A abertura
11 de fevereiro de 2019. Tribo Urbana de férias. Foi ali que essa reportagem começou. Em um dia ensolarado, peguei o ônibus, depois o trem, depois o metrô, e fui conhecer esse grupo de teatro. E é sobre isso que eu quero falar.
Tribo Urbana é um grupo do SESC Consolação que faz parte de um projeto maior chamado Juventudes. Esse projeto busca desenvolver atividades em todos os SESC’s SP para jovens de 13 à 29 anos, a fim de abranger as diferentes formas de juventudes que muitas vezes não possuem espaço para se expressar.
Cada SESC tem a liberdade de criar seu próprio programa, ou seja, as atividades são completamente diferentes entre as unidades. Elas vão desde dança, passam pelos esportes e chegam até o teatro, que é o estilo da iniciativa localizada na unidade Consolação.
Eu descobri o Tribo Urbana sem querer, um retweet que apareceu no feed estava elogiando o projeto e sugerindo que fizesse uma inscrição. Fiquei curiosa e fui atrás. Me inscrevi e naquele dia 11 tive meu primeiro contato com o que, mais para frente, eu viria a descobrir que ia muito além de apenas um grupo de teatro.
Ao longo daquela semana tivemos uma “mini experiência” do que seria conviver naquele ambiente durante o ano: exercícios utilizados nas práticas teatrais foram realizados, além de vários outros que treinavam a atenção, o olhar, o modo de andar, a convivência, e a autoanálise. Tudo isso em uma semana. Ao fim não tive dúvidas: precisava voltar.
Ao longo do semestre às vezes era difícil compreender até que ponto todos aqueles exercícios se relacionavam com o teatro. “Andando pelo espaço” era sempre o primeiro comando que ouvíamos de Tathiana Valério e Eduardo Leite, nossos professores.
Mas o que representa o Tribo Urbana na vida de quem passou por ele? Busquei entrevistar alguns alunos que fazem parte do projeto e aqui estão seus depoimentos.
O enredo
Júlia Brasileiro, estudante do Ensino Médio
“Eu sempre quis fazer teatro, mas queria procurar um lugar que fosse de graça ou com o preço mais acessível, porque as escolas mais bem faladas de teatro são todas bem caras.” Júlia resolveu procurar no SESC e encontrou o Tribo. Foi em uma apresentação de encerramento, em 2016, pela qual se encantou. Não era uma peça tradicional com começo, meio e fim, era mais um compartilhamento das experiências que eles tinham dentro do projeto, uma apresentação dos exercícios que eram realizados. “Logo no final, tinha uma lista onde você poderia se inscrever para o próximo semestre e então resolvi que seria ali que eu faria teatro.” Como, naquele ano, Júlia não conseguiu se inscrever por conta das vagas terem sido preenchidas, acabou fazendo violoncelo no próprio SESC, apenas “para não ficar parada”. No ano seguinte, conseguiu entrar para o projeto e, desde então, faz parte dele.
Sobre o impacto do Tribo em sua vida, ela diz: “Mudou bastante, principalmente em relação à minha ansiedade. Além disso, acho que antes eu tinha mais dificuldade com meu corpo no espaço, não no sentido de não me sentir confortável, mas de me locomover mesmo, andar na rua, tropeçar… Ou sei lá, a maneira como eu me sentava na sala de aula.” Depois do Tribo tudo isso melhorou e passou a ter mais consciência corporal.
Sua fala também mudou muito. Antes não se sentia à vontade para falar em público e agora consegue sem muitos problemas. “Sem contar na hora de me comunicar diretamente com alguém. Eu já tinha essa ideia de ‘olhar olho no olho’, mas tinha receio, não sabia como fazer isso. Sempre parecia que eu estava me expondo demais.” A Tribo ajudou-a a superar essas inseguranças e foi por isso que decidiu continuar ali.
Paola Segeti, cantora
“Eu nunca tinha feito nada no SESC, mas sempre tive muita vontade de fazer teatro, porém estava sem grana.” Um dia, conversando com uma amiga na faculdade, Paola descobriu sobre o projeto e, por ser gratuito, resolveu participar de uma aula. “Quando eu cheguei pensei que seria algo mais tradicional, mas superou muito as minhas expectativas!” Ela já tinha feito teatro quando mais nova mas, por ser cantora, se tratava de uma obrigação. “Era uma coisa mais para a minha vida profissional mas aqui passou a ser mais por algo pessoal mesmo.”
Assim como Julia, o Tribo mudou muita coisa em sua vida. Ela diz que chegou a ter várias crises de personalidade e até na faculdade comentaram que estava diferente. “Acho que passei a ser mais verdadeira comigo mesma, comecei a olhar para coisas que eu nunca tinha olhado antes e tentar enfrentar meus ‘demônios’.” O grupo de teatro foi algo totalmente fora da sua zona de conforto. Como faz música, muita coisa também mudou artisticamente: todo o seu repertório, músicas que cantava e já não faziam mais sentido, além da forma como interagia com a plateia e com a banda.
Lá eles fazem alguns exercícios que, mesmo sendo teatrais, mexeram muito com ela. Certo dia tiveram que criar uma sequência de movimentos, chamada partitura corporal, e depois adicionar sons a eles. Isso foi bem difícil para ela pois o som não saia de jeito nenhum. Paola conta que quando finalmente conseguiu gritar, parecia estar tirando todo o peso que tinha dentro de si.
“Enfim, acho que não quero ser atriz profissionalmente, mas com certeza vou levar muitas coisas daqui para as minhas apresentações. Tentar transformá-las em algo com mais significado”, diz a cantora.
Raphaela Galhardi, professora de inglês
Raphaela estava vasculhando o site do SESC em busca de um grupo que entrasse mais em contato com arte e nessa busca encontrou o Tribo. Leu a sinopse e resolveu se inscrever. Ela fez teatro quando criança, mas servia apenas como uma forma de ocupar seu tempo. “O que eu sinto de diferencial no Tribo é que ele está muito sincronizado com o que está acontecendo na minha vida. Os mesmos questionamentos que tenho no teatro, eu tenho lá fora. Tipo, como me entender melhor, ter mais inteligência emocional.” Ela diz que gosta muito de estar lá e hoje sente mais orgulho das coisas que gosta. “Esse é um ambiente onde as pessoas consideram isso algo importante. Porque as de antes não consideravam.”
Além das reflexões, ela gosta muito dos exercícios propostos, como aqueles em que precisa dar significado a algum movimento. “Eu acho muito interessante porque quando você não faz o movimento conscientemente você é levado para um lugar muito distante. É muito divertido ver também como as pessoas se comportam e significam essas coisas.” Raphaela também curte muito os exercícios em que você precisa se conectar com o outro, por exemplo observar e comentar os movimentos que a outra pessoa está fazendo.
“Eu pretendo continuar fazendo tudo o que envolve arte. Estudar um pouco de música, de dança de teatro e de artes plásticas, eu sou muito ligada à isso e o Tribo contribui para que eu desenvolva algumas dessas habilidades!”
Malu Adriano, estudante de Serviço Social
Procurando no site do SESC coisas para ocupar seu tempo, Malu conheceu o projeto. Ela chegou a fazer técnico em teatro no Ensino Médio, mas eu parou. “Então eu estava procurando um jeitinho de voltar para o Teatro com calma e encontrei isso no Tribo.”
Sobre sua experiência no Tribo, ela conta: “Eu acho que o tribo me trouxe mais para dentro de mim do que para fora. Acho que consigo olhar mais para mim mesma e não me preocupar tanto com o exterior. Eu era muito focada em tudo o que era movimento social e acabava deixando de lado a ‘Malu’.”
Os exercícios que mais gosta são os de contato consigo mesma ou com outra pessoa, como os de massagem. Ela acredita que geram uma sensação muito boa. Mas exercicios de muita movimentação acabam a assustando: “Eu perco o controle e é muito diferente do que o que eu estou acostumada.”
Bia Damilakos, estudante de arquitetura
Bia descobriu o Tribo através de seu ex namorado e de seu melhor amigo que participavam do projeto. “Eles fizeram, acharam incrível e me recomendaram, daí eu vim.” Ela fez teatro quando tinha 12 anos e gostava muito, mas era muito caro e por isso não continuou. Agora com o SESC perto de casa e de graça fica mais fácil.
“O Tribo me proporcionou a oportunidade de conhecer pessoas incríveis, com energias incríveis e com uma intenção muito parecida com a minha, então fica muito fácil se conectar com elas.” Além disso ele tem a ajudado muito na sua forma de expressão e até a se encontrar consigo mesma. Hoje se sente muito melhor com pessoa que é, e mesmo fora desse espaço, consegue demonstrar coisas que antes não conseguia.
No semestre passado o grupo trabalhou com escrita, o que gerou uma grande dificuldade para Bia. Já nesse semestre os trabahos foram mais ligados ao corpo, então, para ela, fluiram de uma forma mais envolvente, com mais entrega.
“Eu estudo arquitetura e mesmo que não pareça até nisso o Tribo me ajudou, pois envolve muito a criatividade, então exercitando ela aqui eu consigo aplicar melhor na minha vida profissional e de estudante.” Ela já chegou a se imaginar como atriz, mas hoje em dia não é algo que queira profissionalmente. Bia afirma que o Tribo ajuda não só quem quer ser ator, mas também a quem quer se conhecer melhor.
Esses são depoimentos de algumas pessoas que pude conhecer durante o período em que fiz parte do projeto. E compartilho das mesmas impressões. Não é só teatro, é uma forma de se conhecer melhor, de se entender no mundo.
O desfecho
No dia 28 de Junho houve a apresentação de encerramento do projeto, da qual eu participei como mera observadora. Tratava-se de uma apresentação sem falas (com exceção de um único momento em que um poema foi recitado), mas com muita emoção. Não era uma narrativa linear, com começo, meio e fim. Muito menos uma história em que fosse claro identificar os personagens e suas ações. Mas era uma apresentação criada para expressar sentimentos. A mistura de movimentos com sons — sons, não palavras — gera inquietude na plateia. Os poucos momentos em que tudo parecia estar caminhando para uma cena tranquila eram interrompidos por quedas bruscas que vinham acompanhadas de gritos agonizantes. Pessoas inquietas em suas poltronas. Pelos arrepiados. Pura emoção.
Ao fim da apresentação aconteceu um bate-papo sobre o que era a narrativa e como ela foi criada. A conversa com a plateia mostrou que cada pessoa imaginou algo diferente. Para alguns parecia retratar um nascimento, para outros a morte. Eu, que já sabia a intenção de toda aquela apresentação, sorri. Eles tinham alcançado seu objetivo.
A montagem da peça se iniciou em uma aula, quando eu ainda fazia parte do grupo. Tínhamos que, com os nossos corpos, dar vida a algum elemento — ar, água, terra e fogo. A partir daí criamos partituras corporais individuais, que se transformaram mais tarde em cenas dessa peça.
Não era esperado uma resposta certa. Para cada um a narrativa podia, e devia, possuir um significado diferente. A inspiração nos elementos serviu para dar vida aos sentimentos de quem estava interpretando. Mas, no fundo, tratava-se apenas disso: emoção. E como cada um faria a interpretação, era algo completamente individual.
Ao perguntar qual a sensação de ver a apresentação para Eduardo Leite, um dos responsáveis pelo projeto, ele responde: “Vê-los apresentando é gratificante, fico sempre muito feliz, porque é ali que você vê que o seu esforço faz sentido, vale a pena. É na apresentação que você percebe como funcionou o seu trabalho, e o trabalho dos jovens sobre si mesmos.”
No dia 28 de junho, peguei o metrô, peguei o trem e depois o ônibus. Pensando em como os jovens merecem saber que existe, sim, cultura acessível. E que eles não só podem como devem ter acesso à esse tipo de programa. As Juventudes precisam ser vistas, ouvidas e entendidas. Não pelos outros, mas por elas mesmas. Foi assim que cheguei em casa: emocionada. E é assim que essa reportagem se encerra.