividade e posteriormente a veem como uma obrigação. “Entre você ver um vídeo, que você se diverte em dois minutos e ler um livro que vai demorar uma semana para você chegar até ao final e ter a sensação de que concluiu aquela atividade, a pessoa vai optar pelo consumo imediato. É um fator que acaba impactando na falta de interesse”, conclui Sandra.
Por que ler?
Segundo Drauzio Varella, a leitura é o mais completo dos exercícios intelectuais, estimulando diversas áreas do cérebro e proporcionando aumento da cultura geral. Em texto divulgado em blog da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, diversos professores, diversos professores e pesquisadores comentam que o hábito da leitura envolve imaginação, mentalização e aprendizagem, funcionando como um exercício para o cérebro, protegendo-o de doenças degenerativas e reduzindo o estresse.
Além disso, ler ajuda na expansão do vocabulário, no desenvolvimento do raciocínio, auxilia na criatividade, na memória e na construção de senso crítico. Para crianças, o incentivo à leitura é ainda mais fundamental, já que seus cérebros em desenvolvimento fazem conexões com a linguagem, memória e atenção.
Segundo a Psychology Today, a leitura de ficção proporciona um aumento de empatia no leitor ao apresentar diferentes mundos e pontos de vista. Dessa forma, os livros da saga Harry Potter podem ser os responsáveis por tornar uma geração menos preconceituosa, já que a luta contra a sociedade buscada por Voldemort é uma metáfora para a luta contra a discriminação no mundo real.
“A leitura estimula a imaginação, a concentração, a criatividade, então estou sempre pedindo para as crianças desenharem o personagem principal da história, contar um trecho da história que mais gostou”, diz Adriana. A professora complementa: ”Isso também melhora o vocabulário da criança, e a comunicação dela com outras pessoas. Por exemplo, dentro da sala de aula eu já tive crianças bem tímidas e que se soltaram bastante com as atividades de leitura, principalmente quando chamadas para ler na frente do resto da turma”.
Para Sandra, ficar no celular, na TV ou nas redes sociais são atividades passivas, que não estimulam o cérebro. Segundo ela, “a tecnologia não exige concentração, pois tudo é muito rápido, em coisa de um minuto está tudo diferente. Você começa a ver uma coisa [nas redes sociais] e nem sabe como chegou nela. Você só fica ali passivamente consumindo aquele conteúdo.” Isso muda quando se trata da leitura. “Mesmo a leitura mais simples e objetiva, ou a leitura de entretenimento, por mais leve que seja, exige que você preste atenção.”
Começar a ler quando não se tem o hábito pode ser difícil, principalmente depois de adulto. Dentre todos os motivos para não ler (falta de tempo, cansaço, falta de concentração, dentre outros), é possível iniciar o hábito. Começar devagar, com um livro por vez sobre um assunto que já goste, é o primeiro passo. Criar o hábito, ou seja, ler um pouco por dia, todos os dias, é o aconselhável para que a prática não seja abandonada com o tempo. Ter um lugar tranquilo e silencioso e em um momento adequado do dia são fatores que contribuem para uma maior concentração e, possivelmente, para criar um certo gosto pela leitura.
Incentivo à leitura no Brasil
Ainda segundo a “Retratos”, 7% dos leitores afirmaram que não leram mais por conta do preço dos livros e 5% porque não possuem dinheiro para comprá-los. O fechamento de livrarias a partir de 2018 pode ser um indicativo de que pessoas possuem outras prioridades de consumo. Assim, encontrar sites que disponibilizam livros gratuitos é uma excelente forma de ler sem gastar dinheiro. Ainda, encontrar a biblioteca pública mais próxima continua sendo uma opção incrível para quem quer ler e, de quebra, conhecer novos lugares, com um imenso catálogo de títulos à disposição.
Conversar com alguém sobre suas leituras pode incentivar a ler mais e ajudar no entendimento da obra, já que cada pessoa tem a sua visão do que a história quer passar. Nesse sentido, o Youtube e as redes sociais contam com diversos canais e influenciadores de literatura. Neles, é possível acompanhar vídeos de resenhas e indicação de livros, bem como fazer parte de leituras conjuntas e clubes do livro. Ter uma companhia, mesmo que virtual, pode fornecer o incentivo necessário para conhecer um livro novo ou terminar aquele que está no fundo do armário.
Além disso, diversos canais são especializados em explicar obras e contribuir com leituras de apoio, principalmente para livros de literatura, o que pode ajudar na compreensão e facilitar o processo. A booktuber e dona do Instagram literário Lido Lendo, Isabela Vichi, diz que com seu trabalho nas redes muita gente descobriu o gosto pela literatura. “Muitas pessoas que nunca tinha lido nada ou que liam pouco, dois ou três livros por ano, e que passaram a acompanhar meus vídeos, Instagram ou meus projetos de leitura, acabaram por descobrir um universo novo, um gosto pela literatura, descobriram que gostam e conseguem ler”, explica.
Esse trabalho de incentivo à leitura através da internet surgiu quando Isa encontrou outras pessoas que também falavam sobre livros através de vídeos e posts. Por ter uma necessidade de falar sobre suas leituras com alguém, ela criou um canal e começou a postar seus vídeos, criando uma rede de colegas leitores que compartilham impressões. “Foi maravilhoso, porque eu achei que ia falar sem ter ninguém para ouvir e de repente estava falando para muita gente com os mesmos interesses que eu.”
Ela complementa que em suas redes gosta de mostrar o dia o dia e o lado real da leitura: “Eu tento tirar o livro do pedestal; eu coloco o livro de cara a cara com a gente, porque eu sou uma leitora comum, não tenho formação na área de literária, e falo de livros para pessoas comuns, para leitores também. Então, muita gente veio me falar que começou a ler por minha causa, e isso é muito legal.”
Nos últimos dois anos, com o surgimento da pandemia e o consequente fechamento de escolas e universidades, jovens do mundo todo começaram a estudar por conta própria. Com isso, alguns deles acabaram criando um movimento cultural dedicado à valorização do estudo das artes, das línguas e da leitura. Como estética, a Dark Academia tem em grande conta o gosto por música clássica e roupas que lembram o estilo universitário dos anos 1940. Como estilo de vida, ela se propõe a incentivar os jovens a cultivar uma vida de leituras e obtenção de conhecimento, seja pessoal ou acadêmico, com indicação de livros, filmes, músicas e passeios culturais.
Este estilo de vida, que foi criado e espalhado pelas redes sociais, pode ser a porta de entrada para o mundo de leitura de jovens que o conhecem através das mídias. Em seu instagram, Isa Vichi organiza leituras conjuntas e aponta que projetos como esse, bem como a organização de clubes de leitura, tornam o ato de ler mais interessante. “A gente coloca várias pessoas para ler o mesmo livro ao mesmo tempo e depois conversa sobre ele. Vemos as perspectivas de cada um e as pessoas mais tímidas, ou que não gostaram do livro, vão se sentir acolhidas porque vão perceber que teve mais gente que não gostou do livro”.
Procurar companhia online para falar sobre suas experiências literárias também pode ajudar a manter o hábito e até mesmo ajudar a conhecer novos autores e novos gêneros literários. Isa Vichi lembra que quando fez um projeto de leitura conjunta de Dostoievski muitas pessoas a procuraram para dizer que achavam que nunca conseguiriam ler literatura russa.
“A partir disso, [os leitores] vão descobrindo outros autores, vão sempre querendo mais coisas. Eu acho incrível as pessoas que se propõem a falar de livros na internet, porque têm um impacto na criação de novos leitores, bem como em incentivar as pessoas a descobrirem novos caminhos de literatura”. Além disso, ela complementa que isso ajuda os próprios criadores de conteúdo a saírem de suas zonas de conforto ao procurarem ler coisas diferentes.
Diversas instituições se propõem a ajudar a melhorar os índices de leitura no país ao receberem e repassarem livros para bibliotecas comunitárias. Dentre elas, é possível citar o trabalho da Biblioteca Nacional, do Exército da Salvação e de projetos sociais e ONGs, principalmente através de coletas gratuitas de livros em casa. Dessa forma, o compromisso de incentivar a leitura é reafirmado não apenas em casa, pela escola ou pelos criadores de conteúdo digital, mas também por diversas pessoas ao redor do país que se unem para levar livros a todo o Brasil.