Cada vez mais, o futebol se mostra como um meio importante de promover discussões e reflexões de temas que não se limitam ao jogo. Parte dos fãs e atletas parecem entender melhor a capacidade de mobilizar e pautar assuntos caros à sociedade por meio do esporte. O futebol deixa de ser apolítico, estrutura suas bases de engajamento social e se distancia da noção de ópio do povo.
Entretanto, a relação entre política e esporte não é nova. O futebol é um elemento importante de construção do nacionalismo. As disputas entre nações e identidades materializadas no campo são a síntese de uma “identidade nacional”. Esse aspecto foi aproveitado por líderes de regimes autoritários que tinham no nacionalismo sua principal estrutura de sustentação. O futebol alimenta o nacionalismo; o nacionalismo alimenta o fascismo; o fascismo se apropria do futebol.
Futebol e identidade nacional
Há dois aspectos que permitem a relação entre futebol e exaltação da nação: o fato de o futebol ser um esporte de massas, com forte apelo e mobilização, e a possibilidade de incentivar o orgulho, uma palavra-chave quando se trata de nacionalismo. De acordo com Maurício Drumond, doutor em História Comparada, esse é um aspecto geral de todos esportes: “O futebol tem esse poder naqueles países em que ele é o principal esporte, mas essa não é uma característica própria e inerente a ele”. Nos países em que o futebol é um esporte secundário, como no caso dos EUA, outras modalidades — o basquete, por exemplo — assumem o papel de mobilizador das massas.
O conceito de Comunidades Imaginadas, de Benedict Anderson, é um bom instrumento para pensar o poder de mobilização e identificação nacional do esporte bretão: “Ele trabalha a questão do nacionalismo e da identidade como o compartilhamento de elementos, símbolos e significantes em comum por determinado grupo”, afirma Maurício. No século XX, o futebol aparece como um dos fatores mais importantes dessa comunhão imaginária, principalmente do ponto de vista emocional, já que envolve as cores, a bandeira, o uniforme e o hino do país. “É uma visão materializada da pátria e do símbolo pátrio no campo de futebol”, completa o historiador. A paixão pelo futebol se conecta à paixão pela nação e possibilita que os momentos como torcedor sejam também momentos de exaltação da pátria.
O esporte também pode servir como símbolo do sucesso de uma nação e sua superioridade perante as outras, outro aspecto relevante para a promoção do nacionalismo. De acordo com Victor Figols, mestre em História e integrante do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da UNIFESP (GEFE), o futebol assume uma posição “em que as disputas nacionais estão colocadas. Uma vitória da seleção brasileira se torna uma vitória do Brasil. A própria imprensa muitas vezes faz a associação de que se a seleção está bem o país também está, o que não é verdade”.
Um bom exemplo dessa situação é o jogo entre Argentina e Inglaterra, válido pela Copa do Mundo de 1986, que terminou com os argentinos como campeões. Na ocasião, a vitória da Argentina na partida — e posteriormente a conquista da Copa — ficaram marcadas como a “revanche” contra os ingleses por conta da Guerra das Malvinas, ocorrida quatro anos antes. Nessa perspectiva, a conquista esportiva assumiu papel de conquista política.
A possibilidade de convergir a exaltação da seleção — ou de um clube — com a exaltação da nação foi um aspecto muito aproveitado por líderes e ditadores com aspirações fascistas, como Franco, Hitler e Mussolini, que viram nessa relação uma oportunidade para promover seus regimes. Esses governos se alimentavam de um sentimento nacionalista forte, por isso, além de instrumento de propaganda, o futebol foi usado como combustível de sustentação no poder.
A bola nos pés dos líderes
Quando regimes como o franquismo, o fascismo italiano e o nazismo se configuraram, eles buscaram diversos elementos de promoção, exaltação nacional e controle. O futebol aparece apenas como um desses elementos, e não como aspecto central.
O que acontecia era a busca de um controle estrutural e político sobre a sociedade e consequentemente sobre o esporte. “Nessa perspectiva de controle, esses líderes buscaram se aproveitar de situações esportivas para criar a imagem de um regime de sucesso, mas à princípio, não era uma condição tão intencionalista”, afirma Maurício. No contexto de crise do início dos anos 1930, sediar uma Copa, como foi o caso da Itália em 1934, era um sinal de estabilidade, poderio econômico e superioridade.
Francisco Franco, ditador da Espanha entre 1936 e 1975, foi um dos que se aproveitou dessas situações: “Ele utilizou o forte apelo popular do esporte para exercer influência. Falangistas (membros do partido de Franco) controlavam o esporte por meio da federação e até na presidência de alguns clubes do futebol espanhol”, comenta Victor. Assim, o regime franquista criou uma estrutura para que todos assuntos esportivos passassem pelas questões do governo.
O líder fez do Real Madrid o clube símbolo do regime espanhol, contratou jogadores de peso para a equipe e chegou a financiar a construção do estádio do clube, o Santiago Bernabéu. Além disso, mudou o nome do campeonato nacional para “Copa Generalíssimo”, como forma de se homenagear. A delegação nacional de esportes também criou uma barreira para a contratação de jogadores estrangeiros. “Eles só aceitavam jogadores nascidos na Espanha ou descendentes de espanhóis, com a intenção de resgatar as origens ancestrais do país”, afirma Victor.
Franco buscou suprimir os anseios separatistas pós Guerra Civil Espanhola e se utilizou do sucesso do Real Madrid para promover um sentimento nacionalista que fosse a síntese de uma Espanha vitoriosa. No caso da seleção nacional, o ditador não se fez muito presente. Segundo Victor, há duas hipóteses que justificam esse fato: “O estilo de jogo ofensivo da seleção nasceu no País Basco [região separatista na Espanha]. Havia também a associação com o apelido ‘Furia Roja’ que foi dado à seleção”. Rojo também foi o nome do grupo que lutou contra os falangistas na Guerra Civil. Por esses motivos, é possível que Franco tenha evitado se associar a essas imagens já consolidadas.
Benito Mussolini, fundador do movimento fascista e líder da Itália fascista até 1945, foi o contrário. Inicialmente, o governante tentou criar um clube da capital para sintetizar os valores fascistas e alimentar o sentimento nacionalista. Uma das estratégias foi a de retomar o passado grandioso dos romanos, por isso o símbolo da Associazione Sportiva Roma, time do projeto, é a Loba. O plano falhou e hoje a Roma é um dos redutos da esquerda no futebol italiano.
O ditador viu na seleção um lugar possível de apelo ao nacionalismo. Mussolini buscava o sucesso esportivo independentemente da origem dos jogadores, por isso não proibiu a convocação de atletas naturalizados. Assim, quando a Itália foi campeã do Mundo em 1934 — com jogadores brasileiros no elenco — jogando no seu próprio território, o regime se aproveitou da situação para passar a impressão de que a Itália era uma nação estruturada e poderosa. Consequentemente, o fascismo foi atrelado à conquista.
No caso de Hitler, líder da Alemanha nazista entre 1933 e 1945, o futebol não foi o foco, e o governante investiu principalmente nas Olimpíadas: “Era uma oportunidade de fazer uma exaltação muito maior do que o futebol era capaz. As Olimpíadas eram uma competição com mais reconhecimento e poder político. Hitler utilizou valores estéticos gregos e os deslocou para a Alemanha nazista, tanto na arquitetura quanto nos corpos dos atletas”, comenta Victor. “Na configuração desses regimes, o nazismo priorizava muito mais a questão da raça ariana”, completa, e isso pode justificar a preferência pelos valores clássicos das Olimpíadas.
No futebol, Hitler se aproximou de um dos clubes mais populares na época, o Schalke 04, formado por operários carvoeiros. Apesar de não ser uma relação tão explícita como nos casos espanhol e italiano, o clube alemão conquistou seis dos seus sete títulos nacionais durante o período em que Hitler esteve no poder.
A importância do futebol para a mobilização e nacionalismo também foi aproveitada no Brasil. Getúlio Vargas e a Ditadura Militar utilizaram-se do esporte para exaltar as capacidades de desenvolvimento dos seus regimes. As marchinhas da Copa de 1970, por exemplo, faziam um forte apelo ao sentimento pátrio, e a vitória da seleção foi utilizada como propaganda junto com o “Milagre Econômico”.
Em contrapartida, o futebol também foi visto como um elemento divisor em alguns contextos. Esse ponto de vista levou alguns líderes a se distanciarem do esporte. Além disso, a perspectiva da vitória e do sucesso esportivo era essencial para propaganda e exaltação da nação. Os países que não tiveram esse sucesso estabeleceram outra relação com o esporte. Foi o caso de Salazar, ditador português que procurou se aproveitar do futebol, mas repensou essa proximidade após sofrer uma goleada para a Espanha nas eliminatórias para a Copa de 1934.
Mas sob a perspectiva do controle institucional, esses líderes procuraram exercer sua influência para que a estrutura esportiva estivesse alinhada ao regime, independentemente dos resultados positivos ou não.
Apesar da proximidade que esses e outros ditadores tiveram com o futebol, é importante considerar que essa relação foi multifacetada, portanto não pode ser simplificada como se o esporte servisse unicamente para a manipulação e controle por parte dos governantes. Além disso, essa convergência foi construída a partir de elementos diferentes e particulares em cada situação.
O esporte foi um instrumento importante para a propaganda dos regimes e um elemento relevante na promoção dos nacionalismos que alimentaram esses governos, mas outras relações entre futebol e nacionalismo são possíveis
Separatismo e independência
Os elementos de materialização do nacionalismo, como hino e bandeira, também são importantes para unificar regiões e criar um sentimento de identidade e pertencimento entre povos. Essa questão é muito aparente na Espanha. Regiões espanholas como o País Basco e a Catalunha têm no futebol um elemento de exaltação e representação de sua cultura: “Principalmente Barcelona [clube catalão] e Athletic Bilbao [clube basco] usam o futebol para trazer questões ligadas aos seus regionalismos”, afirma Victor. “Essa aproximação entre clubes e regiões se dá muito por conta do Franquismo”, completa.
Franco buscou controlar o futebol também para suprimir os anseios separatistas de algumas regiões, muito acirrados por conta da Guerra Civil Espanhola. As línguas regionais, como o catalão e o euskera, foram proibidas. “Um dos poucos, senão o único lugar público em que essas línguas eram faladas, era o estádio de futebol”, acrescenta Victor. O idioma é um elemento de comunhão fundamental para a construção da identidade e do nacionalismo. Esses ambientes se tornaram lugares de resistência e discussão de assuntos regionais que não podiam ser discutidos em outros ambientes públicos.
Essas questões acabaram sendo materializadas nos clubes, que passaram a representar um símbolo de identidade e resistência. A comunicação oficial desses times é feita na respectiva língua – e não no castelhano – e as bandeiras dessas regiões são representadas no uniforme dos clubes. No caso do Athletic, somente jogadores de origem basca são aceitos, o que alimenta ainda mais o regionalismo.
Catalunha e País Basco – entre diversas outras regiões ao redor do mundo – têm desejos muito fortes ligados ao separatismo: “Os clubes simbolizam esses anseios, materializam a identidade regional e se tornam um dos símbolos dos movimentos separatistas”, afirma Maurício. Esses times também são importantes na perspectiva de mobilizar os elementos nacionais e colocá-los em disputa. Quando jogam, por exemplo, Barcelona contra Real Madrid, é simbolicamente um jogo da Espanha contra a Catalunha. Isso pode ser visto na imprensa, nas arquibancadas – já que muitos torcedores levam bandeiras de independência e vaiam o hino espanhol antes da partida – e no campo. Alguns jogadores aproveitam essa condição para se tornarem vozes de suas regiões, como é o caso do Puyol, ex-capitão da seleção espanhola e defensor da autonomia da Catalunha.
O esporte também é utilizado pelo Kosovo. A região busca a autonomia e independência perante a Sérvia, e vê no futebol uma forma de incentivar o reconhecimento institucional dos países que ainda não o reconhecem. “Cada vez mais esses grupos e países buscam no esporte um modo de afirmação nacional e reconhecimento internacional”, completa Maurício.
A existência de delegações esportivas em países como o Kosovo é um importante fator simbólico, já que permite a valorização e divulgação dos símbolos como bandeira e hino nos eventos esportivos, mas também é um aspecto diplomático de peso. Ter o reconhecimento da FIFA e poder disputar competições internacionais oficiais é uma forma de pressionar os outros países a reconhecerem sua autonomia, e o Kosovo tem investido muito nessa questão. Há também o caso do Catar, sede da Copa do Mundo de 2022, que busca se reafirmar diplomaticamente no cenário internacional por meio de eventos esportivos.
O elemento da colonização também se faz presente. É muito comum que seleções europeias tenham jogadores descendentes de ex-colônias ou até mesmo nascidos nelas. Para Victor, entretanto, “é interessante notar que quando o país ganha, como por exemplo a França na Copa de 2018, é ‘a França que ganhou’, mas quando o país perde, a culpa recai sobre esses jogadores, principalmente os africanos e árabes”.
Essa questão ficou clara com a Alemanha, também em 2018. Quando o país foi eliminado, a culpa e as críticas recaíram sobre os jogadores descendentes de turcos, como se eles fossem os únicos responsáveis pelo péssimo desempenho. Além disso, as seleções menos competitivas, como as de ex-colônias, são muito prejudicadas quando perdem bons jogadores para os países mais competitivos, isso contribui para a disparidade no esporte e torna mais difícil utilizar o futebol como elemento de afirmação.
De acordo com Victor, para pensar a promoção do nacionalismo no esporte atualmente, sem a égide fascista dos casos mencionados anteriormente, é importante considerar de onde essas manifestações se originam: “O nacionalismo está muito associado com a extrema-direita e as idéias de pátria, orgulho e defesa do território. Normalmente essas manifestações nacionalistas não partem de setores progressistas. Talvez você não encontre o lado progressista nos discursos nacionalistas”.
Apesar da materialização de disputas por meio do futebol e a relação sólida entre o esporte e o nacionalismo, relação essa que foi aproveitada por líderes fascistas, não devemos ver o futebol unicamente como instrumento de controle. Há também o outro lado. O futebol também é um ambiente de resistência e foi, inclusive, instrumento de oposição aos regimes fascistas mencionados.