Por Ana Julia Oliveira (anajulia.oliveira@usp.br)
Tente pensar no último personagem latino que você viu no cinema. Se pensou em um homem, é provável que ele estivesse ligado à criminalidade ou ao trabalho braçal, e sua personalidade fosse violenta, enganadora ou preguiçosa. Caso tenha pensado em uma mulher, possivelmente ela ocupava o cargo de empregada, ou talvez fosse uma jovem hiperssexualizada, de origem simples, que se envolveu com um homem rico.
Além dessa descrição, o típico perfil latino em produções estrangeiras envolve, com frequência, um cenário de pobreza, imigração ilegal, famílias grandes e religiosas, e uma má fluência da língua inglesa, com sotaques fortes e exagerados. Essas características que uniformizam personagens, apesar de ser defendida pela indústria como representações da realidade, trazem uma visão estereotipada da América Latina, que conta com 20 países, 19 mil km de extensão e 560 línguas indígenas.
E se a região é formada por uma diversidade tão grande de povos e culturas, é curioso que tudo isso tenha sido reduzido no cinema para filtros amarelos, miséria e personagens superficiais.

Surgimento do estereótipo
Até o fim da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos produziam 85% dos filmes do mundo. Esse foi apenas o início da chamada Era de Ouro do cinema estadunidense, com crescimento dos estúdios de Hollywood e chegada dos filmes sonoros. Era evidente que o país dominava a indústria naquele momento, e junto com ela, exerciam forte influência sobre a opinião pública. Esse foi o pretexto perfeito para que os valores políticos, sociais e econômicos da época fossem amplamente difundidos através dos filmes lançados.
Em entrevista ao Cinéfilos, o professor do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação e do Programa de Pós-graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Unicamp, Ignacio del Valle Dávila, conta que, ainda sob a Doutrina Monroe – conhecida pelo lema “A América para os americanos” – os EUA tinham como objetivo proteger seus interesses políticos, econômicos e militares no continente.
Para Ignacio, “dentro dessa lógica, os latino-americanos jamais poderiam reivindicar o mesmo, por uma espécie de ‘inferioridade’ intrínseca que os filmes mostraram desde os primórdios do cinema”. Mais tarde, a potência americana adotou a Política da Boa Vizinhança, que, entre outros objetivos, propunha fortalecer os laços entre os EUA e a América Latina. Foi nesse momento que figuras como Carmen Miranda e Zé Carioca ficaram famosos, estampando a imagem do Brasil lá fora.
No primeiro caso, a de uma mulher sensual e exótica, que canta e dança, e no segundo, a de um carioca malandro, que escapa dos problemas com o famoso “jeitinho brasileiro”. Por mais inofensivo que os personagens parecessem ao público, houve um processo de cristalização dessa visão dos brasileiros, que persiste até hoje na cultura americana.

Outro exemplo foi a comédia musical Aconteceu em Havana (Week-End in Havana, 1941). No longa, que agradou o público norte-americano, o personagem de Cesar Romero, Monte Blanca, foi retratado como um conquistador e trapaceiro, enquanto Rosita Rivas, interpretada por Carmen Miranda, foi caracterizada como temperamental e difícil de lidar, diferente da protagonista americana Nan (Alice Faye), uma mulher quieta e comportada.
Se já havia uma visão negativa de povos colonizados, essas produções serviram para reforçar ainda mais uma suposta superioridade dos Estados Unidos em relação aos latino-americanos. Essa perspectiva foi sustentada ao longo das décadas
“O cinema surge e se desenvolve em plena expansão do colonialismo, de modo que a representação do outro como brutal, atrasado, incivilizado e hiperssexualizado foi uma estratégia utilizada para legitimar suas terras fossem conquistadas e seus recursos explorados.”
Ignacio del Valle Dávila
A questão geopolítica entre os EUA e os países latinos também deve ser levada em conta. Não à toa os países mais mencionados quando se trata de imigração ilegal são México, Cuba e Porto Rico.
No primeiro caso, a tensão em torno da fronteira entre os dois países já é discutida desde o século XIX; para Cuba, o desacordo se deu, principalmente, com a Crise dos Mísseis de 1962, conflito que se estende até hoje; por último, Porto Rico, que desde 1898, é território americano, é considerado Estado Livre Associado. Ainda assim, as tensões persistem.

A (ausente) representatividade no cinema
Em uma pesquisa feita pela Annenberg Inclusion Iniciative, dos 1300 filmes de maior bilheteria entre 2007 e 2019 nos EUA, somente 5% dos mais de 50 mil personagens eram de origem latina ou hispânica e apenas 3,5% eram protagonistas. O estudo aponta que 79% dos estados dos EUA possuíam uma população latina maior do que a representada, o que coloca em pauta não só a maneira como somos retratados, mas o apagamento de pessoas latinas, que fazem parte da população estadunidense.
Para além dos personagens, os atores que interpretam latinos nas telas frequentemente são julgados por estereótipos. Para ser cotado como latino, é preciso ter pele morena, cabelos escuros e cacheados, e se for uma mulher, o corpo curvilíneo também é requisitado.
Essa padronização acentua ainda mais a visão estereotipada, que exclui totalmente fenótipos negros demais ou brancos demais, ainda que os atores em questão tenham, de fato, origem latina. É o caso de atrizes como Gina Torres, de ascendência cubana e porto-riquenha, conhecida por Suits (2011-2019) e Firefly (2002-2003), e Kaya Scodelario, de origem brasileira, destaque em Skins (2007-2013) e na saga Maze Runner, (2014-2018).
Além disso, a presença mínima e estigmatizada dificilmente contempla a realidade de pessoas latinas, ainda mais quando se fala de um continente tão grande, com línguas, culturas e cenários diferentes. É complexo até mesmo utilizar o termo representatividade, uma vez que deveria significar uma identificação e conexão entre a ficção e a realidade.
Mas não é isso que acontece, pelo menos não com representações superficiais e personagens que não possuem desenvolvimento próprio, cuja única função é atender às expectativas de um público desinformado.

Segundo Ignacio, “os estereótipos se superam, sobretudo, com protagonistas complexos e multifacetados que estejam integrados à sua própria cultura. A chave é não transformar em exótico, festivo ou erótico tudo o que venha da América Latina”.
Para ele, a forma como os estúdios Disney buscam trazer essa representatividade nos live-action é um exemplo do que não deveria ser feito. Ao mudar os fenótipos da Pequena Sereia e da Branca de Neve, por exemplo, a xenofobia e os estereótipos ainda persistem, de modo que a mudança seja mais estética do que uma solução de verdade.
A identidade latina, em sua pluralidade
Apesar de estar diante de um cenário de aparente desconexão do cinema americano com a realidade, é preciso lembrar que já existem avanços, e o segredo é simples: ter pessoas da origem do país retratadas na produção. A opinião de Ignacio é que com diretores e roteiristas latino-americanos, ou mesmo melhores assessorias, os filmes de Hollywood teriam muito menos preconceitos, e seriam uma representação mais real.
No caso da Disney, investimentos em produções como Viva: A Vida é uma Festa (Coco, 2017) e Encanto (2021) têm mostrado resultados positivos. Em entrevista ao G1, o ator que dubla o personagem Miguel no filme, Gael García Bernal, comentou: “Sinto que o filme pode ser um elemento importante para que possam superar essas mentiras ditas sobre eles [imigrantes mexicanos]. E também porque ressalta a interdependência cultural entre os dois países”.
Em 2017, em seu lançamento, o longa se tornou a maior bilheteria do México, e provou que é possível tratar com respeito e veracidade a cultura e o povo de um país diferente.

No caso de Encanto, a recepção também foi positiva, graças a uma extensa pesquisa da equipe de produção na Colômbia, país que inspirou os cenários do filme. Ao conhecerem aspectos da arquitetura, culinária, vestimenta, tradição e até vegetação, foi possível fugir dos estereótipos e contar a história tridimensional e envolvente da família Madrigal, que cativou o público.
A respeito dos cinco anos de pesquisa, a co-diretora e roteirista de Encanto, Charise Castro Smith, pontuou à CNN: “A pesquisa, a cultura e a música foram peças fundamentais para fazer este filme. Para mim, os blocos principais da história foram feitos de influências colombianas”.
“É um filme que faz o público pensar nas suas próprias experiências. Em relação à memória, à família, aos entes que morrem, ao amor, ao que queremos da vida.”
Gael García Bernal
No universo da Marvel e da DC, heróis como Miles Morales, o Homem-Aranha de ascendência afro-americana e porto-riquenha, e Jaime Reyes, o Besouro Azul, de família mexicana, fez sucesso com os fãs, tanto nos quadrinhos quanto nas telas de cinema. A participação de Bruna Marquezine na produção da DC também chamou a atenção do público.
A atriz interpreta Jenny Kord, uma personagem de origem brasileira – assim como ela – que, mais que apenas o interesse amoroso do protagonista ou um estereótipo de latina atraente, lida com seus próprios traumas e questões dentro da história.
Embora não tenham nascidos e sido criados em um país da América Latina, em Besouro Azul (Blue Beetle, 2023), com exceção de Jenny, os personagens citados têm sua identidade naturalmente ligada às suas origens, de maneira que não se torne forçado ou mesmo ensaiado.
Essa nova maneira de retratar personagens latinos consegue contemplar suas diversidades e complexidades, e ao retratar fielmente as realidades dessa comunidade, as obras se comunicam diretamente com seu público, trazendo representatividade e identificação.

Apesar das mudanças, que já indicam um avanço na retratação de grupos minoritários pela potência norte-americana, não se pode esquecer da própria América Latina como produtora de filmes. Com o pioneirismo e a rápida difusão das produções de Hollywood, se tornou cada vez mais desafiador enxergar o cinema nacional, ou latino como um todo, com bons olhos.
Ainda assim, é importante lembrar que, desde a década de 1960, o cinema da América Latina ganhou força e criou sua própria identidade na indústria, com atores, diretores e roteiristas renomados. Além disso, ainda que os EUA se proponham a representar a realidade latina com seriedade e veracidade, não existe melhor maneira de retratar a América Latina do que por quem a vive de verdade, conhece sua história, cultura, inseguranças e alegrias como povo.
