Jornalismo Júnior

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Rir da desgraça: como o humor não tira a seriedade da crítica para as telonas

Diversas produções ao longo da história mostraram que a comédia é uma forte ferramenta de denúncia das adversidades do mundo
rolo de filmes de comédia

Quando o falecido ator e comediante brasileiro Paulo Gustavo, vítima da Covid-19, disse que “rir é um ato de resistência”, suas palavras já mostravam a força do humor. Um gênero geralmente considerado de baixo entretenimento, muito por conta da cultura das obras pastelões, os filmes de comédia possuem títulos que causaram grandes questionamentos sociais e filosóficos. Para saber mais, o Cinéfilos  procurou alunos da graduação em cinema da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) para conversar sobre a questão do humor no audiovisual.

O que leva alguém à comédia?

Essa pergunta é um consenso para os alunos entrevistados: a busca pelo humor está relacionada com a vontade de distração e com a fuga da realidade. Segundo Lucas Borovina, “o que leva uma pessoa a ver um filme de comédia é justamente a proposta de ser algo engraçado, descontraído e que, em alguns casos, não exige uma total atenção do espectador, já que ele está assistindo para rir”.

Victor Ferrendes completa que o humor “é uma fuga da realidade, ver como as coisas podem ser levadas no bom humor, poder se distrair de problemas e ter um momento de lazer e alegria”. Cauã Martins também concorda ao dizer: “Muitas vezes, as pessoas procuram a comédia para se distrair e ter um momento de descontração”, mas também destaca que “existem filmes de comédia que vão para um lado de crítica social utilizando-se do humor para criar essa crítica”.

A comédia possui essa característica de evasão, de olhar o mundo com outros olhos, mas sem perder a crítica do mundo material. “Imagino que tanto filmes de humor, assim como obras de outros gêneros, possuem a mesma capacidade de trazer reflexões, tudo depende do enredo”, afirma Lucas. “Muitos filmes, inclusive, utilizam do gênero de comédia justamente para passar uma mensagem forte ao público através de uma quebra de expectativa, já que muitas pessoas podem se surpreender ao ver uma crítica em um filme cômico”, acrescenta Victor.

Como destaca Henrique Fernandez, isso não é um fenômeno recente: “As comédias trazem tantos elementos quanto qualquer outro gênero para fazer o espectador refletir, como já foi demonstrado por [Charles] Chaplin há mais de cem anos”.

Uma breve história do riso

A conciliação do riso com grandes atrocidades na história humana, como a ascensão nazista e as guerras, ou até com problemas recorrentes, como a pobreza e a miséria, data desde os berços da civilização. Os teatros gregos, o circo romano, os trovadores medievais e a literatura já faziam uso do humor como denúncia milênios antes do cinema surgir. Com a imagem, o som e sua disseminação facilitada, o audiovisual  potencializou as formas de comunicação ao incorporar o sarcasmo e a ironia. 

Diversos teóricos arriscaram entender e definir o porquê do público rir da desgraça. Henri Bergson, em seu livro O Riso (1900),  reuniu teorias do humor vigente e sintetizou-as  com conhecimentos já estudados, desde a psicanálise até a filosofia. No pensamento do pesquisador, o riso seria um mecanismo humano, algo que se solta sozinho em um momento de tensão, por meio do sentimento de desarme, com a quebra da expectativa. Isso significa que as pessoas tendem a rir sobre coisas absurdas, que escapam do imaginário ou do padrão cotidiano.

A obra de Bergson colabora para entender que, quando um espectador ri de algo absurdo em filmes de comédia, ele capta a informação de uma forma passiva. Aquilo comove e muda o entendimento sobre o alvo criticado. Caso uma pessoa veja um filme e solte grandes risadas, aquilo permanece na obra junto com o tema e isso é melhorado com a capacidade artística do ator ou do diretor em questão, como mostram alguns exemplos na história do humor na sétima arte.

Chaplin, o gênio da imagem e (às vezes) do som

As peripécias vividas pelo personagem de Chaplin representam as adversidades dos trabalhadores das fábricas inglesas
As peripécias vividas pelo personagem de Chaplin representam as adversidades dos trabalhadores das fábricas inglesas. [Imagem: Divulgação/MK2 Diffusion]

“A vida é uma tragédia quando vista de perto, mas uma comédia quando vista de longe”, diz a filosofia de Charles Chaplin, que ultrapassou as telas e trouxe diversos clássicos para a história do cinema. O inglês é considerado o maior entusiasta do cinema mudo, que, com poucas ou nenhumas falas em um filme, conseguiu aprofundar temas com humor e ironia. 

Dentre suas obras, Tempos Modernos (Modern Times, 1936) se destacou  com a narrativa de denúncia das péssimas condições de trabalho que o proletariado médio vivia na época. Na trama, um trabalhador, alienado do seu processo produtivo e explorado pelos seus chefes, se envolve em diversas trapalhadas.

Cauã relata sobre a sua experiência com o filme: “Lembro de achar engraçado os movimentos do Chaplin, mas lembro também de ser o primeiro contato com a questão das fábricas e a vida nelas”. Lucas ressalta ainda que “apesar de ser um filme de comédia e mudo, [Tempos Modernos] traz uma crítica muito forte ao sistema industrial”. Carlitos nas Trincheiras (Shoulder Arms, 1918),  e O Grande Ditador (The Great Dictator, 1940) são filmes que também refletem a fala de Chaplin, quando criticam condições e personalidades de ambas as Guerras Mundiais com humor e comunicam a força política das atuações do cineasta.

Monty Python, os comediantes do audiovisual

A Vida de Brian brinca com o imaginário religioso e debate os conceitos de crença, fé e intolerância religiosa
A Vida de Brian brinca com o imaginário religioso e debate os conceitos de crença, fé e intolerância religiosa. [Imagem: Divulgação/Carlotta Films]

Grupos de humor como Porta dos Fundos e Os Barbixas se tornaram grandes destaques na atualidade, principalmente com a difusão da internet. Um movimento semelhante aconteceu na cinematografia inglesa dos anos 1970 com o grupo Monty Python – que começou  no teatro e, posteriormente, seguiu para outras mídias -, composto por diversos atores e colaboradores que se juntavam para produzir filmes sarcásticos. Com temas como intolerância religiosa e alienação política, o conjunto demonstrou ousadia no cinema.

A Vida de Brian (Monty Python’s Life of Brian, 1979) fala sobre um homem da Judeia que foi confundido com o Messias cristão durante a época do império romano. Na trama, Monty Python explora o crescimento do conservadorismo ao distorcer – em prol de uma narrativa cômica – a história do evangelho bíblico. Além disso, a obra mostra as falhas da fé humana, as ironias da tirania e muitas outras críticas. 

Victor destaca que a capacidade adaptativa do grupo teatral consagra a obra como uma das maiores comédias do cinema. Além disso, ele considera o filme como “engraçado, politizado, profundo em certos casos, e não pula para uma apelação que nos dá apenas boas risadas. É um clássico da comédia, super divertido e reflexivo”. Henrique complementa que “assim como todo trabalho do grupo, A Vida de Brian foi muito influente e ajudou a popularizar essa forma de humor”.

Também é creditado ao grupo o filme Em Busca do Cálice Sagrado (Monty Python and the Holy Grail, 1975), que une a comédia e a sátira com a história de Camelot como pano de fundo. “Hilário e absurdamente bizarro, cada cena é melhor que a última e tudo cresce para o final mais engraçado que já vi em um filme. É incrível a criatividade do grupo para colocar piada em todo lugar”, define Henrique.

Os áureos anos 1990

Tom Hanks incorpora o personagem Forrest Gump, um jovem de uma cidade pacata que influencia o rumo de diversos fatos históricos sem querer
Tom Hanks incorpora o personagem Forrest Gump, um jovem de uma cidade pacata que influencia o rumo de diversos fatos históricos sem querer. [Imagem: Divulgação/Paramount Pictures] 

A década de 1990 foi marcada por um florescimento da sétima arte e, com o humor cinematográfico, não foi diferente: diversas obras entraram no hall da fama pela sua profundidade crítica e filosófica. Dentre elas, Forrest Gump – O Contador de Histórias (Forrest Gump, 1994) ganhou o público ao combinar o humor com a vida de um combatente americano no Vietnã, a rigidez social contra pessoas com dificuldade de sociabilização e a futilidade da sociedade de consumo. 

“O mais impressionante foi o poder de imersão que a história trouxe, pois, mesmo o personagem Gump vivendo situações gigantescas, tudo aquilo era muito crível”, afirma Cauã. Segundo ele, a fantasia da obra nada mais é do que uma ridicularização da realidade vivida por diversas pessoas da sociedade americana e do mundo. Lucas complementa com a dualidade do longa: “Há vários momentos sérios e até que bem tristes na vida do protagonista, mas, mesmo assim, [o filme] possui momentos muito cômicos e engraçados”.

O Truman de Jim Carrey abraça o humor em uma complexa simulação que faz da vida do personagem um programa de TV
O Truman de Jim Carrey abraça o humor em uma complexa simulação que faz da vida do personagem um programa de TV. [Imagem: Divulgação/Universal Studios]

O Show de Truman – O Show da Vida (The Truman Show, 1998), outro longa da década,  apresenta a vida do personagem Truman (Jim Carrey), que vive em uma espécie de Big Brother gigantesco. Com sua carga filosófica, o filme se configura como uma narrativa crítica à indústria cultural e ao lucro antiético. 

“Filme interessante pela sua história cativante. É um longa muito relevante para a carreira do Jim Carrey, mas também pelo contexto em que foi lançado, onde os reality shows tinham se tornado uma parte relevante da televisão” afirma Henrique. “É uma das melhores mensagens e criação de mundo que já vi um filme passar. Ele traz muito essa empatia com o Truman, dando a sensação de ‘o que eu faria se eu estivesse nessa situação?’”, completa Lucas.

Mais um nome do audiovisual da época é Quero Ser John Malkovich (Being John Malkovich, 1999), que apresenta críticas humorísticas ao egocentrismo que as condições de trabalho e de vida trazem para pessoas comuns, à liquidez do amor e às mecânicas de influência e poder. 

Brasileiro ri da cara do perigo

Seja nas roupas ou no cenário, as dificuldades enfrentadas pelo sertão nordestino são retratadas com a leveza do humor em O Auto da Compadecida
Seja nas roupas ou no cenário, as dificuldades enfrentadas pelo sertão nordestino são retratadas com a leveza do humor em O Auto da Compadecida. [Imagem: Divulgação/Columbia Pictures do Brasil]

O cinema nacional também é recheado de obras de comédia, que tratam do contexto em que parte da população está imersa. O Auto da Compadecida (2000) retrata grandes problemas sociais enfrentados por grupos que moram afastados das metrópoles litorâneas, como fome, sede e violência. O filme trabalha com o imaginário folclórico interiorano, com tópicos religiosos e culturais que transmitem a história brasileira com um ar cômico.

Henrique classifica a obra como “a melhor comédia brasileira. […] Uma obra muito importante para o humor no Brasil, se tornou referência para o gênero dentro e fora do país”. Para Lucas, a experiência do filme consiste em “você entrar nesse universo de Grilo e Chicó e ser guiado por eles através de muitas situações cômicas e caricatas”.

Já no campo da política, O Candidato Honesto (2014), filme protagonizado por Leandro Hassum, mostra como seria a carreira de um deputado, caso este sempre falasse a verdade – o que revela esquemas de propina e corrupção na trama. Com um humor irônico, a crítica contra o sistema do executivo brasileiro  denuncia a relação entre o ato de mentir e a ascensão política. Cauã detalha que o filme “vem como uma sátira ao cenário político do Brasil, e era em um momento onde a discussão estava muito aflorada”.

Revisionismo pela risada

O diretor Taika Waititi, o imaginário Hitler de Jojo Rabbit, trabalha com a mistura do horror nazista, do humor e do drama do crescimento de Jojo
O diretor Taika Waititi, o imaginário Hitler de Jojo Rabbit, trabalha com a mistura do horror nazista, do humor e do drama do crescimento de Jojo. [Imagem: Divulgação/20th Century Fox]

Nos últimos anos, o cinema  tratou de temas pouco explorados pelo humor na história humana. Jojo Rabbit (2019), de Taika Waititi, apresenta uma ridicularização dramática do pensamento nazista durante a segunda guerra mundial. Para transmitir o horror por meio do inacreditável, o filme trabalha com situações absurdas, como a doutrinação de pequenos escoteiros alemães, cenas caricatas da polícia secreta nazista e a amizade imaginária de Jojo Betzler (Roman Griffin Daves) com Hitler (Taika Waititi).

Henrique reflete sobre a dualidade do filme: “Muito interessante pela forma que o filme retrata o ponto de vista da criança no contexto, mescla muito bem o humor e o drama. Sempre é muito bom quando um filme consegue fazer alguém chorar e rir”. Para Cauã, ao abordar a ótica nazista, o longa expõe “esse grupo como os ridículos que eles realmente são e mostra o quão absurdo são esses ideais”. Lucas também destaca o absurdo do longa: “Esse filme junta dois universos que podem parecer sem sentido: a queda da Alemanha Nazista e o amadurecimento de Jojo”.

A estética da obra de Wes Anderson entrou no mercado com sua singularidade que destaca a marca do diretor
A estética da obra de Wes Anderson entrou no mercado com sua singularidade que destaca a marca do diretor. [Imagem: Divulgação/20th Century Fox]

O Grande Hotel Budapeste (The Grand Budapest Hotel, 2015), de Wes Anderson, também aborda diversos temas políticos do passado europeu. A perseguição dos imigrantes e a repressão nazista são eixos centrais da obra humorística, que também tem um enredo recheado de trapalhadas, romances e reviravoltas. Com recursos visuais e de narrativa consagrados pela crítica, o longa é considerado por Henrique como “um filme muito importante por trazer o diretor e seu estilo para uma nova geração”. “Por serem muitos personagens e contextos diferentes dentro de um mesmo cenário, o diretor aproveita para trazer acontecimentos dos mais diversos possíveis na vida de cada um deles”, complementa Lucas.

Um humor um pouco mais… rosa?

Novo sucesso de bilheterias, Barbie transcende a marca que leva o nome do filme e diverte o público com as pautas tratadas
Novo sucesso de bilheterias, Barbie transcende a marca que leva o nome do filme e diverte o público com as pautas tratadas. [Imagem: Divulgação/Warner Bros]

A onda rosa de Barbie (2023) trouxe à tona novamente a discussão sobre o patriarcado e as formas de representação da figura feminina. Isso tudo dentro de um filme de humor recheado de referências sobre a construção do ideal da boneca no mundo material, com a dualidade entre o mundo perfeito projetado pela Barbieland e a dura realidade enfrentada pelo gênero feminino no mundo contemporâneo.

Para Cauã, é um engano imaginar que o longa não poderia se debruçar sobre temas sociais pertinentes e ir muito além de uma cachoeira rósea: “A questão estética do filme é impecável, e essa mesma estética é trazida para o roteiro. Eu, como um homem na sociedade, tive ensinamentos muito importantes, que cada um tem seu papel, e que não é necessário apagar o outro”. “A obra aborda questões relacionadas à figura da boneca e sua relação com a sociedade, mas também traz boas risadas por meio  de uma crítica ácida e totalmente direta”, diz Lucas. Ele ainda ressalta o desenvolvimento de cada figura no longa: “A mensagem que o filme traz pode ser interpretada e inserida na vida do espectador de diversas formas possíveis, já que, praticamente, todos os personagens da trama passam por um arco de mudança”.

“A comédia é importante para o cinema”

Vitor Altavista conclui com uma análise do gênero na história do audiovisual: “A comédia é importante para o cinema, temos pouquíssimos filmes que utilizam da comédia e foram parar no Oscar ou em grandes premiações”. Ele ainda diz que o humor é uma técnica do cotidiano que exige uma grande expertise para ser aplicada com bom aprofundamento e crítica: “Ele é um artifício muito incrível, que está no nosso dia a dia. É preciso ser muito perspicaz para utilizá-lo da maneira certa”.

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