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O cinema como retrato de sociedades do Oriente Médio

Diretores e diretoras são inventivos diante das adversidades e produzem grandes obras cinematográficas

O cinema é um meio que possibilita uma viagem minuciosa a uma sociedade. De um lado essa imersão pode ilustrar os problemas de uma população. Do outro, é capaz de contextualizar as diferenças entre povos, o que resultaria em mais respeito no tratamento com outras culturas. 

Nesta reportagem ao Cinéfilos, a antropóloga e especialista em cinema Kelen Pessuto usa a sétima arte para trazer uma abordagem detalhada das sociedades do Oriente Médio. Para ela: ‘’o cinema [de cada lugar] fala das suas sociedades, dos seus problemas, seus desejos, anseios e angústias; cada um é voltado aos seus temas’’.

 

Oriente Médio: uma vasta região

O Oriente Médio é uma região localizada na zona fronteiriça entre Europa, Ásia e norte da África. Essa região é formada por 15 países, no qual o Islamismo é a religião predominante, entretanto dentro dela há diversas vertentes, que em partes explicam os conflitos atuais.

Mapa do Oriente Médio. [Imagem: Reprodução/ EducaBras]
Mapa do Oriente Médio. [Imagem: Reprodução/ EducaBras]
No Oriente Médio existe uma variedade de países, orientações religiosas, línguas, culturas e etnias. Tudo isso torna inviável uma análise generalizadora desse território. Kelen Pessuto inicia analisando o cinema seguindo essa lógica: ”é difícil falar de um cinema do Oriente Médio, porque o Cinema é muito abrangente e muito diferente em cada país e em cada região. Seria a mesma coisa que falar de um cinema ocidental, sem estabelecer diferenças entre os filmes espanhóis e norte americanos’’.

Se os cinemas são diferentes, bem como o contexto sociopolítico, cada uma dessas nações deve apresentar uma relação específica com a arte visual. Kelen conclui seu raciocínio: ”cada sociedade se relaciona de um jeito com o cinema. Por exemplo, os filmes curdos muitas vezes são feitos de forma clandestina, no cinema turco a língua curda não é muito bem vista, então os longas com essa língua não passam nem em festival’’. Os curdos constituem o maior grupo étnico sem território fixo e no geral vivem espalhados por outros países do Oriente Médio.

 

O cinema iraniano

Um dos grandes marcos do país foi a Revolução Islâmica de 1979. No período pré- revolucionário, o cinema seguia a lógica do então governante, o Xá Mohammad Pahlavi, um monarca aristocrático que tinha forte vínculo com o mundo ocidental. Nessa época, o lema da modernidade era comum e normalmente contrário às práticas religiosas. 

Por influência do Xá, havia cópias de filmes americanos que carregavam o imagético da realidade estadunidense. Eram muitos longas de thrillers, melodramas, musicais e heróis, enquanto havia poucos obras com temáticas religiosas. O cinema iraniano era considerado uma Hollywood paralela.

A revolução de 1979 depôs a monarquia por conta de grupos dissidentes contrários às políticas do rei, como: a extrema ocidentalização do Irã, as políticas econômicas adotadas e o autoritarismo. Após uma disputa civil e política, o país se tornou uma república islâmica, governada por uma figura carismática, o aiatolá Khomeini, esse até hoje é o cargo com a maior hierarquia dentro da concepção xiita do islã.

Manifestantes demonstrando apoio ao aiatolá Khomeini, em 1978 [Imagem: Reprodução /  AP Photo, File]
Manifestantes demonstrando apoio ao aiatolá Khomeini, em 1978 [Imagem: Reprodução /  AP Photo, File]
No período pós-revolução, o governante religioso afastou a influência ocidental e priorizou em todas as pautas a orientação sustentada por costumes islâmicos. Temas como amor, amizade e família ganharam espaço em produções, ao mesmo tempo que muitas outras ideias foram esquecidas. Kelen explica: ‘’a cinematografia iraniana passa por uma censura muito severa, desde 1984 foram criadas as leis que regulamentavam o cinema iraniano, então a censura ficou bem pesada’’. 

Atualmente, mesmo com a regulamentação e as tentativas de restrição do uso da internet, o meio digital consegue afetar a sociedade iraniana, a internet fornece informações globais e passa outros valores culturais, assim a influência cultural ocidental ainda se faz presente no Irã. ”Existem dois níveis, o nível público, o que comporta o governo, a influência é inexistente e o nível privado, nele a vida privada das pessoas, os EUA têm muita influência, as pessoas têm acesso ao american way, o consumo e a música. A influência que eles têm lá é a mesma que da gente aqui, mas lá não pode andar na rua com música americana’’, explica a antropóloga.

A influência de outros povos, a variedade de pensamento e o contexto político fazem com que o cinema iraniano contemporâneo seja segmentado em muitas vertentes. ‘’Os filmes comerciais, são muitos, e justo neles é permitido que o governo contrário ao modo de vida ocidental, aprove temas influenciado por esses‘’. Nesta vertente, a antropóloga recomenda os filmes do Asghar Farhadi, ganhador duas vezes de melhor filme estrangeiro do Oscar em 2012 e 2017, com os respectivos títulos, A separação (Jodaeiye Nader az Simin, 2011)  e O apartamento (Forushande, 2016). 

Cena do filme A separação. [Imagem: Divulgação / Sony Pictures Classics]
Cena do filme A separação. [Imagem: Divulgação / Sony Pictures Classics]
Kelen descreve a segunda vertente: ‘’existe o cinema underground, é o cinema proibido dentro da sociedade e os diretores são inimigos do estado‘’. Nesse caso, um dos diretores de destaque é Jafar Panahi, que após apoiar um candidato da oposição em uma eleição em 2009, sofreu algumas punições: proibição de fazer filmes por 20 anos, na perda de toda sua coleção e em uma condenação à prisão. 

Outro caso dessa vertente é Bahman Ghobadi, que ao abordar o rock no filme Ninguém sabe dos gatos persas (Kasi az gorbehaye irani khabar nadareh, 2009),  também foi preso, uma vez que as músicas ocidentais são temas proibidos dentro do contexto moderno do país. 

Bahman foi solto e saiu do Irã, Jafar que já tinha uma família consolidada, continua por lá. Ele burla a proibição usando a inventividade: o modo de produzir filmes se ‘’modificou’’ à realização de docuficção, e o seu reconhecimento internacional aumentou.

Cena do filme Taxi Teerã, que rendeu o prêmio Urso de Ouro à Jafar.  [Imagem: Divulgação / Jafar Panahi film productions] 
Cena do filme Taxi Teerã, que rendeu o prêmio Urso de Ouro à Jafar.  [Imagem: Divulgação / Jafar Panahi film productions]
Kelen fala sobre a última vertente ‘’o cinema de arte é um cinema anti-colonial, tanto do ponto de vista da linguagem da tecnologia norte-americana, como também de resistência à própria censura’’. Aqui ela indica os filmes de Abbas Kiarostami, que conquistou a Palma de Ouro em 1997, com o longa O Gosto de Cereja (Ta’m e guilass, 1997).

Nesse espaço, diretores costumam não tecer críticas explícitas ao governo, mas sim utilizar subterfúgios para questionar o poder, eles abordam temas proibidos de maneiras diferentes, sendo opositor à lógica interna e externa. Isso, no entanto, não significa vida fácil para a produção. Um diretor entusiasta dessa vertente, Mohsen Makhmalbaf sobreviveu a uma bomba plantada pela polícia secreta iraniana em 2007, após realizar filmes que questionavam alguns tabus da sociedade.

Cena do filme o Gosto de Cereja. [Imagem: Divulgação / Ciby 2000]
Cena do filme o Gosto de Cereja. [Imagem: Divulgação / Ciby 2000]
O papel da mulher sempre foi subjugado na história do cinema e conviveu com diferentes maneiras de opressão. O cinema pré-revolucionário abordava as mulheres de um ponto de vista mais objetificante que atualmente. Enquanto, no cenário pós-revolução, elas devem atender a todas as normas do aiatolá, como ‘’as mulheres nos filmes aprovados pelo governo não podem aparecer sem o hijab, elas não podem ser focalizadas em close up’’, explica a especialista.

Mesmo diante disso, existem trabalhos de diretoras com muita relevância social, como é o caso da consagrada Tahmineh Milani, um símbolo histórico dos direitos das mulheres no Irã, de Narges Abyara, a primeira iraniana a concorrer ao Oscar, e também de Samira Makhmalbaf.

 

O cinema afegão

Apelidado de cemitério de impérios, o Afeganistão conviveu com conflitos e interferência estrangeira durante diversos momentos da sua história. Desde o helenismo, seguindo ao imperialismo e mais recentemente a Guerra ao Terror. Devido a este último caso, o Talibã se tornou um alvo internacional.

O Talibã surge a partir do contexto da Guerra Fria, em que os russos apoiavam o governo socialista de lá, enquanto os americanos financiavam a resistência interna, formada por forças tribais e tradicionalistas.

Nessa disputa, a Rússia saiu derrotada, deixando, em 1992, o governo afegão em colapso. Esse fato despencou em uma guerra civil entre o governo, as forças tribais moderadas e os grupos teocráticos, entre eles o próprio Talibã, que conseguiu uma ascensão política e social meteórica.

No contexto da guerra civil, o cinema já passava por algumas modificações em sua cadeia produtiva, segundo Kelen: ‘’quando o Talibã pegou a maior parte das regiões, eles proibiram a imagem, toda forma de imagem e fotografia  era proibida no país e o cinema realizado a partir desse período era muito marginalizado, poucos diretores afegãos se arriscaram a fazer filme’’.

De forma definitiva, o grupo do Talibã governou o Afeganistão de 1996 a 2001, impondo um governo violento e autoritário. O vão da produção cinematográfica então foi preenchido por seus vizinhos persas, nesse tempo diretores iranianos se arriscaram para retratar a situação do Afeganistão.‘’O cinema iraniano numa época se debruçou pelas histórias afegãs, principalmente a familia Mohamabaounf, alguns dos longas foram filmados até lá, muitas sofreram atentados’.’ Neste caso, Kelen indica o filme Osama (2003), do Siddiq Barmak e algumas películass da Samira Makhmalbaf, como: Às cinco da tarde (Panj é asr, 2003) e O cavalo de duas pernas (Asbe du-pa, 2008)

Cena do filme Osama. [Imagem: Divulgação / barmak film]
Cena do filme Osama. [Imagem: Divulgação / barmak film]
Após o atentado às Torres Gêmeas, os EUA iniciaram uma campanha de guerra ao terror que ocasionou a queda do Talibã. Nesse período, a arte voltou a florescer. Mas já em 2021, com a retirada das tropas americanas, ocorreu a volta do grupo religioso e a situação da arte voltou ao estado de alerta. Kelen indica isso: ‘’pós 2001, as escolas de cinema começaram a crescer na região, até festivais começaram a ser realizados no país, o cinema começava a ter respiro, agora voltou a ser inviável a realização de cinema no país’’.

Ainda nos tempos de ausência do Talibã havia uma topicalização em abundância de temas femininos no cinema afegão, vale destacar o trabalho da diretora  Sahraa Karimi, primeira mulher a presidir a companhia cinematográfica estatal afegã que recentemente divulgou uma carta aberta expressando seus sentimentos em relação a situação política atual de seu país.

A cineasta Sahraa Karimi. [Imagem: Reprodução / Instagram/ @abraccineweb]
A cineasta Sahraa Karimi. [Imagem: Reprodução / Instagram/ @abraccineweb]

Islamofobia

A divulgação do cinema e outras fontes culturais dos países do Oriente Médio são restritas no ocidente. Isso coincide com o amplo nível que a islamofobia atingiu nos dias de hoje, essa intolerância está presente até mesmo em Hollywood. Em 2007, essa grande indústria foi alertada pela ONU, devido a frequente relação do islã a estereótipos danosos. Kelen foi autora de um artigo que avalia a relação entre o preconceito com o islamismo e a produção cinematrográfica norte americana e argumenta: ‘’a islamofobia está muito presente em muitas indústrias cinematográficas. Antigamente quem era o inimigo dos norte-americanos eram russos, na época da Guerra Fria, a partir dos anos 2000 pra cá, os islâmicos e o Oriente Médio acabam se tornando os maiores inimigos dos Estados Unidos, é muito raro uma visão positiva’’.

 

Relação do cinema brasileiro e iraniano

Mesmo sendo outra realidade político-social, o cinema brasileiro pode ser aproximado ao cinema iraniano atual. Kelen comenta sua visão: ‘’o cinema iraniano na forma e estética apresenta muitas relações com o Cinema Novo brasileiro, um cinema feito com produções mais baixas e iluminação natural’’.

Nas nações pobres, há falta de recursos para produção artística, nesse ambiente ao desenvolver um filme deve-se pensar no barateamento da técnica na produção e em alternativas criativas que vão além do comum, praticado frequentemente pelas grandes indústrias. Isso surge como uma das respostas para explicar que países pobres economicamente conseguem ser ricos culturalmente.

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