A renomada obra de Fiódor Dostoiévski, Noites Brancas (Domínio Público, 1848), ganha vida nos palcos do Teatro Itália, situado próximo à estação República do metrô, em São Paulo. A peça, com texto adaptado pela Cia Bípede de Teatro Rupestre (@companhiabipede), oferece uma experiência única que combina literatura com realidade e emociona o público presente.
“A beira do rio Neva em São Petersburgo, ele, solitário, busca em sua vida algo que a marque e que a faça valer a pena ser vivida. Ela, jovem e inocente, aguarda o retorno de seu grande amor prometido há exatamente um ano”.
– Chamada do espetáculo em peça publicitária
A montagem narra a história dos personagens Sonhador e Nástienka, que se encontram à beira do rio Neva, em São Petersburgo. Sonhador, em busca de um significado para sua vida solitária, cruza o caminho de Nástienka, que espera pelo retorno de seu grande amor há um ano. Durante quatro noites, testemunha-se o encontro desses personagens e a emergência de seus sentimentos, iluminados pelas estrelas e pelo sol das noites brancas, um fenômeno que clareia o céu na madrugada da primavera russa.
A adaptação da obra de Dostoiévski para o palco traz uma abordagem moderna, ao mesclar momentos de descrição estática da cena — como na ocasião em que o Sonhador ergue sua bengala contra Nastenka e descreve essa mesma situação — com circunstâncias em que os personagens vivem a própria história sem precisar da mediação de um narrador. Essa estratégia, que mantém a poética original do autor, proporciona uma experiência imersiva e tocante para os espectadores.
Ao assistir Noites Brancas, o público é conduzido por uma jornada emocional e reflexiva, na qual temas universais como solidão, busca por significado e os desafios do amor são explorados de maneira profunda e sensível. A peça lembra da importância da conexão humana e da valorização dos momentos passageiros que podem iluminar vidas.
Livro: o terceiro ator
Por se tratar de uma obra literária, a interação com o leitor — agora plateia — também esteve presente durante a apresentação. A obra é fundamentalmente um diálogo entre Sonhador e leitor, por isso, as interlocuções entre este personagem e o público foram mantidas, com o objetivo de preservar a ideia de que ainda se trata de um relato suportado em um livro. Esse recurso é utilizado como uma forma de quebra da quarta parede, técnica amplamente utilizada no teatro. A aparição de Nástienka, no entanto, é realizada de uma forma que o protagonista abandona a posição de narrador, performada no início da obra, e passa a ser um personagem inteiramente envolvido na trama da jovem moça, ao trocar o foco da peça da narrativa que objetiva contextualizar os espectadores, para a atuação dos quatro dias em que se passa a obra e seus diálogos.
“[…] Questão esta que, para dizer a verdade, só é costume levantar-se quando somos novos, mesmo muito novos, querido leitor.”
Noites Brancas, Fiódor Dostoiévski, p.1
Em diversos momentos, a figura do livro é trazida à mão dos personagens como forma de referenciar a fonte na qual a peça foi inspirada. Apesar de ser um clássico da literatura mundial, alguns espectadores, que não conheciam a obra, se depararam com o inesperado fim da trama. Para estes, o livro torna a aparecer, dessa vez em um tom de resolução, trazendo o desfecho da história em uma carta enviada por Sonhador para Nastenka, após o evento final da trama (que não será revelado por motivos de spoiler). Essa carta é lida pelo ator, que torna a monologar diretamente com o público por meio desse texto.
Com o fim trágico, porém belo, a peça foi ovacionada em unanimidade. Dezenas de pessoas que compareceram à pré-estreia estavam contentes ao final do espetáculo.
O espaço
O espetáculo acontece no tradicional Teatro Itália Bandeirantes, situado no subsolo do Edifício Itália. Inaugurado em 1966, o estabelecimento abriga peças de dramaturgia dos mais variados tipos, servindo como um expoente na “história artística da metrópole paulista, e da memória significativa da arte brasileira”, segundo seu próprio site. O local é acessível para pessoas com deficiência, com rampas e pontos exclusivos para cadeira de rodas.
A pré-estreia da peça, aberta ao público mediante inscrição, teve um coquetel organizado pela lanchonete local. Os petiscos foram fornecidos a todos os presentes, proporcionando um pré e pós-espetáculo movimentados no hall.
No horário do espetáculo, há um merchandising de produtos relacionados à peça, que vão desde broches e desenhos exclusivos até pequenas estátuas de personagens da montagem, todos adequados à identidade da cor branca, que tematiza a obra.
A companhia e a produção da peça
A Companhia Bípede de Teatro Rupestre é a responsável pela adaptação e realização da peça. A preparação intensa e o trabalho em conjunto resultaram em performances emocionalmente impactantes, capazes de cativar e transportar o público para a atmosfera única da história. A Jornalismo Júnior conversou com três de seus membros, que também fundaram a companhia.
Felipe Sales, diretor da peça e um dos fundadores da companhia, conta que a produção do espetáculo foi rudimentar no início. “Começamos a ensaiar em 2021, no meio da pandemia, e por isso precisávamos de uma peça pequena, que exigisse pouco espaço e poucos atores. Iniciamos com o caixa zerado e arrecadamos dinheiro para essa montagem. A produção não para nunca, toda temporada é um recomeço”.
Alana Oliveira, que além de ser parte da produção, atua como Nástienka, explica que o processo de criação começou na leitura do livro e seleção de partes mais importantes que se encaixassem na proposta de uma peça de teatro. “Dostoievski é um autor muito prolixo, ele é conhecido por ser assim. O trabalho de adaptação foi de manter essa impressão e deixar mais conciso para que a peça pudesse acontecer”, conta a atriz.
Thiago Winter, que dá vida a Sonhador, o qual ele descreve como “mágico, mas ainda assim pé no chão”, destaca que houve um desafio com relação ao texto e ao tom que a peça exigia: Ela não poderia ser muito densa, mas também não poderia perder o ambiente encantador que a rodeia. “Tivemos um cuidado muito grande para não perder a precisão do texto e nem a sensação de que o espectador está lendo o livro através da peça”.
A Companhia, que surgiu como um projeto de conclusão de curso de pós-graduação, inaugurou com Noites Brancas, cuja primeira temporada foi realizada em fevereiro de 2022 no Teatro Leopoldo Froés. O grupo tem outra peça pronta – que saiu de cartaz em maio de 2023 – chamada A Gaivota, uma releitura da peça de Anton Tchekhov, apresentada no Centro Cultural Olido. Apesar de recente, Felipe Sales destaca que os profissionais da companhia têm experiência com o teatro e são muito qualificados. “Somos uma companhia nova, mas não somos novatos”.
Para assistir
A peça possui classificação indicativa para maiores de 12 anos. É possível comprar o ingresso no local sem taxa de terça a domingo, das 16h às 21h, ou até o início do espetáculo. As formas de pagamento são dinheiro, cartões de crédito e débito. Além disso, as vendas também acontecem no site da Sympla ou do Sampa Ingressos. Os ingressos custam 60 reais, com possibilidade de meia entrada e, no caso do Sympla, o Ingresso Amigo também está disponível e custa 20 reais. As taxas variam entre três e nove reais.
A temporada da peça no Teatro Itália vai até o final de agosto, com sessões às 19h. Com essa emocionante adaptação de Noites Brancas de Dostoiévski, a Cia Bípede de Teatro Rupestre encanta o público, proporcionando uma experiência teatral marcante que transcende a literatura e se conecta profundamente à realidade dos espectadores.
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FICHA TÉCNICA
Realização: Cia Bípede
Direção: Felipe Sales
Elenco: Alana Oliveira e Thiago Winter
Produção executiva: Arthur Maia
*Imagem da capa: Acervo pessoal/Jônatas Fuentes