Sertanejo, a música caipira, é o gênero mais ouvido no Brasil: seja nas paradas recentes das rádios ou em aplicativos de streaming, ele cresce e marca presença constante no Top 10 de músicas mais tocadas. A dominação do mercado gera faturamento, mas também custa milhões anualmente e a procedência desse financiamento tem sido especulada. Com a crítica de duplas à Lei Rouanet, cresceram, nas redes sociais, os questionamentos sobre o uso de dinheiro público nos shows sertanejos. As investigações envolvem diversos ministérios públicos, além de grandes nomes da cena musical, agrícola e política.
Além da música, outras áreas do entretenimento brasileiro recebem influências do universo “agro”, como o audiovisual, com uma das novelas recordistas de audiência da Rede Globo, Pantanal. A propaganda agrícola em setores diferentes pode ser um instrumento para o aumentar o poder da agroindústria dentre a sociedade, mercado e política brasileiros. O protagonismo do sertanejo no meio musical é uma das principais ferramentas para o estabelecimento dessa força.
O debate sobre o financiamento público da hegemonia sertaneja ganhou destaque quando o sertanejo Zé Neto criticou a cantora Anitta durante um show no interior do Mato Grosso. A partir de uma tatuagem polêmica feita por ela em 2021, seu discurso relacionou a funkeira com o suposto aproveitamento indiscriminado da Lei de Incentivo à Cultura: “nós somos artistas e não dependemos de Lei Rouanet, nosso cachê quem paga é o povo. A gente não precisa fazer tatuagem […] para mostrar se a gente está bem ou não. A gente simplesmente vem aqui e canta e o Brasil inteiro canta com a gente”, afirma o cantor, seguido de aplausos. O Exporriso, festival em que estava se apresentando, custou um milhão de reais à cidade, sendo que apenas o show da dupla foi R$400.000,00.
Zé Neto não foi o primeiro sertanejo a se posicionar contra a Rouanet, sob a justificativa que o gênero não dependeria dos cofres públicos – Fernando & Sorocaba, Gusttavo Lima e Eduardo Costa são alguns dos principais nomes críticos da Lei. Esse posicionamento contradiz a presença majoritária de atrações sertanejas em festas públicas, implicando no uso de algum dinheiro estatal, ainda que por fora da Lei de Incentivo à Cultura. Nas redes sociais, usuários em massa questionaram o valor dos cachês que estes recebiam por shows em turnês pagas pelos governos.
Investigações sobre o tema foram abertas em vinte e nove municípios; os Ministérios Públicos de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, por exemplo, apuraram pagamentos milionários à duplas e alguns shows foram cancelados. No sul da Bahia, meses após as enchentes que desalojaram milhares de moradores, a prefeitura de Teolândia (com 15 mil moradores) desembolsou mais de um milhão de reais para financiar a Festa da Banana 2022. Com a contratação de Gusttavo Lima, o custo do festival foi maior do que o investimento para reverter o impacto da enxurrada, que ainda prejudicava a cidade.
Recortes do portal da transparência do município de Mossoró registram a contratação dos cantores e exemplifica o investimento intenso de pequenas cidades em shows sertanejos [Reprodução/Site da Prefeitura de Mossoró]
Envolvimento em escândalos de corrupção
Chamadas de “Rouanet dos sertanejos”, as Festas do Peão são tradicionais no calendário das cidades interioranas, e dependem do financiamento dos cofres públicos. Os cachês em tais shows partem dos R$80 mil, mas escalam desproporcionalmente se comparado com o tamanho do eventos: um dos casos ocorreu na cidade de São Luiz (RR), com pouco mais de 8 mil habitantes, onde Gusttavo Lima teria recebido R$800.000,00 por uma apresentação.
Já na Rouanet, o cachê por artista é limitado a R$3500,00, afirma Antônio Sobreira, ex-servidor da Secretaria de Estado da Cultura da Paraíba em depoimento ao Brasil de Fato. “A Lei Rouanet é mais transparente que um processo licitatório de prefeitura, pois um projeto para receber aprovação é analisado por 2 ou mais pareceristas, depois pode ser encaminhado para IPHAN, FUNARTE, IBRAM, Biblioteca Nacional, IBAMA, FUNAI e Fundação Palmares”, ele afirma descrevendo a primeira parte do processo de vigência da Rouanet. Em comparação, ele sugere que a ida de sertanejos famosos às pequenas cidades incita popularidade aos políticos: “tanto a Lei Rouanet como uma prefeitura pagam shows com recursos de impostos. A diferença é que a prefeitura usa para marketing político”.
Um dos maiores produtores sertanejos das últimas décadas, Juvenil José de Lacerda, conhecido como Maestro Pinocchio, discorda da relação corrupta. “Isso às vezes cai em cima do escritório do artista, que não tem nada a ver com o que está acontecendo lá na prefeitura”, afirma ele, que é sanfoneiro, cantor, compositor e agenciador de sertanejos. Em sua experiência, existe uma licitação para a contratação do artista, as prefeituras contatam o escritório que representa o sertanejo, que passa o orçamento e o valor tabelado do cachê. Ele completa: “o artista e o escritório não têm nada a ver com o que está acontecendo, se há corrupção, não tem como o escritório saber disso. Isso não diz nada a respeito do escritório”.
Às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais de 2022, Jair Bolsonaro realizou uma reunião no Palácio do Planalto com diversos sertanejos, dentre eles: Gusttavo Lima, Leonardo e Chitãozinho, da dupla Chitãozinho & Xororó.
“O presidente Jair Bolsonaro foi, em todos os tempos, o presidente mais sertanejo que já tivemos no Brasil”, declarou Chitãozinho; “Em nome da música sertaneja, estou pedindo a meus seguidores que dia 30 é Jair Messias Bolsonaro na cabeça”, disse Leonardo. A declarações demonstram que o ex-presidente buscou eleitores a partir destes cantores sertanejos que o apoiavam, mesmo que alguns deles estivessem acusados em casos de corrupção, misturando apoio político com preferência artística.
Um exemplo da relação entre o mercado, o sertanejo e a política é a carreira do cantor Sérgio Reis, expoente da música sertaneja romântica. Em 2010, Reis foi eleito Deputado pelo Partido Republicanos, adotando medidas de extrema-direitista como o apoio ao fechamento do STF. Para o cantor Flávio Véspero, a construção da imagem caipira de Sérgio Reis foi um apelo mercadológico: “era um rapaz da capital, não usava chapéu, botas nem fivela, cantava música da Jovem Guarda.”, afirma em seu site, “de repente, adotou as vestimentas do faroeste, começou a gravar modas de interior, vendeu muito disco, ficou famoso”. Ele defende que a onda romântica do sertanejo foi uma apropriação do country estadunidense, ainda que se apresente como resgate da memória tradicional da roça brasileira.
Capas de discos de Sérgio Reis com visuais diferentes sugerem a adaptação do cantor à tendência sertaneja do mercado: da estética e black-tie ao estilo cowboy [Imagens: Divulgação/Sérgio Reis]
Em depoimento à Folha de S. Paulo, a socióloga Dra. Dani Ribas afirma que “profissionais do mercado da música sabem que o sertanejo é financiado pelo agronegócio, mas as pessoas não sabem”. Nota-se que muitos sertanejos, após o ápice da carreira musical, tendem a migrar para o investimento em latifundiarismo, como Zezé di Camargo e Amado Batista, que hoje colecionam cabeças de gado milionárias no Centro-Oeste. Leonardo, Eduardo Costa e Gusttavo Lima também participam do modelo, incluindo a produção de tomates, laranjas, criação de cavalos e gado.
Trajetória histórica
Há registros de música sertaneja produzida desde a década de 1910, mas apenas em 1929 houve a primeira gravação oficial por Cornélio Pires, chamado de “bandeirante da música caipira”. Relatando a vida campestre nos interiores de São Paulo e Minas Gerais. Durante a fase ‘raiz’, o sertanejo ainda era música caipira: voz, viola e violão.
Foi após os anos 40 que o sertanejo começou a absorver influências externas, como a maior presença da harpa e do acordeon e a introdução do trompete e do violino nas canções, injetando uma veia conservadora à moda de viola. Houve, ainda nesse período, a transição para o “modão” romântico dos anos 60, que foi muito mais explorado comercialmente, com a chegada de rodeios, rádios e programas de TV. Com inspiração no rock e na Jovem Guarda, apelidada de “ritmo jovem”, a música caipira começou a trabalhar com a guitarra elétrica do rock e o tema do amor. O envolvimento sertanejo com a política ficou mais explícito durante a Ditadura Militar (1964-1984), pois desde o ano do golpe, duplas lançaram canções em apologia ao regime. É o caso de Doe ouro pelo Brasil, de Moreno & Moreninho, que incentivava a população a financiar o Governo Castelo Branco. Com a censura, os modões passaram a declarar cada vez mais explicitamente o apoio ao regime, por exemplo Presidente Médici, de Teixeirinha (1973), Trasnsamazônica, de Tonico & Tinoco (1971) e Lei Agrária, de Os Dois Goianos, Durval & Davi, (1971):
“Quem é aquele gaúcho/ Que subiu pra presidência/ Dotado de inteligência/ Prá governar o país/ É bom chefe de família/ De respeito e de bondade/Nos deu a tranquilidade/ Fez nossa pátria feliz/ Ele nasceu no Sul/ É o presidente Médici/ Emilio Garrastazu!/ Quem é aquele gaúcho/ Que asfaltou o Rio Grande/ Que Deus saúde lhe mande/ Por tudo que ele tem feito/ Graças a ti presidente/ Hoje o Brasil é um luxo”.
— Trecho de Presidente Médici, de Teixeirinha (1973)
A década de 1980 foi chamada de “a década perdida”, devido à crise econômica que também reverberou na indústria fonográfica brasileira: as vendas de discos de vinil caíram e, por conta da menor quantidade de dinheiro disponível no mercado musical, o investimento das gravadoras foi mais enxuto. Ele se manteve apenas nos gêneros com mais retorno, sendo o sertanejo um deles.
Já nos anos 90, o investimento na música foi ampliado devido ao lucro obtido com a chegada dos CDs e da internet, ferramentas que permitiram o acesso do público a produções mais diversificadas. O aumento do capital levou a inovações que expandiram o circuito sertanejo, como as turnês de shows conjuntos do grupo Amigos, composto pelas duplas Chitãozinho & Xororó, Zezé di Camargo & Luciano e Leandro & Leonardo. As gravadoras, que então dominavam o mercado, foram substituídas por empresários sertanejos, esquema que se mantém até hoje.
“Axénejo” e “arrocha” marcaram a chegada dos anos 2000 na música caipira, com batidas influenciadas pelo pop dançante, temas geralmente sobre amor e traição, e refrões monossilábicos, como em: Lelelê, de João Neto e Frederico; em Tchá tchá tchá, cantada por Thaeme e Thiago; e em Eu quero tchu, eu quero tchá, de João Lucas e Marcelo. O gênero foi inaugurado por João Bosco & Vinícius, filhos de fazendeiros que, ao se mudarem para estudar na cidade grande, levaram a cultura musical do interior e a popularizaram dentre os demais estudantes. Assim surgiu o sertanejo universitário.
“Eu sei fazer um Lê Lê Lê /Lê Lê Lê /Lê Lê Lê / Se eu te pegar você vai ver / Lê Lê Lê / Lê Lê Lê / Você jamais vai me esquecer / Lê Lê Lê / Lê Lê Lê / Se eu te pegar você vai ver / Lê Lê Lê / Lê Lê Lê / Você jamais vai me esquecer”
— Refrão de Lêlêlê, de João Neto e Frederico (2012)
Panorama da indústria hoje
A fase em que o sertanejo está hoje é o “agronejo”, com refrões memorizáveis, inspirados no funk, colaborações entre artistas e danças virais para o aplicativo TikTok. Devido ao uso das redes sociais para promover as músicas desse sertanejo, os cantores procuram influenciadores para atingir um público cada vez maior, utilizando, inclusive, os perfis de suas esposas. Como é o caso do casal Zé Felipe e Virgínia, o filho de Leonardo e a maior influenciadora digital do país, com 43 milhões de seguidores no Instagram. Zé Felipe é responsável por hits como Bandido, Roça em mim, Revoada no colchão e Toma toma, vapo vapo, todos cantados em colaboração com cantores de outros gêneros musicais. Além disso, o cantor também inclui Virgínia nos videoclipes de todas as músicas. Por meio da grande base de fãs da esposa nas redes sociais, ela é a principal promotora dos lançamentos de Zé Felipe.
De acordo com Julio “Julinho” Salgueiro, vocalista da dupla independente Edy & Júlio, alcançar tal sucesso seria impossível sem “uma enorme máquina atrás da imagem deles”. Para ele, que nunca teve auxílio de produtores e empresários, os investimentos maciços na indústria sertaneja atual têm dimensões hollywoodianas. Com a entrada de agências milionárias no ramo, o cenário é de desigualdade entre os artistas do gênero: “como aquele que mora no bairro da periferia vai ser escutado?”, questiona o cantor.
A máquina a que Julio se refere é movida pelos grandes empresários do meio, nomes como: Fernando, da dupla Fernando & Sorocaba, o escritório FS Produções Artísticas, a Workshow, a AudioMix, responsável pelo Villa Mix Festival, , a Talismã Music, criada pelo cantor Leonardo e a SomLivre, produtora do festival Festeja. Após o contrato agencial, entram em cena os produtores, dos quais se destacam Dudu Borges, dono do Studio Vip, César Augusto, que começou na carreira fazendo jingles comerciais viciantes e Maestro Pinocchio.
Pinocchio explica que o novo sertanejo é marcado pela amplificação de vozes. “o gênero está se abrindo muito, já abriu e continua abrindo para diversidade: as mulheres ocupam hoje um ranking muito grande na música sertaneja. É o caso de Maiara & Maraísa, Marília Mendonça, Lauana Prado e Ana Castela”. Ele ainda conta que o mercado também está se abrindo para os cantores gays, que embora ainda sejam minoria, estão crescendo dia a dia. Gabeu, filho de Solimões, da dupla Rionegro & Solimões, foi indicado ao Grammy Latino de 2022 por seu álbum de estreia Agropoc (2021), precursor do subgênero “Queernejo”, que abre as porteiras do gênero musical ao público LGBTQIA+.
Mesmo com a maior diversidade, o capital injetado é decisivo para o êxito no meio musical. Júlio conta que ambos têm origens familiares sertanejas: “Edy veio de uma família que tinha a música sertaneja como tradição desde as antigas rodas de viola”, mas a tradição pouco ajuda em comparação ao dinheiro. Mesmo com a proximidade orgânica com a cultura sertaneja, eles ainda sofrem com as dificuldades financeiras: “ainda somos muito desvalorizados e considero isso uma certa discriminação”, ele relata enquanto cita dificuldades para pagar as contas com a carreira musical.