Por Iolanda Paz (iolanda.rpaz@gmail.com) e Laila Mouallem (lailaelmouallem@gmail.com)
“É uma forma de pressionar a burocracia, uma forma de os professores e os membros da Congregação falarem e votarem na frente de toda a comunidade ecana”, começa Fernando Magarian, estudante da Escola de Comunicações e Artes da USP e membro do Centro Acadêmico Lupe Cotrim (CALC). A Congregação, órgão deliberativo máximo de cada unidade uspiana, funciona como uma assembleia: os membros ― no caso da ECA, dois funcionários, dois representantes discentes da graduação, um da pós graduação e cerca de 30 professores ― se inscrevem para falas, debatem e tomam decisões. No entanto, sendo um fórum fechado, há vezes em que o movimento estudantil e os trabalhadores consideram relevante ocupar as reuniões antes de seu início. Foi o que aconteceu no encontro ordinário marcado para 27 de abril, quando se colocaram em pauta o Termo de Permissão de Uso da vivência estudantil e a ordem de despejo do SINTUSP (Sindicato dos Trabalhadores da USP).
Ambos os grupos tinham propostas de resolução para serem apresentadas à Congregação. No caso dos estudantes, o intuito era obter uma posição oficial da ECA contrária ao Parecer PG P. 682/2016, emitido pela Procuradoria Patrimonial da USP, que tratava sobre a necessidade de “regularização do uso de espaços públicos situados no entorno da Escola de Comunicações e Artes”. Apesar da mobilização, a Congregação da ECA decidiu por reconhecer “a necessidade e a urgência de regularização do espaço público ocupado pelo CALC (Centro Acadêmico Lupe Cotrim) e pela ECAtlética (Associação Atlética Lupe Cotrim)”. “Foi aprovado um documento que endossava a repressão por parte da reitoria”, segundo Fernando.
Em relação ao sindicato, como a justificativa para o despejo era a necessidade de aproveitamento acadêmico do local, os funcionários pressionaram a Congregação para emitir uma nota oficial alegando que a ECA não havia pedido a sede. “Esse primeiro documento do SINTUSP passou sem grandes problemas”, conta Fernando, que estava presente na reunião. Uma moção foi aprovada no dia declarando que “a Congregação da Escola de Comunicações e Artes (…) não solicitou à Reitoria da USP a desocupação da sede do SINTUSP para efeito de reorganização dos espaços acadêmicos”.
Ameaça ao SINTUSP: ordem de despejo
A notificação do despejo chegou em 6 de abril, estabelecendo um prazo de 30 dias para desocupação. “Foram duas vezes que tentaram tomar aqui: uma em 1979 e outra agora”, conta Magno de Carvalho, um dos diretores do SINTUSP. A única ordem de despejo que o sindicato havia recebido até então fora durante a ditadura militar. Naquela ocasião, segundo Magno, seria cedida uma sala que substituísse o espaço; desta vez, se a ordem for acatada, o SINTUSP sairá de vez da universidade.
Estabelecido há 50 anos na ECA, o sindicato era antes denominado ASUSP (Associação dos Servidores da USP). Com a Constituição de 1988, que garantiu o direito à organização sindical, virou SINTUSP. “Uma mudança de nome, porque a associação tinha um caráter sindical e era quem lutava pelo direito dos trabalhadores”, diz Magno. “Isso é uma entidade dos trabalhadores há 50 anos.”
Por mais que estejam no espaço há tanto tempo, a Legislação Brasileira não garante ao sindicato o direito de posse sobre o local. No caso de bens privados, o artigo 191 da Constituição assegura a propriedade àquele que usufrua de um imóvel por cinco anos ininterruptos, tornando-o produtivo e tendo nele sua moradia; porém, em parágrafo único, estabelece que “os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”.
De acordo com Magno, no entanto, os entraves ao sindicato vão além do papel: “A reitoria está querendo acabar com a gente, e não é só um ataque ameaçando a sede”, ele diz. Como a Universidade de São Paulo é uma autarquia ― entidade com autonomia econômica e administrativa, embora fiscalizada e tutelada pelo Estado ―, ela possui legislação própria e pode submeter funcionários, docentes e estudantes a processos administrativos internos. “O processo administrativo é mais perigoso, porque depende deles. Aí eles demitem mesmo”, diz Magno.
O artigo 8º da Constituição, inciso VIII, diz que é vedada a demissão de diretores de sindicatos, a não ser que estes cometam atos considerados “faltas graves”. Nesse caso, é necessário que a USP entre na Justiça do Trabalho para demiti-los por justa causa. Magno afirma, no entanto, que os diretores têm tido ganho de causa nesses processos. “Vai ser demitido porque participou de uma ocupação [da reitoria] em que estavam milhares de pessoas?”, exemplifica.
Ele também fala sobre atos que impedem a ação sindical. Certas vezes, caminhões chegaram a obstruir a passagem e a aglomeração de pessoas nos arredores do SINTUSP. “Tentaram barrar nosso carro de som várias vezes”, ele diz. “Se bem que agora eles pararam, perceberam que não adianta cercar tudo, a gente entra a pé”, completa.
O Termo de Permissão de Uso
“Ele regulariza e coloca nos moldes da lei qual é a relação dos espaços da USP com as entidades”, diz Marcelo Grava, membro do CALC. Sendo um instrumento legal, o termo regulamenta a utilização de espaço físico público e vale para toda a USP.
Segundo Gustavo Justino de Oliveira, doutor em Direito do Estado e professor da Faculdade de Direito da USP, existem dois tipos de classificação de espaços públicos: os de uso comum e os de uso especial. Os primeiros são como praças: a coletividade como um todo usufrui e utiliza. Já os de uso especial são aqueles cuja posse a Administração Pública concede a um particular. Nesses moldes, caso o Termo de Permissão de Uso fosse assinado, a vivência seria um bem de uso especial. “A regularização surge para determinar quais os direitos e deveres do usuário do espaço público”, completa Justino.
No caso da USP, a regulamentação é de responsabilidade da Comissão de Orçamento e Patrimônio. De acordo com o Estatuto da USP ― título III, capítulo I, artigo 12 ―, “constituem patrimônio da Universidade bens móveis e imóveis”, cabendo a ela administrá-los e deles dispor. Na prática, diz Marcelo, o termo serve para determinados espaços serem de posse da reitoria, com seu uso concedido a entidades.
Desde 2001, a Procuradoria Patrimonial da USP buscar esclarecer o uso do prédio onde estão localizadas a sede do SINSTUP, do CALC e da ECAtlética. Agora, o Parecer PG. P. 682/2016, em março deste ano, decretou a necessidade de se prosseguir com “o procedimento de outorga do Termo de Permissão de Uso”. Caso o termo fosse assinado, a diretoria da unidade assumiria o papel de permitente, ou seja, de proprietária do espaço. Assim, a gestão dos estudantes seria retirada e a utilização do local, permitida com base nas cláusulas do documento. De acordo com a segunda cláusula, o permissionário ― o CALC ― poderia utilizar o lugar apenas para atividades acadêmicas.
Em assembleia posterior, como dependeriam de uma “decisão única e arbitrária da diretoria” para a realização de qualquer evento ― o que foi apontado na carta de reivindicações da ocupação do prédio central da ECA, redigida em 21 de junho ―, os estudantes deliberaram que não assinariam o termo em questão, exigindo o reconhecimento político de que o espaço pertence a eles.
A permissão de uso concedida não pode ser transferida a terceiros, o que impede a locação da área pelos estudantes — como fazem os centros acadêmicos (CA) em relação a lanchonetes e xérox, por exemplo. Com o termo, somente a diretoria poderia permitir que o espaço fosse utilizado para fins lucrativos. O documento, entretanto, não especifica como seria feito o repasse do aluguel, e os estudantes acreditam que o dinheiro não seria mais destinado ao CA. Os atuais locatários seriam retirados com a assinatura do termo, e um processo de licitação teria início. Assim, a livre concorrência para a locação do espaço seria garantida, evitando quaisquer favorecimentos.
Outro argumento para a assinatura do termo é a definição de uma pessoa jurídica que assuma eventuais danos causados ao prédio. “Por ser um patrimônio público é que surge a necessidade de um responsável”, avalia Justino. Quando o termo foi comentado por alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP), no entanto, eles argumentaram que, “para evitar a penalização da entidade por terceiros”, o centro acadêmico “é forçado a controlar totalmente as atividades que ocorrem no espaço”, impossibilitado de administrar e utilizar livremente os espaços de vivência estudantil.
“O [caso] mais emblemático [do Termo de Permissão] foi o Centro de Vivência ― a vivência gerida pelo DCE (Diretório Central dos Estudantes)”, conta Fernando. Há mais de dez anos, o local era um espaço de convivência estudantil central na USP e foi o primeiro a ser submetido ao Termo de Permissão de Uso. Segundo ele, meses depois, o prédio foi fechado para reforma. Após aproximadamente dois anos bloqueado, os estudantes resolveram ocupá-lo, enfrentando repressão da reitoria. A área foi liberada, mas “hoje o espaço do DCE é só uma sala… É um trecho de um prédio que era muito maior do que aquilo”, Fernando completa.
A reitoria agiu com base em cláusulas do termo. Caso surjam irregularidades, segundo a cláusula quarta, o permitente tem autonomia para intervir e fazer reformas ― como elétricas e hidráulicas ― e, assim, interromper as atividades estudantis que ocorrem no local. Além disso, mediante simples notificação do permitente, o termo pode ser revogado, sem que caiba ao permissionário ― ou seja, aos centros acadêmicos ― exigir eventuais indenizações. No entanto, Justino pondera que o permissionário, “caso tenha feito investimentos ou melhorias no espaço, possui direito ao ressarcimento integral destas” ― o que não é garantido no termo.
De acordo com a quinta cláusula, o permitente pode ainda revogar o acordo a qualquer momento,se os estudantes descumprirem o termo em algum sentido ou se houver o intuito de dar novo uso ao espaço. Em contratos firmados entre particulares e o Poder Público ― o que não ocorre apenas na Cidade Universitária ― há “cláusulas que conferem à Administração Pública o poder de alterar unilateralmente os termos do contrato”, diz Justino. Porém, “como todo ato administrativo, o ato rescisório deverá ser devidamente motivado”.
Para os estudantes, o ideal seria que tivessem a chance de elaborar uma nova proposta, na qual suas pautas fossem apontadas. Na carta de reivindicações, eles dizem que o termo fere sua “autonomia política, financeira e estrutural”. “É muito difícil, porque esse é um termo da Procuradoria Geral da USP que é igual para todas as unidades”, diz Fernando. Os estudantes defendem o direito de utilizar a vivência para atividades “acadêmicas, extra-acadêmicas, políticas, recreativas e culturais, que compõem a diversidade da formação universitária”.
Integração e espaços
“Então, sim, eu acho que, geograficamente, o campus é bem limitado”, Marcelo afirma. A Cidade Universitária foi construída de acordo com um projeto arquitetônico no qual as unidades estão espalhadas e distantes entre si, como em um “arquipélago” ― expressão utilizada por Jaime Tadeu Oliva, doutor em Geografia Humana e professor do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP). A configuração em ilhas faz com que haja uma sensação de vazio ao percorrer o campus. “Esse desenho não favorece o encontro nem o convívio das pessoas das diversas unidades”, diz Jaime, fazendo com que elas interajam apenas em suas respectivas ilhas.
Nem mesmo a convivência entre estudantes das mesmas unidades ocorre sempre. Na ECA, a disposição dos departamentos desfavorece a interação entre diferentes cursos. “São nove departamentos que não se conversam”, Fernando diz. Ele conta que, ao ingressarem na Escola, os estudantes, de modo geral, sentem uma quebra de expectativa: não se vivenciam os diálogos entre comunicações e artes que a unidade se propõe a oferecer. “O projeto da USP é o absoluto oposto disso ― é a fragmentação, é o isolamento”, afirma. “O maior isolamento possível para causar a maior desorganização, para que a reitoria possa fazer e atacar o que quiser sem resistência.”
Jaime concorda: mais do que a interação, os espaços do campus, consequentemente, também dificultam a organização política. Ele faz referência à existência de grupos que sequer são vistos pelos alunos, justamente pela falta de integração entre as unidades e dentro delas. “Se alguém parou para pensar e fazer [o campus] dessa maneira, eu não sei… Mas que termina sendo uma situação que dificulta a integração e a organização, facilitando a repressão e o controle , claro que sim”, analisa Jaime.
Para Marcelo, o Termo de Concessão de Uso também entra no sentido de ser um ataque político ― “um impedimento de as pessoas se aglomerarem, uma adaptação à rotina da universidade”. Por isso, ele defende a autogestão dos estudantes em relação à vivência. “[Ela deve ser] um espaço que a gente possa fazer assembleia, fazer festa e se reunir.”
Festas e sindicâncias
Em agosto de 2015, o atual reitor da Universidade de São Paulo, Marco Antonio Zago, baixou a resolução 7088, que regulamenta a realização de festas no campus da Capital. A partir dela, para ocorrer um evento festivo, é necessária a autorização da diretoria da unidade e da Prefeitura do Campus USP da Capital (PUSP-C). Um requerimento deve ser feito, no mínimo, em 45 dias úteis antes da realização da festa, informando data, local, público esperado e horário de início e fim, além da justificativa da necessidade de sua ocorrência no interior do campus.
Na resolução, ainda foi estabelecido que somente serão autorizados eventos festivos com finalidade recreativa ― sendo proibidos aqueles que visem à obtenção de lucro. No entanto, para os centros acadêmicos, as festas representam uma importante fonte de renda, que garante sua autonomia quanto entidade. “Para ter independência política, a gente precisa conseguir financiar nossas próprias atividades. A venda de cerveja realmente nos banca”, diz Fernando, também em resposta a outra restrição da resolução, que proíbe a venda, a compra e o consumo de bebidas alcoólicas no campus. “Hoje, as entidades estão tendo que buscar financiamento em outros lugares, porque não estão fazendo mais festas. A ECA é um dos últimos lugares a fazer uma festa grande toda semana ― a QiB.”
Após a morte de Benício Leão Filho, 39 anos, numa madrugada de sexta-feira, 4 de dezembro de 2015, na Prainha, os membros do CALC foram intimados a esclarecer judicialmente o ocorrido. Apesar de haver barraquinhas no local, o Centro Acadêmico Lupe Cotrim, em nota, afirmou que “nenhuma entidade da ECA promovia qualquer evento na escola naquela noite”. A maioria dos estudantes já estava de férias e poucos sabiam de todo o ocorrido. Segundo o CALC, a vivência tinha sido fechada às 22h da quinta-feira e reaberta às 6h da manhã de sexta. Por volta das 2h, depois de Benício esbarrar com seu carro em uma bicicleta, uma briga havia se iniciado e a vítima fora atingida por uma pedra na cabeça. O Centro Acadêmico Lupe Cotrim lamentou profundamente o ocorrido e manifestou sua posição pela apuração dos fatos.
Em janeiro deste ano, quando a USP voltou do recesso, a Procuradoria Geral abriu sindicâncias ― ou seja, procedimentos internos de apuração ― para descobrir os responsáveis não pelo caso em específico, mas pelas festas na Prainha. Cerca de trinta pessoas da gestão do CALC ― tanto a atual quanto a passada ― estão sendo sindicadas. As sindicâncias podem ser engavetadas na forma de relatórios ou se desenvolverem em processos administrativos ― “que já possuem um caráter não de investigação, mas de punição mesmo”, diz Fernando.
Um exemplo disso é o processo administrativo ao qual um dos diretores do CALC está sendo submetido. No fim do ano passado, em atitude individual ― Fernando lembra ―, desvinculada de decisões do centro acadêmico, o estudante havia retirado uma câmera instalada no telhado da vivência. A sindicância, após a deflagração da greve, foi recentemente reaberta. Ele agora corre o risco de ser expulso da universidade. Segundo Fernando, suspender sindicâncias para reutilizá-las em momentos de acirramento político é uma tática recorrente da reitoria.
“Quando a gente votou greve e decidiu ocupar o prédio central”, diz Marcelo, “algumas pautas específicas votadas foram o fim das sindicâncias e dos processos, e contra o Termo de Permissão de Uso”. Ele ainda ressalta que a derrubada desses processos significa a defesa da permanência das festas na universidade. Para Fernando, elas são os maiores espaços de socialização, de produção cultural e de troca que um estudante pode conhecer na vida acadêmica. “Sem elas, a USP está morta, porque é o único lugar que as pessoas se encontram”, completa.
O maior atrativo das festas para os estudantes ― especialmente os de comunicações e artes ―, de acordo com Fernando, é a produção cultural, além da possibilidade de discutir arte, teorias que estão aprendendo e política. Ele também fala sobre o que é necessário para organizar uma festa: pensar a estrutura física, controlar as finanças, montar equipamentos e fazer a programação, por exemplo. “E quem se organiza para fazer uma festa”, ele diz, “se organiza para fazer um ato, se organiza para fazer uma greve”.