Este ano, edições da Campus Party em todo o mundo discutem a inserção da mulher na ciência e na tecnologia. Para visibilizar o debate, o Sala 33 conversou com Iana Chan, jornalista formada pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e uma das criadoras da PrograMaria, uma iniciativa que oferece aulas de introdução à programação ministradas por e para mulheres.
Em 2015, a PrograMaria foi contemplada por dois projetos que viabilizaram suas atividades: a Vai Tec, iniciativa da Prefeitura que incentiva projetos de impacto social, e o Prêmio Mulheres Tech em Sampa, realizado pela Rede Mulher Empreendedora e pela Tech Sampa e apoiado pelo Google for Entrepreneurs.
O projeto ainda busca um modelo sustentável e possui uma rede de colaboradores que ajuda a manter as atividades do site, das oficinas e dos cursos. Sua missão tem três pilares: inspirar através do reconhecimento de mulheres da área, proporcionando representatividade; debater as origens e as soluções para a disparidade de gênero na tecnologia e ensinar programação através de oficinas e curso oferecidos regularmente.
Para espalhar a ideia do projeto, ontem (02), Iana esteve presente em duas palestras da programação da Campus: o painel “Somos todas mulheres da tecnologia”, no Palco Startup & Makers, e no debate da Vai Tec, no estande da Prefeitura que está no espaço gratuito do evento.
Conheça um pouco mais sobre o panorama das mulheres na tecnologia e o que está sendo feito para diminuir a desigualdade de gênero na área.
Sala 33: Iana, como você migrou da comunicação para a tecnologia?
Iana Chan: Eu sempre gostei muito de tecnologia desde criança e eu gostava muito da ideia de você conseguir se expressar e criar as suas coisas por meio dela. Quando a internet e as redes sociais chegaram, elas sempre me fascinaram muito e, na minha carreira como jornalista, eu sempre trabalhei com o digital. Por ter essa facilidade com a tecnologia, por fuçar códigos e aprender a programar o básico de HTML e CSS, eu acabava tendo uma interface muito próxima com os desenvolvedores e fazia essa ponte entre eles e o que a redação precisava.
E como surgiu a ideia do PrograMaria?
No meu último trabalho, eu estava numa redação que tinha um projeto de inovação e o meu papel era justamente esse, de falar com os desenvolvedores e fazer com que as coisas acontecessem. Daí, começou a me inquietar o fato de que, por exemplo, a agência que prestava serviço para a gente só tinha homens. Achei estranho.
Até então não tinha me atentado para o fato de que há poucas mulheres na área de tecnologia e que, por outro lado, tinha várias amigas que queriam aprender, mas sentiam que tinham uma barreira. Elas tinham essa ideia de que a tecnologia é uma coisa muito distante, inalcançável, difícil, hermética, e que nunca vai fazer parte daquilo que a gente pode aprender.
Além disso, ainda hoje a gente tem que enfrentar essa divisão entre coisas de menina e coisas de menino.
Foi dessa inquietação que surgiu a PrograMaria, e da consciência de que a tecnologia é importante pra tudo na nossa vida hoje em dia. Independentemente de você se tornar uma desenvolvedora ou não, ter conhecimento sobre tecnologia é importante e te ajuda no mercado de trabalho. E, mais do que isso, se você tem uma ideia ou um empreendimento, você consegue realizá-lo através da tecnologia.
Tecnologia é isso: é uma ferramenta para você transformar as suas ideias em realidade, para você transformar o mundo.
Se as mulheres não fizerem parte dessa mudança, se elas não estiverem produzindo tecnologia de impacto, o mundo todo perde com isso. Daí que surgiu a PrograMaria, justamente com essa missão de empoderar mulheres através da tecnologia e da programação.
Pela sua experiência, quais são as razões desse estigma de que a tecnologia “não é lugar de mulher”?
Acho que é muito da nossa cultura mesmo. Existe essa narrativa cultural de que mulher não é boa em matemática, de que o cérebro da mulher é mais emocional e menos lógico. Tudo isso faz com que as mulheres internalizem e reproduzam isso. E é claro que isso vai influenciar na maneira de como a gente escolhe nossas carreiras.
Os estímulos que a gente recebe desde criança são diferentes. Os meninos recebem computador, videogames ou blocos de montar, que já desenvolvem habilidades específicas. As meninas recebem boneca, conjunto de panela. Então, só nesse ato já está expresso qual é a expectativa social de um menino e de uma menina, e isso vai sendo reforçado ao longo da vida deles.
Há um estudo que mostra que as meninas têm mais chances de demonstrar sentimentos negativos — como ansiedade, estresse, medo e insegurança — em relação à matemática do que os meninos, mesmo quando elas tem o mesmo nível de performance que eles.
Então, a gente começa a falar em coisa semelhante à síndrome do impostor, que é essa sensação de que você não pertence àquele lugar e que muito em breve vão descobrir isso. Acho que tudo começa com a forma de como a gente é educado, como a gente ouve esses estímulos, internaliza e reproduz.
Muitas meninas com quem nós conversamos na PrograMaria têm uma curiosidade muito grande em relação a tecnologia, mas, quando a gente pergunta se ela já tentou alguma coisa, elas dizem que não. Para elas, começar a aprender não era nem uma possibilidade. Existe de fato uma barreira que distancia as mulheres da tecnologia.
Qual a sua dica para que as pessoas, especialmente as mulheres, comecem a se aventurar na programação?
A primeira dica é perder o medo. A PrograMaria ofereceu um curso de introdução à programação para mulheres feito por mulheres. Era um curso com 30 vagas e, na primeira edição, teve quase mil inscritas. Nós temos uma demanda reprimida. A mulher tem essa vontade, mas por algum motivo ela nunca foi atrás de alguma experiência que pudesse suprir essa demanda, então, quando ela vê que há um curso de mulheres para mulheres, ela fica determinada a fazê-lo.
Há meninas que chegam pra gente pedindo desculpa porque não sabem nada sobre o assunto, mas o curso é justamente de introdução. A mulher tem esse sentimento de que ela deveria saber alguma coisa, mas não sabe, e por isso ela não merece.
A gente trabalhou muito essa questão de que estamos aqui para aprender, mas errar para a mulher é muito difícil, porque ensinam as meninas a serem perfeitas e a gente vai criando esse medo absoluto de errar.
O primeiro passo é esse, perder esse medo e tomar iniciativa, experimentar e perceber que você pode, sim, aprender o que quiser. É só você experimentar e tentar.
É claro que é muito difícil, a gente sabe que o ambiente da tecnologia é muito hostil. Seja nas empresas, nas faculdades ou nos eventos de tecnologia, as mulheres não se sentem tão acolhidas e tão bem-vindas. Ser uma minoria torna a experiência um pouco angustiante, porque você não sabe se vai ser bem-vinda e acha que as pessoas vão te julgar — e, na maioria das vezes, elas realmente te julgam.
Apesar desses desafios uma segunda dica que eu daria é encontrar pessoas que tenham o mesmo objetivo que você. Isso é muito transformador e foi muito legal perceber na PrograMaria que só o fato de mulheres se identificarem, se verem representadas e saberem que não são as únicas, já as deixam mais confortáveis em relação à tecnologia.
Essas seriam as duas dicas: perder o medo e procurar pessoas que possam te acompanhar nessa sua jornada.
O que pode ser feito para diminuir essa desigualdade de gêneros na tecnologia?
Como todo problema complexo, não há uma solução fácil. Mas o principal é debater e escancarar esses problemas para que as pessoas se despertem para isso, para pensarem em qual tipo de educação está sendo dada para meninos e meninas, o que elas podem fazer para dar as mesmas oportunidades para os dois e para não reforçar estereótipos.
Outro ponto é que as faculdades e empresas precisam olhar para isso. As empresas já estão percebendo que diversidade é importante para elas. Elas percebem que um time diverso cria de maneira diferente, inova mais, pensa fora da caixa. Mas, mais importante que isso, é bom criar esse debate na cultura da empresa. E nas universidades também.
Hoje, depois de uma palestra, um grupo de meninas de uma faculdade chegou na gente chorando porque elas têm um professor que já as reprovou mesmo tirando a nota. Ele justificou: “Vocês são mulheres, vocês não deveriam estar aqui”.
A sociedade como um todo precisa reconhecer que isso é um problema social e não só da mulher. A sociedade ganha quando as mulheres se apropriam da tecnologia.
Como é a relação de vocês com as ex-alunas da PrograMaria?
É muito poderoso você juntar mulheres para desenvolver tecnologia. E é algo completamente diferente do que você vê num ambiente misto. Elas se sentem mais seguras, se permitem se expor, se permitem errar e isso cria uma conexão muito forte.
Como a PrograMaria é um curso de introdução e aprender programação não é fácil, a gente teve uma preocupação muito grande em ensinar as meninas a ter autonomia para aprender. No mundo da programação ninguém sabe de tudo, é algo que envolve muita busca, muita pesquisa, então, a gente falou muito nessa autonomia, nessa proatividade de continuar aprendendo.
Fizemos parceria com uma escola de programação que tinha um curso mais aprofundado e que contemplou algumas alunas para que elas pudessem ter continuidade nesse caminho. Algumas continuam aprendendo e quiseram migrar para área, mas outras não, e a gente percebeu que tudo bem. Mesmo se você não se tornar uma programadora, esse conhecimento básico de programação já te dá muitos benefícios no trabalho.
Por Larissa Lopes
larissaflopesjor@gmail.com