Por Samantha Prado (sampradogp@gmail.com)
Meu nascimento é separado do das minhas irmãs por dois anos e oito meses. 120 e um anos separam o princípio da luta sufragista no Reino Unido dos protestos pré eleitorais das mulheres contra Bolsonaro. 350 anos separam as histórias de mulheres queimadas nas fogueiras da inquisição e mulheres que queimaram sutiãs em público nos Estados Unidos. Por anos tenho me perguntado o real impacto do reconhecimento que a existência feminina como um ato político – e seus demais desdobramentos – causam na vida e no crescimento das meninas.
Nunca tinha sequer ouvido a palavra feminismo antes de lê-la amplamente debatida no Twitter. Tinha 15 anos e até então achava que era culpa minha ter sido assediada com 11, enquanto ia comprar sorvete com minha prima de 10. Achava que merecia ter passado por inúmeras piadas e comentários sobre meu corpo pelos meninos com quem estudei. Achava que deveria ouvir calada todas as humilhações, porque era a única culpada por não estar dentro de um padrão agradável segundo pessoas que me rodeavam. Porque nenhum homem da minha família levava nem que seja um copo para pia durante festas. Porque meninos do meu colégio levavam bronca quando passavam mão no corpo das meninas, enquanto nós levávamos advertência por usar shorts acima do joelho. Porque cresci rodeada de proibições e regras de como deveria agir para ser respeitável. Porque o meu “não” nunca foi respeitado, minhas ideias nunca tiveram peso e minha voz, consequentemente, nunca teve força.
Apesar da diferença pouca, sei que minhas irmãs cresceram em um ambiente mais saudável. Três anos separam o meu início de adolescência do início da delas – rodeadas de discursos feministas na internet, e na própria casa, a partir de uma irmã que aprendia cada vez mais sua força no mundo e seu posicionamento como mulher. Desde que tive essa percepção, nunca mais parei de me perguntar a diferença que o movimento teria feito na minha vida se o tivesse conhecido antes.
Durante duas semanas, conversei com mais de dez meninas de diferentes idades. Revirei também o passado ao falar com uma representante da resistência feminina, que participou ativamente da luta pela democracia, durante a ditadura militar. Em meio a tantas histórias me deparei com inúmeras identificações e encontrei inspirações gigantescas através das figuras de mulheres tão fortalecidas através do feminismo.
Uma das minhas primeiras conversas que tive foi com Fernanda, estudante de jornalismo. Quando perguntei qual era a primeira palavra que pensava quando ouvia “feminismo”, disse exatamente o que senti ao conhecer o movimento em frente a uma tela de computador. “Pertencimento”, diz. “Nunca me senti tão parte de algo como o feminismo. É saber que não estou sozinha nunca, que tenho várias outras mulheres do meu lado e estão ali para me ajudar e me escutar.”
Se sentir pertencente a algo maior é o primeiro passo para o renascimento que o feminismo proporciona. Há uma longa caminhada percorrida por muitas antes de nós para chegar até aqui. Quantidade imensurável de história e luta feminina: o impacto do feminismo através das gerações.
O primeiro grande marco do feminismo nacional encontra-se em tempos remotos do Império. Em 1827, foi reconhecido às mulheres o direito à educação. Esse capítulo histórico traz destaque para Nísia Floresta, escritora e pioneira pelas causas feministas no Brasil e na América Latina. Grande ativista pela emancipação das mulheres, funda a primeira escola para meninas no Rio Grande do Sul e, posteriormente, no Rio de Janeiro. Suas obras “Conselhos à minha filha” e “Opúsculo humanitário” são consideradas as primeiras sobre feminismo no Brasil, abordando a questão feminina, o abolicionismo e o republicanismo.
Em 1852, nasce o primeiro jornal feminino, nomeado O Jornal das Senhoras. Fundado pela jornalista Violante Bivar, o periódico era editado por mulheres e direcionado às mesmas. Cobria as qualidades femininas e defendia sua educação – que deveria ir além de aprender apenas piano, bordado e costura. A iniciativa representa o desejo das mulheres de serem mais do que os outros dizem que devem ser.
Luiza, estudante de geologia, conta que é exatamente esse seu pensamento em relação à possibilidade de ter conhecido o feminismo antes dos 18 anos. “Se soubesse o que era feminismo, essa liberdade, ser como sou, teria dito para os outros que continuassem a falar o que devia fazer, mas que não iria obedecer.” Ela define o movimento em frases curtas, mas muito representativas para sua vida: “Feminismo é ser livre para escolher. Fazer as coisas porque quer e não porque é ‘certo’ ou porque mandaram.”
Nesse período também teve destaque a pianista e compositora Chiquinha Gonzaga. Mulata neta de escravos, se recusava a utilizar pseudônimos masculinos na assinatura de suas obras e confrontou, ao longo da vida, imposições morais da época. Casou-se aos 16 anos, por determinação do pai, com um oficial que lhe dava ordens para que se mantivesse longe da música, além de humilhá-la pelos seus sonhos. Anos depois, separou-se e sofreu as consequências das mulheres que ousavam desfazer um casamento naquele tempo: foi afastada de seus dois filhos mais novos e sofreu enorme preconceito por criar seu primogênito sozinha.
O ano de 1897 foi marcado pela lei que permitia que mulheres cursassem o ensino superior, assim como era concedido aos homens. Mesmo dentro da legalidade, muitas enfrentaram preconceito ao entrar no meio universitário. É o caso de Rita Lobato Freitas que, em 1887, formou-se pela Faculdade de Medicina da Bahia, sendo a primeira médica do Brasil e a segunda da América Latina. Vencendo a hostilidade dos colegas de turma e dos professores, graduou-se defendendo o trabalho de conclusão sobre a operação cesariana – em homenagem ao legado de sua mãe, que morreu no parto de seu irmão. Além disso, dedicou-se à caridade, oferecendo serviços e remédios gratuitos.
Um marco histórico como esse é um exemplo concreto da educação como ato de rebeldia, abrindo precedente para o crescimento de outras muitas mulheres através do conhecimento. Ana Luiza, estudante de relações internacionais, teve seu primeiro contato com o feminismo através da redação do Enem de 2015. Hoje, relaciona as principais mudanças que o movimento lhe proporcionou à educação. “O feminismo ajudou a responder muitas perguntas que fazia, e ainda faço. Me ajudou a fazer questionamentos e entender que tudo tem um motivo”, relata, “me deu armas de conhecimento para lidar com situações machistas e tentar mostrar que não fazem sentido.”
Ao longo do período das entrevistas, ouvi pelo menos quatro relatos sobre relacionamentos abusivos. Assim como Chiquinha Gonzaga, e inúmeras mulheres que vivem esse pesadelo, elas se viram manipuladas por chantagens, privadas de sua liberdade e diminuídas a fim de se adequarem à expectativa do parceiro. Apesar dos efeitos avassaladores desse tipo de relacionamento, muitas vezes é algo silencioso para quem o vive. “Um momento significativo para mim foi esse ano. Depois de muito tempo me afirmando feminista, me vi cedendo a manipulações machistas”, conta Mariana. “Minha psicóloga, que não se entende como feminista, me disse ‘Mas Mari, logo você? Sabe que isso é jargão do relacionamento abusivo.’”
Já Luiza conta que passou pela situação quando nem mesmo conhecia o movimento. “Eu não era madura, não tinha muita informação e não conhecia o feminismo, então achava que aquilo era normal. Depois que terminei com meu namorado, entrei no cursinho e descobri o que era um relacionamento abusivo”. Percebeu, então, que descrevia exatamente o que passou em seu relacionamento. Diz que esse capítulo de sua vida seria diferente se tivesse conhecido o feminismo antes. “Não teria sofrido tanto, não teria passado tanto tempo com ele, não precisaria ter brigado tanto com a minha família. Lembro que fiquei muito brava. Como não conseguia ver? Como eu não reagia?”
Brenda, estudante de letras, define o término do relacionamento abusivo como “a chave que me fez impulsionar mais ainda no movimento.” Segundo ela, o namoro era baseado no seu enquadramento nos padrões clássicos da figura feminina – a bela, recatada e do lar. “Tinha que ser a menina que sempre estava sorridente, tinha que ter planos. Se falasse que não tenho vontade de casar, ou não tenho vontade de ter filhos, era julgada por isso. Vi que estava me desgastando muito e percebi o quanto o movimento é importante.”
A virada de século vem com novas demandas, acompanhando pressões internacionais – tanto no quesito de produção mercadológica quanto no de movimentos sociais. O país foi tomado pelas árduas condições de trabalho fabril e métodos anarco-sindicalistas de reivindicações, muito inflado pelos imigrantes. Em 1907, há a greve das costureiras, dando início a organizações por menores jornadas de trabalho. Dez anos depois, 400 operários da fábrica têxtil Cotonifício Crespi na Mooca (SP), em sua grande maioria mulheres, paralisaram suas atividades. Foi o começo da primeira greve geral do país, com duração de 30 dias. Os livros de história dão destaque às reivindicações mais amplas – redução da jornada de trabalho e aumento dos salários – e comumente deixam de lado um dos mais importantes motivos de revolta das operárias: o assédio sexual sofrido no trabalho.
Em 1918, a escritora anarco-feminista, Maria Lacerda, publica “Em torno da educação”, obra na qual defende a instrução e a educação como fatores indispensáveis na transformação da vida das mulheres. Para Luiza, a falta de instrução fez com que ela se submetesse a situações infelizes, como um relacionamento abusivo. “Acho que faltou muita informação para mim na época. Acho que as meninas mais novas merecem ter a oportunidade de conhecer [o feminismo], entender o que se passa e decidirem. Não saber o que está acontecendo e não poder reagir é uma merda.”
Conforme o tempo passava, mulheres enfrentavam cada vez mais as imposições da sociedade em busca de liberdade. Em 1921, ocorre a primeira partida de futebol entre mulheres – dos bairros de Tremembé e Cantareira, Zona Norte paulistana. O jogo chegou a ser noticiado pelos jornais impressos da época, obviamente dirigidos por homens, como “curioso” e “cômico”. A conquista de espaços tradicionalmente masculinos é até hoje uma vitória preciosa para o feminismo, como conta Ana Luiza. Diz que o movimento lhe deu autoconfiança para ocupar espaços, mesmo que não houvesse outras mulheres lá. “Por exemplo, muitas vezes vou treinar atletismo e só tem homens. Me sinto fortalecida, contribuindo para causa por estar ali na possibilidade de encorajar outras mulheres a fazerem o mesmo.” E deixa claro: “Alguns espaços são vistos como masculinos, mas não são. Eles são apenas espaços.”
Já no ano de 1928, os avanços femininos ganham maior destaque no meio político. Mesmo sem o poder de voto, Alzira Soriano foi a primeira mulher da América Latina eleita para um cargo executivo – prefeita da cidade de Lajes, no Rio Grande do Norte. Tal acontecimento histórico abriu grande precedente para a discussão sobre o direito à cidadania feminina.
Ao longo das conversas, pude perceber que o envolvimento das meninas com o feminismo também transformou, de diversas maneiras, a relação com suas famílias. A clássica imagem de homens sentados à mesa durante as reuniões familiares, enquanto todas as mulheres estão na cozinha, passa a ter um simbolismo incômodo. “Uma coisa que mudou muito foi o meu confrontar com meu pai e meu irmão”, conta Ana Luiza. “Sempre vivi sob a concepção de que, porque são homens, têm razão em tudo e sabem mais. Com o feminismo, fui entendendo toda a arquitetura do machismo e isso me ajudou na hora de conversar e confrontar o que acho errado.”
Fernanda conta que seu posicionamento como feminista para sua família proporcionou mudanças que a deixam orgulhosa. “Me posiciono na minha casa frente as coisas que não gosto e minha mãe tem mudado muito por causa disso. Começou a perceber coisas que não eram saudáveis para ela, machistas e que não era obrigada a aceitar”, diz. “Hoje, por exemplo, não faz mais as coisas para eles [marido e filho] porque acha que é sua obrigação, faz por algum motivo. Não aceita mais ouvir a frase ‘ajudar em casa’, é ‘dividir as tarefas’. Cobra muito mais do meu pai e do meu irmão.”
A República Velha vem abaixo com a Revolução de 1930, golpe armado que depõe o presidente Washington Luís e leva ao poder Getúlio Vargas. Atendendo às demandas populistas, em 24 de fevereiro de 1932 é garantido o sufrágio feminino – para solteiras ou viúvas com renda própria e esposas com a permissão do marido. É finalmente regulamentado em 1934, na Constituição, para todas as mulheres independentemente da renda, origem ou estado civil.
Apesar do avanço, tanto o governo quanto a sociedade da época seguiam extremamente repressivos antes mesmo da ditadura do Estado Novo – iniciada em 1937. A imagem da mulher consagrada pelo governo Vargas era a que realizava os poucos trabalhos vistos como adequados a elas (professora, enfermeira e secretária) e, claro, a esposa dedicada ao lar. As militantes do feminismo divulgavam suas ideias por meio de reuniões, jornais, explicativos e arte de maneira geral – sendo habitualmente inibidas.
Um dos maiores símbolos da repressão varguista foi a escritora e militante Patrícia Galvão – a Pagu. Embora nascida em meio ao seio burguês paulistano, destacava-se desde muito jovem por sua conduta tida como inapropriada – usando calças, fumando em público e falando palavrões. Em 1931 é presa pela primeira vez ao participar da organização de uma greve de estivadores em Santos, tornando-se a primeira presa política da história brasileira.
Ao longo de sua trajetória de luta, chegou a voltar à prisão mais de 20 vezes e foi torturada em muitas delas, sem nunca abandonar seus princípios. Tamanha coragem que inspirou Pagu no decorrer de sua vida também é encontrada em toda mulher que busca no feminismo voz, força e espaço. Fernanda aponta como uma das principais mudanças na sua vida foi colocar-se em primeiro lugar em todos os sentidos. “Internalizei muito esse discurso: defender minhas ideias com muita força, fazer o que quiser quando o assunto é minha vida e minhas decisões”, conta ela. “Antes eu não falava quando achava as coisas injustas. Agora, eu falo, e as vejo mudar, mesmo que seja aos pouquinhos.”
A legislação que trata do aborto é criada em 1940 e é um tanto restritiva e desrespeitosa com a saúde feminina. O ato só é praticado legalmente em três situações: em caso de risco à vida da mulher, quando a gestação é resultante de um estupro ou se o feto for anencefálico. Essa última possibilidade foi aprovada no ano de 2012 pelo Supremo Tribunal Federal e foi um episódio marcante para Ana Paula, hoje estudante de economia. “Quando tinha 12 anos, descobri que era a favor da legalização do aborto durante um debate na aula de ciência sobre a questão nos casos de fetos anencéfalos. Quis convencer toda a minha sala disso”, relata. “Isso foi a faísca para me descobrir feminista e o início de um processo de crescimento pessoal. Entendi que para sermos realmente livres devemos ter controle sobre nosso próprio corpo.”
Dentre as perguntas que fiz às dez entrevistadas sobre o tema, as respostas que mais me tocaram foram sobre o que teria sido diferente se elas conhecessem o feminismo mais cedo. Para as meninas que tiveram contato com o movimento muito jovens, as maiores possíveis diferenças são apontadas na infância. “Teria feito mais coisas que queria e me falavam que não podia, porque era ‘coisa de menino’”, conta Ana Luiza.
Já para as garotas que conheceram o feminismo quando mais velhas, as principais diferenças estão na autoaceitação, menor permissividade com piadas e brincadeiras machistas e libertação de padrões nos quais cresceram tentando se encaixar. “Muita, muita, muita coisa teria sido diferente no passado, principalmente no aspecto de me relacionar com homens”, conta Fernanda. “Eu me via muito feita para agradá-los, não pensava que tinha que gostar de mim em primeiro lugar. Como nas festas: não me vestia para mim, me preocupava com o que os meninos iam pensar.”
Brenda, estudante de letras, e Laura, de relações públicas, apontam como maiores mudanças o autoaceitação. “O feminismo me proporcionou rompimento com ideias que poderiam me fazer muito mal”, conta Laura. “Comecei a ter contato com um conteúdo mais profundo de como nossos corpos servem para mais do que serem só bonitos. Foi um novo universo que se abriu. Mudou minha relação comigo, com minha identidade e a maneira como enxergo o mundo.” Brenda conta que, além de mudar a relação negativa que tinha com o que via no espelho, haveriam transformações na questão de liberdade feminina. “Acho que não teria julgado tanto as meninas como fazia antigamente. Teria me ajudado muito na questão da empatia, de não ter tanta rivalidade.”
A década de 1950 e os primeiros anos de 1960 são marcados pela forte expansão do feminismo no cenário internacional – a chamada segunda onda feminista – influenciando o Brasil. Esse período é marcado pela liberdade sexual (surgimento da pílula anticoncepcional) e pelos movimentos de direitos civis, trazendo a tona questões da mulher negra, indígena e das homossexuais. Devido a isso, a segunda onda abrange uma gama muito mais ampla de debates e reivindicações como sexualidade, família, mercado de trabalho, direitos reprodutivos e desigualdades. Uma grande referência da etapa era Simone de Beauvoir, que acabava de publicar a obra O Segundo Sexo.
No Brasil, em agosto de 1962 é criado o Estatuto da Mulher Casada, permitindo que estas não precisassem mais da autorização do marido para trabalhar fora de casa, receber herança e viajar. Além disso, ganharam a chance de pedir a guarda dos filhos em caso de separação.
Apesar de tantas alterações positivas, em 1964 há o golpe militar que acaba por alterar drasticamente a conjuntura nacional e o enfoque dos movimentos sociais no país. Mirces, naquele período, era aluna de letras da Universidade de São Paulo e relata o que viveu naqueles anos como mulher ativa na luta pela democracia. “Havia uma capa de pseudo tranquilidade que, na verdade, não existia. São Paulo e Rio eram praças de guerra.” Sendo uma das universitárias que vivenciou a batalha da Maria Antônia, ela conta que a situação se agravou ainda mais em dezembro de 1968, reduzindo a liberdade de expressão a quase nula. “Na entrada do AI-5, começa a perseguição violenta. Foi decretado do dia para noite, em uma canetada. Falaram que o Congresso estava em recesso, mas na realidade não houve recesso, houve fechamento mesmo.”
Em meio a esse cenário tenebroso, as pautas feministas perdem sua força ao darem preferência às de interesse nacional. “A gente vivia o nosso feminismo, mas participando de um movimento que se tornou um movimento do Brasil inteiro.” E ela ainda esclarece: “A participação da mulher nessa época era muito mais política do que lutando por uma causa feminista. Havia prioridade. Haviam outros assuntos a serem tratados de maior importância. Como é que você ia ser feminista, defender uma ideia, se você nem podia falar?”
Em decorrência desse cerceamento dos direitos civis, a luta feminina precisou ser expressada em outros movimentos que não de caráter feminista – como é o caso do Movimento Feminino pela Anistia. Criado por Therezinha Zerbini, ele reunia mulheres que tiveram seus familiares exilados ou presos pela Lei da Segurança Nacional e tinha como proposta denunciar as repressões impostas pelo governo militar. Não era uma organização de caráter feminista mas um movimento comandado por mulheres. Após a promulgação da Lei da Anistia, o grupo continuou lutando pela redemocratização. “Fiquei muito feliz com essa participação das mulheres na anistia e, depois, nas diretas já”, diz Mirces. “Tive muitas professoras na faculdade, nenhuma delas engajadas no movimento feminista, mas todas engajadas no movimento político.”
Como resultado dessa mobilização, no mesmo ano, 1975, é criado o Centro da Mulher Brasileira: um órgão institucionalizado, responsável por articular os objetivos feministas em forma de ação coletiva. Um exemplo de sua atuação foi promover o retorno de muitas mulheres que foram exiladas durante a ditadura, além da realização de grandes seminários e discussões, das quais surgiram diversas pesquisas e publicações sobre a condição da mulher. Para Ana Luiza, hoje em dia, esse tipo de resultado teve um impacto importante em seus primeiros contatos com o tema. “A recepção do feminismo, para mim, foi muito positiva, porque colocava em pauta questões minhas que não sabia serem preocupações de muitas pessoas, até mesmo de estudo e pesquisa!”
No ano de 1977, a lei do divórcio foi aprovada. Anteriormente, a separação era chamada de “desquite” e reservava às mulheres pouquíssimos direitos e muito julgamento por parte da sociedade. Isso levava muitas a permanecerem em casamentos infelizes e até mesmo abusivos a fim de evitar a imagem de mulher desquitada. O sancionamento da nova lei foi um passo importante para autonomia e independência feminina.
Até 1979, mulheres não eram autorizadas a praticarem todos os esporte. Devido ao decreto do Estado Novo varguista, só podiam praticar modalidades que condissessem com suas condições físicas – lutas, futebol, polo e beisebol eram expressamente proibidos. A revogação da lei aconteceu porque, nesse ano, quatro mulheres se inscreveram no Campeonato Sul Americano de Judô com nomes masculinos e o Brasil conquistou o título devido à pontuação dessas atletas.
Uma das coisas que mais me impressionou ao longo das conversas foi como a palavra “liberdade” surgiu diversas vezes e em vários contextos – liberdade de agir, liberdade para se vestir, liberdade das opiniões alheias. Luiza é uma das mais enfáticas nesse quesito, apontando a liberdade como sua principal transformação ao se juntar a causa feminista. “A melhor mudança foi me descobrir. Com o feminismo consegui finalmente me libertar. Percebi que muitas coisas não são erradas, as pessoas só as apontam como erradas”, conta. “Hoje, por exemplo, não uso mais sutiã que era uma coisa que sempre usei por imposição da minha mãe e dos comentários das pessoas.” Ela também diz ter se libertado no modo de agir, deixando para trás o discurso que sempre ouviu sobre não poder fazer algo porque é “uma mocinha”, começando por sua escolha na faculdade. “No meu curso, geologia, tem muito essa ideia de ‘curso para homem’. Porque a gente tem que ir a campo, quebrar pedra, andar pra caramba. Vem mudando bastante, mas sempre tem alguma pessoa falando para eu ter um cuidado extra – só por ser mulher.”
A década de 1980 é marcada pelo avanço feminino devido à redemocratização. A constituição de 1988, por exemplo, incorpora a igualdade jurídica entre homens e mulheres e incentiva a entrada delas no mercado de trabalho através de medidas protetoras – como menor prazo para aposentadoria por tempo de serviço e contribuição.
Nas universidades, a questão feminina se tornou objeto de estudo. Surgiu a necessidade de falar sobre corpo, sexualidade e liberdade: criou-se programas televisivos para contemplar o tema, músicas de grandes cantoras (Rita Lee, Maria Bethânia, Fafá de Belém) e séries como Malu Mulher. “Quando, em 1978, o AI-5 foi revogado, começou a haver abertura política e uma visão diferente sobre os problemas sociais.” conta Mirces. Ela aponta algumas das principais representantes femininas nessa nova etapa nacional: “Cacilda Becker, Marília Pera, Tônia Carrero. Fafá de Belém, por exemplo, teve uma participação enorme nas diretas.”
Em 1983 é criado a organização SOS Mulher, uma entidade social que visa atender casos de violência praticados contra mulher. Seu nascimento decorre da mobilização do movimento feminista após o assassinato de Ângela Diniz por seu companheiro Doca Street. Ele recebeu uma pena mínima após fazer uma defesa baseada na legítima defesa da honra, responsabilizando Ângela por ter provocado a violência devido ao seu comportamento.
No ano de 1985 surge a primeira Delegacia da Mulher, em São Paulo. Unidade especializada da polícia civil, realiza ações de proteção e investigação dos crimes de violência doméstica e sexual.
Ao longo da década de 1990 o cenário era de estabilização democrática no país e claro aumento da escolarização das mulheres: o feminismo se adequa à dinâmica da sociedade e passa a focar na luta por maior participação na vida política. Em 1996 é criado o sistema de cotas pelo Congresso Nacional, obrigando os partidos a inscreverem pelo menos 20% de mulheres nas chapas eleitorais. Esse avanço é o primeiro passo para que as mulheres exerçam sua política cotidiana em um plano mais amplo.
Para Mariana, estudante de letras, o movimento abriu caminho para que ela se colocasse no mundo. “Para mim, feminismo está ligado a estruturas de poder. Acho que ele me inseriu na política do dia a dia. Aprendi a me posicionar, a pesquisar, estudar, contestar.”
A primeira pergunta que fiz a todas as meninas com quem conversei foi “qual a primeira coisa que te vem em mente quando ouve a palavra feminismo?” Luta foi a mais respondida, depois de direito e liberdade. “Logo penso em uma luta que vem de muito tempo, em busca de uma equidade, de uma voz”, definiu Luiza. “O feminismo, para mim, está intrínseco no meu ser”, diz Ana Luiza, “ele é luta porque, a partir do momento que você entende como é nossa sociedade e que precisamos fazer algo para viver melhor, toma consciência das ferramentas que o feminismo te proporciona para conseguir.”
A virada do milênio é marcada por novas mentalidades, desafios e plataformas. O movimento feminista agrega mais do que nunca em sua agenda as questões raciais e de diversidade sexual. Há maior questionamento da maternidade como obrigação, luta pela erradicação da violência doméstica e da cultura de submissão feminina. Também cresce a preocupação com o corpo e seu uso – tanto pelas mulheres quanto pela sociedade.
Com o advento e expansão da internet, as redes sociais tornam-se a maior plataforma para exposição dos ideais e debates feministas – facilitando sua disseminação para meninas de todas as idades e, muitas vezes, a via para o primeiro contato com o movimento. Das dez mulheres com quem conversei, nove delas descobriram o feminismo através da internet ou a utilizaram para entendê-lo após conhecer a palavra em outro lugar. Seja com 18 anos ou com 12, as plataformas virtuais vem se tornando cada vez mais essenciais para meninas ampliarem suas perspectivas e terem uma vida mais livre – assim como foi essencial para mim, há cinco anos, ler garotas da minha idade falando sobre o tema em 140 caracteres.
“Assim como lá atrás conseguimos votar, a gente vai aos poucos conquistando e lutando por novos passos, usando plataformas de informação para contar nossas histórias”, diz Luiza. “Usar os meios que temos para colocar nossas ideias. Falar abertamente, fazer as pessoas se questionarem.”
As primeiras conquistas das mulheres no século XXI parecem acertar contas com uma moralidade medievalesca. Em 2002, é retirado do Código Civil o artigo que tratava a “falta de virgindade” como crime. Até então, um homem poderia pedir anulação do casamento caso descobrisse que sua esposa não era virgem.
Em 2003, no início do primeiro mandato do presidente Lula, há a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Sua função primordial é a eliminação da desigualdade de gênero, trabalhando em três linhas de ação: 1) políticas do trabalho e da autonomia econômica da mulher; 2) combate à violência contra a mulher; e 3) programas na área de saúde, educação, cultura e ações voltadas para maior participação feminina nas políticas de igualdade.
No ano de 2006, nasce a Lei Maria da Penha, sancionada a fim de combater a violência contra a mulher, punindo com mais rigor os casos domésticos. Sua existência foi o primeiro passo para o país assumir esse grave problema, por muito tempo silenciado, e debatê-lo com maior clareza.
Em junho de 2011, chega ao Brasil a Marcha das Vadias. Nasce no mesmo ano no Canadá, após diversos casos de abuso sexual na Universidade de Toronto. Na época, um policial fez uma observação para que “as mulheres evitassem se vestir como vadias para não serem vítimas.” A partir disso, elas se organizaram para marchar contra esse discurso de culpabilização da vítima, tradicionalmente vestindo-se a partir do estereótipo de vadia: blusas transparentes, lingeries, saias, salto alto e sutiãs. No Brasil, o movimento chegou alguns meses depois e ocorreu em quatro capitais – sendo a mais representativa delas a de São Paulo. Hoje, lê-se a marcha das vadias como o estopim para diversos protestos organizados – de rua ou virtuais – que aconteceriam nos anos seguintes.
Em julho do ano de 2013, nasce a campanha Chega de Fiu Fiu, criada pela ONG Feminista Think Olga, com o objetivo de combater o assédio sexual em lugares públicos. Graças à grande repercussão na internet – eram esperadas algumas dezenas de respostas nas pesquisas e, em duas semanas, foram quase 8 mil participantes – a campanha deu início a um grande movimento social contra essa situação, chegando até mesmo a criação do Mapa Chega de Fiu Fiu (que localiza geograficamente casos de assédio mediante aos depoimentos de mulheres).
O resultado da campanha divulgou que 99,6% das mulheres já foram assediadas e 81% delas já deixaram de fazer algo com medo do assédio.
A pesquisa da ONG também aponta que 86% das entrevistas já foram assediadas na balada e 82% delas já passaram pela situação de serem agarradas em uma festa. Fernanda relata que faz parte dessa porcentagem. “Teve uma vez que estava numa festa com amigas e um menino me agarrou à força e me beijou. Eu não conseguia me soltar, comecei a beijar ele só para ver se me largava e quando ele relaxou, eu sai correndo.”
Em 2014, foi a vez do movimento #NãoMereçoSerEstuprada. Ele é uma reação ao resultado da pesquisa do IPEA de março, que mostrou que 65% dos brasileiros acredita que mulheres que mostram o corpo merecem passar por essa violência. 58% dos entrevistados também concordou com a afirmação: “Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros.” Após grande repercussão na internet, atos de protestos aconteceram em várias cidades brasileiras.
O ano de 2015 foi marcado de forma tão forte pelos movimentos femininos que foi chamado de Primavera Feminista. Em outubro, vai ao ar o reality show MasterChef Júnior e, na internet, diversos comentários de cunha sexual foram direcionados a Valentina – participante de apenas 12 anos. Think Olga entrou em ação mais uma vez: lançou a campanha #PrimeiroAssédio no Twitter, incentivando mulher de todas as idades contarem suas histórias. Ali foi dada a largada para um movimento catártico e gigantesco que, em restritos 140 caracteres, mostrou que o que aconteceu com Valentina é a crua realidade das meninas brasileiras e não um caso isolado.
Brenda, assim como eu, é mais um caso como esse. “Eu tinha 13 anos, lembro que estava indo para casa da minha avó. Um cara me parou de carro para pedir informação e começou a me cantar. Eu era uma criança. Lembro que quando cheguei em casa chorei muito porque me sentia um lixo, me sentia culpada.” Ela conta que esse episódio, hoje, a faz perceber a importância do movimento. “Fico pensando quantas meninas passam por isso e o quão importante é o feminismo para ajudar. Se tivesse conhecido o movimento antes, teria sido diferente. Tinha muita vergonha, nunca tive coragem de contar isso para ninguém.”
Ao fim do mesmo ano, o tema de redação do Enem foi “persistência da violência contra a mulher.” O que para mim foi um momento de colocar em prática o que vinha estudando há poucos anos, para muitas meninas foi um instante de descobertas. Ana Luiza conta que foi o pontapé para que ela entrasse em contato com o movimento. “A primeira coisa que me lembro sobre feminismo foi um texto da Simone de Beauvoir no Enem, que eu não conhecia e deu muita repercussão na internet.” Sua entrada nesse universo foi através da internet e da prova, “a partir daí, feminismo começou a se tornar uma palavra familiar para mim e fui procurar saber mais.”
Já para Fernanda, foi o ponto de virada de sua relação com a causa – que até então era marcada pela reprodução de discursos negativos e estereotipados. “Quando estava no terceiro ano do Ensino Médio, foi quando me vi como feminista pela primeira vez. Quando falei sobre feminismo na redação do Enem, caiu minha ficha de que fazia parte disso e não deveria ter vergonha.”
Em 2016 foi a vez das mulheres ocuparem as ruas na campanha para tirar presidente da câmara de seu posto: o Fora Cunha. Ele foi um dos autores da PL 5069, projeto de lei com objetivo de dificultar o acesso legal ao aborto no caso de estupro. Menos de seis meses depois, o deputado renuncia ao cargo.
Apesar da quantidade inegável de avanços, conquistas e vitórias, podemos dizer que o movimento ainda está apenas no começo. Desde que deixarmos de ser queimadas na fogueira, até começarmos a queimar sutiãs, houve uma batalha imensurável nesse meio tempo. O feminismo nada mais é do que uma luta constante para sermos mais do que nos impuseram.
Obviamente, como qualquer movimento, ele tem falhas e autocríticas que devem ser feitas e debatidas. Laura comenta a cobrança excessiva pela militância perfeita. “Se queremos conquistar mais aliados e mudar as coisas, precisamos saber olhar para nós mesmos, entender o que fazemos de errado e saber que ninguém é coerente 100% do tempo”, diz. “Militar é uma coisa que cansa, desgasta e chega até a ser improdutivo em certo ponto.”
Fernanda já deixa claro que a imperfeição pode ser comum no movimento e isso não aponta, de forma alguma, uma causa perdida. “Eu ainda reproduzo machismo porque fomos criadas em uma cultura machista” diz. “Isso não me faz deixar de ser feminista, porque o feminismo me faz repensar essas situações e mudá-las.”
Já Ana me chamou a atenção para questão do feminismo segmentado na categoria de mulher branca, universitária, com educação. “O feminismo hoje tá sendo engolido pelo grande capital, quase nunca é agregado com discussão de cor, raça, social.” Ela conta um episódio que a marcou nesse quesito: “A empregada que fazia faxina em casa me pediu para contar o salário dela, porque nunca frequentou o colégio. Convidei ela para participar do EJA [Educação de Jovens Adultos], que acontecia em frente a minha casa e começava na hora que ela saía do trabalho. Ela me respondeu que o marido não deixava. O nosso feminismo do século XXI não dialoga com ela de nenhuma maneira, ignora que mulheres assim existem.”
Ana também me contou sobre a profundidade de suas mudanças a partir do movimento e como ele é uma constante evolução. “Aprendi que a gente tem que colocar o dedo na ferida para conseguir mudar as coisas. E tudo isso é muito difícil, ainda estou no processo de crescimento.”
E eu sei que sim porque também estou, assim como acredito que todas estamos.
Entre o primeiro momento em que me vi falando publicamente sobre feminismo (em um trabalho do colégio no qual tremia com medo que meu professor preferido deslegitimasse o que eu falava ) até o momento em que escrevo essa matéria, três anos depois, há um florescimento que não posso mensurar. Mesmo assim, muitas vezes me peguei o abafando. Pensar que fui uma das responsáveis por proporcionar um crescimento menos oprimente às minhas irmãs e às meninas da idade delas me fez perceber que o progresso feminista merece ser contado e a nossa evolução como tais não deve ser diminuído.
“Eu acho que às vezes a gente esquece o que o feminismo faz pela gente”, foi uma frase que Laura me disse em meio às entrevistas. No último mês de agosto, fiz minha primeira tatuagem que planejei por quase três anos: o símbolo de vênus. Dentre tantas justificativas que eu posso dar pela escolha, acredito que sua frase defina bem. Às vezes esquecemos o que o feminismo faz por nós, todas as lutas e todas as mulheres que as viveram até chegarmos ao ponto no qual estamos. Marcar na pele foi minha maneira de não esquecer. Também acho que nenhuma de nós irá.
Que matéria incrível Samantha, sério! Seu texto conseguiu condensar muitas coisas importantes que me vem à mente quando preciso discutir sobre feminismo, acho que principalmente aqueles que não entendem o feminismo deveriam ler esse texto…
Amei o texto!
Hoje sendo comemorado o dia internacional das mulheres, me vejo mais sensível e reflexiva a respeito do tema.
Nunca me vi ou me senti feminista, meu entendimento sobre o assunto era outro, considerei sempre os atos extremos e não me identificava com eles. Mas através do seu texto, unindo relatos históricos, consegui captar melhor o que tudo isso representa e não tenho palavras para te agradecer.
Sou filha, sou mãe e sendo principalmente mãe de menina, imergi na leitura e voltei no tempo, pensando como seria viver tudo aquilo que as mulheres passaram, para que hoje eu possa ter “alguma liberdade “. Desejo a você e a todas as mulheres um Feliz dia! Que não nos falte forças pra lutar.