Em 19 de agosto, os habitantes de São Paulo (SP) presenciaram um evento marcante na história da cidade: “o dia que virou noite”. Por volta das 15 horas, o céu da capital já estava escuro, com nuvens densas. A cada esquina e em cada post das redes sociais, os moradores especulavam o motivo da mudança tão brusca.
Meteorologistas explicaram que a escuridão se devia à combinação da frente fria que atingia a cidade e da fumaça vinda das queimadas da vegetação amazônica nos estados do Norte e Centro-Oeste do país. Além do céu naturalmente nublado, o encontro de massas de ar aumentou a umidade, intensificando o efeito ‘noturno’ causado pela fumaça.
A notícia do “dia que virou noite”, no entanto, levantou uma série de debates sobre as queimadas que assolavam a Floresta Amazônica havia mais de três dias. Desde então, discussões a respeito do desmatamento da Amazônia ganharam visibilidade, inclusive com questionamentos sobre o posicionamento do presidente Jair Bolsonaro. Em diversas situações, o atual governo defende o uso de áreas de vegetação amazônica pela indústria agropecuária e extrativista de exportação.
Pensando nisso, a reportagem decidiu comparar os dados ambientais recentes com as informações de quinze anos atrás.
Primeiramente, buscamos depoimentos de moradores da área. Contactamos Gabriela e Ilisir Rodrigues, moradores do município de Porto Velho (RO). Uma semana após o “dia preto” em São Paulo, manifestantes realizaram um ato em defesa da Amazônia na cidade rondoniense. Gabriela e Ilisir relataram em conjunto o que têm visto.
Segundo os moradores, o número de árvores tem diminuído gradativamente: áreas que antes eram de mata, agora são de pasto ou plantação, especialmente de soja. Eles também afirmam que antes as chuvas eram mais intensas e demoradas. “Mesmo no período de verão amazônico (de abril a setembro) não havia estiagem tão prolongada. Sempre chovia. No inverno amazônico (outubro a março) tínhamos vários períodos de chuva ininterrupta, que durava dias. Hoje isso é raro. A situação piorou muito.”
Eles dizem que há 15 anos havia mais vegetação, e a sensação de calor e abafamento era menor, assim como a intensidade da fumaça. “Já ocorriam queimadas e em alguns anos causavam muitos transtornos, mas a umidade do ar era muito mais alta o ano inteiro”, afirmam Gabriela e Illisir, que atualmente a comparam com a do cerrado em algumas épocas.
“O desmatamento da vegetação amazônica e as queimadas afetam muito a população, que adoece mais”, dizem a partir da percepção de alto nível de doenças como conjuntivite, rinite e problemas respiratórios. E quanto à fiscalização, acreditam que pode até existir, “mas pelas informações da mídia, o número de fiscais é insuficiente para o tamanho da área a ser fiscalizada”.
Sobre as medidas do atual presidente, os moradores acreditam que sua retórica, muito mais que as medidas, desencadeou ações predatórias, aparentemente muito mais intensas que antes. Mas completam: Há muita divergência das pessoas mais próximas sobre o tema. Uns concordam e outros discordam das medidas adotadas pelo atual presidente.”
A partir das falas dos moradores, buscamos entender a legislação atual. Exatamente no ano de 2004, quinze anos antes do período de apuração, foi implementado o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal – PPCDAM com o objetivo de diminuir os danos causados à região de floresta. O plano contava com quatro fases, divididas de quatro em quatro anos, de 2004 a 2020. No decreto da primeira fase, emitido em três de julho de 2003, objetivava-se:
- o ordenamento fundiário nos municípios que compõem o Arco do Desmatamento;
- incentivos fiscais e creditícios com os objetivos de aumentar a eficiência econômica e a sustentabilidade de áreas já desmatadas;
- procedimentos para a implantação de obras de infraestrutura ambientalmente sustentáveis;
- geração de emprego e renda em atividades de recuperação de áreas degradadas;
- incorporação ao processo produtivo de áreas abertas e abandonadas, e manejo de áreas florestais;
- atuação integrada dos órgãos federais responsáveis pelo monitoramento e a fiscalização de atividades ilegais no Arco do Desmatamento;
O PPCDAM é um dos marcos da política ambiental brasileira. As diretrizes estabelecidas através dele levaram a bons resultados, incluindo uma redução de 71% na taxa de desmatamento na Amazônia Legal no período de 2005 a 2016. Apesar disso, ao analisar os objetivos da quarta e última fase do programa, que abrange os anos de 2016 a 2020, é possível observar que o Brasil ainda falha em muitos pontos e que, de 15 anos para cá não muito mudou.
Dos 10 objetivos desta última fase, alguns como a incorporação de áreas florestais ao processo produtivo e o fortalecimento e integração do sistema de monitoramento ambiental são, na prática, os mesmos. Outros, como a promoção do Cadastro Ambiental Rural, tendem a continuar como objetivos distantes. No caso do Cadastro, em especial, foi definido pela gestão Bolsonaro que ele ficará sob responsabilidade do Ministério da Agricultura, enfraquecendo a pasta ambiental.
Para além do PPCDAM, o Brasil adotou outros compromissos no que diz respeito a sua política ambiental. A professora Karla Harada, especialista em Direito Ambiental e Gestão Estratégica da Sustentabilidade, nos ajuda na reconstrução da trajetória que percorrida pelo país ao longo das últimas décadas. Ela começa de forma categórica: “a Constituição Federal de 1988 trouxe um novo paradigma”. Segundo ela, com a proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, assegurada no art. 225, como um direito e dever de todos, Estado e sociedade, inaugura-se no Brasil um novo Estado de Direito Ambiental.
De lá para cá, Karla destaca que tivemos grandes avanços na proteção do meio ambiente, por mais que a pauta tenha passado a avançar de forma mais vagarosa após a virada do século, “em função de acontecimentos como o atentado do 11 de setembro e a crise econômica de 2008, que tiraram o foco mundial da questão ambiental”. Dá atenção especial a quatro leis pós-2004, sendo a primeira delas a Lei de Gestão de Florestas Públicas, editada em 2006, durante o governo Lula. Essa é responsável por normatizar o sistema de gestão florestal em áreas públicas, bem como pela criação do órgão regulador Serviço Florestal Brasileiro e do Fundo de Desenvolvimento Florestal.
Ainda dentro do governo Lula, Karla menciona a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), instituída em 2009. Esta “oficializa o compromisso voluntário brasileiro de redução das emissões de gases estufa entre 36,1% e 38,9% até 2020, junto à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática”, em resposta à ameaça representada pelo aquecimento global.
Ao fim do governo lulista, outra legislação inovadora e de destaque: a Lei 12.305, de 2010, que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). A lei propõe regras para o cumprimento de seus objetivos em amplitude nacional e interpreta a responsabilidade como compartilhada entre governo, empresas e sociedade, estabelecendo as diretrizes à gestão integrada e ao gerenciamento ambiental adequado dos resíduos sólidos.
Tais avanços, entretanto, começam a ser colocados em xeque a partir de 2012, durante o governo Dilma. Neste ano, há aprovação do Novo Código Florestal Brasileiro, que revoga o Código vigente até então, de 1965. Karla afirma que a medida é vista como “um claro retrocesso na proteção ambiental, tanto é que a lei foi alvo de cinco Ações Diretas de Inconstitucionalidade”.
Também durante o primeiro mandato da ex-presidente Dilma Rousseff foi possível observar a redução, em 72%, de verbas destinadas à prevenção e ao combate do desmatamento na região da Amazônia. A comparação é feita em relação ao segundo mandato do ex-presidente Lula, e a queda observada é de R$ 6,36 bilhões para R$ 1,77 bilhão. À época, alegou-se que tal medida foi adotada em função da queda nos índices de desmatamento na Amazônia Legal, mencionada anteriormente no texto.
A situação fica ainda mais complicada em função de conflitos de interesses entre representantes da pasta ambiental e representantes do agronegócio, como destaca o professor André Geraldes, vice-presidente da Comissão de Meio Ambiente da OAB de São Paulo. Ele afirma que, com o fortalecimento do setor primário (agricultura e pecuária) da economia brasileira, “cresceu, por consequência, o poder político dos ruralistas e a demanda por modificações da legislação ambiental e do “modus operandi” dos órgãos de fiscalização”. Esse processo é observado especialmente a partir de 2016, com a chegada do ex-presidente Michel Temer ao poder, cujo governo termina com um crescimento expressivo de quase 14% nas taxas de desmatamento na Amazônia.
No governo Jair Bolsonaro, a situação tem se dirigido a um ponto mais crítico. Além da medida aplicada ao Cadastro Ambiental Rural, é possível apontar outras, como a transferência da responsabilidade da Agência Nacional de Águas e do próprio Sistema Florestal Brasileiro para os Ministérios do Desenvolvimento Regional e da Agricultura, respectivamente; mais uma perda para a pasta ambiental. Outra questão polêmica é a das 334 Unidades de Conservação brasileiras, que foram inteiramente colocadas em revisão, desde as criadas em 1934 até as de 2018.
A fiscalização também tem sido enfraquecida. De janeiro a maio deste ano, o número de multas aplicadas pelo Ibama por desmatamento ilegal foi o mais baixo em 11 anos, uma queda de 34% que pode ser encarada como reflexo do discurso de “indústria de multas” perpetrado pelo presidente Bolsonaro. José Augusto Morelli, fiscal que multou Bolsonaro por pesca em Unidade de Conservação, foi afastado do cargo três meses após a posse do presidente. Além disso, ONGs ligadas a prevenção e fiscalização ambiental foram alvo de insinuações do presidente de que poderiam ter sido responsáveis pelas recentes queimadas na Amazônia – algumas das maiores já registradas.
Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, chegou a recriminar publicamente fiscais que destruíram equipamentos usados por criminosos para retirar madeira ilegal de uma Unidade de Conservação no Pará, apesar de o decreto federal 6.514/2008 permitir ações do tipo em determinadas situações. O ministro também foi alvo de polêmica ao tratar do Fundo Amazônia, quando convocou uma coletiva de imprensa para criticar o modelo de gestão do projeto. Apesar de Salles ter dito que comunicou à Noruega e à Alemanha (os dois principais contribuintes do Fundo, totalizando 95% dos recursos, que somam mais de R$ 3 bilhões) as mudanças que desejava fazer no fundo, e que ambas as nações teriam concordado com a proposta, as respectivas embaixadas negaram as declarações, gerando um atrito diplomático ainda não resolvido.
Vale mencionar, a postura assumida pelo governo federal, que abriu mão de sediar a COP-25, maior encontro climático do mundo. Karla lembra que “além da gravidade ambiental, há de atentar também para a falta de compromisso do Brasil, que se traduz em perda de confiabilidade no cenário internacional”.
O Brasil também falha de maneira mais indireta, com o não cumprimento de compromissos estabelecidos, muitas vezes, de forma voluntária. Karla afirma que “não tivemos total cumprimento das metas apresentadas durante o período do Protocolo de Kyoto, da década de 70, e estamos caminhando para o contrário do apresentado pelo Brasil no Acordo de Paris, de 2015”.
A Contribuição Nacionalmente Determinada (iNDC) do Brasil, de 2015, é outro exemplo. Ela se compromete com a redução das emissões de gases estufa em 37% até 2025 e em 43% até 2030, em relação aos níveis de 2005. Para isso, o país se comprometeu a aumentar a participação de bioenergia sustentável em sua matriz energética para aproximadamente 18% até 2030, restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares de florestas, bem como alcançar uma participação estimada de 45% de energias renováveis na composição da matriz energética em 2030.
Karla, no entanto, observa que “com os recentes ciclos de desmatamento, queimadas e enfraquecimento dos órgãos de controle, monitoramento e proteção ambiental, vemos que estamos caminhando em direção oposta”.
Fábio Ishisaki, mestre em Ciência Ambiental e professor junto a Karla, destaca os efeitos negativos que esta nova política ambiental pode ter nos rumos do país. Lembra que “a política ambiental permeia todo o setor econômico. Cerrar os olhos para a questão ambiental é um erro estratégico tremendo, ao passo que, no exterior, avança a agenda ambiental e de sustentabilidade produtiva”. Como exemplo, cita os possíveis embargos europeus aos produtos nacionais, a queda de alianças econômicas entre blocos de países e o embate entre ministérios do atual governo: todos temas amplamente discutidos na esfera pública. “A bem da verdade, não tivemos, por ora, avanços na agenda ambiental do novo governo”, conclui.
Ainda nesse aspecto, Karla ressalta que “a questão ambiental não é exclusiva do Direito Ambiental. O meio ambiente é transversal a todas as áreas”. Ao falar em sustentabilidade, em saneamento, em gestão adequada de resíduos e de recursos hídricos, em desmatamento e queimadas, em mobilidade urbana, em alteração da matriz energética, em exploração consciente e sustentável dos recursos minerais e em tantos outros assuntos, “depende-se de uma visão transdisciplinar, envolvendo poder público, sociedade, empresas e terceiro setor, com um olhar sustentável não só ao meio ambiente isoladamente considerado, mas ao desenvolvimento e economia”.
A situação pela qual passam Gabriela e Ilisir é a mesma para muitas pessoas extremamente diferentes entre si. Fábio, sob essa perspectiva, conclui: “é contraproducente manter um “cabo de guerra” entre a agenda ambiental e as aspirações econômicas, pois, como largamente verificado nesses 9 meses, ambas se conectam e devem andar em sintonia para que haja um melhor progresso social e nacional”.
Que as preocupações daqui a 15 anos sejam outras.