Por Thaís Helena Moraes (thaismoraes@usp.br)
“Se você fosse diabético – ele retomou – e não tivesse dinheiro para uma dose de insulina, você roubaria para conseguir esse dinheiro? Ou simplesmente morreria?”
Essa é uma das falas de Fred, protagonista do livro O Homem Duplo (Editora Aleph, 2016), escrito por Philip K. Dick. Lançada em 1977, a obra é considerada um de seus livros mais sombrios, porque baseia-se em experiências pessoais de Dick com o mundo das drogas. Apesar de não ser dos escritos mais famosos do autor, que também deu vida a Andróides Sonham com Ovelhas Elétricas e Homem do Castelo Alto, O Homem Duplo inspirou uma adaptação para o cinema em 2006, com grandes nomes da indústria, e traz reflexões profundas sobre identidade e dependência química, permeadas por um contexto de experimentação de alucinógenos típico dos anos 1970.
No futuro, Fred é agente da Narcóticos, um órgão governamental que está na linha de frente de uma guerra às drogas. Seu papel é caçar os responsáveis pelo tráfico e distribuição da Substância D, uma droga altamente viciante cujo principal efeito colateral é a cisão da personalidade. No entanto, Fred tem um método de trabalho um pouco extremo: trabalha como infiltrado, entre traficantes e viciados, sob o disfarce de Bob Arctor.
Nesse sentido, ao descrever o dia a dia de Bob e seus amigos, Dick busca desconstruir o preconceito enraizado na sociedade acerca dos adictos. Por vezes tidos como indivíduos subversivos e perigosos, os dependentes químicos são — tanto na ficção quanto no mundo real — marginalizados e tratados com asco; como se o combate às drogas fosse uma questão de segurança pública, não de saúde. Ao longo de O Homem Duplo, Bob observa amigos terem seus cérebros “derretidos” pela Substância D, presos ao vício ou à abstinência; e, quando procuram ajuda, estão sujeitos a uma série de violências por parte das clínicas de reabilitação, que os tratam como animais. A obra convida o leitor a refletir sobre os próprios preconceitos e se colocar, assim como Fred, no lugar de Bob.
Avançando mais na trama, a situação de Fred se agrava quando a suspeita de tráfico recai justamente sobre si mesmo. O agente é designado por seu chefe para monitorar Bob Arctor, cuja casa passa a ser vigiada a todo o tempo (talvez numa referência a 1984, de George Orwell). Ao mesmo tempo, de forma quase imperceptível ao leitor, Bob começa a sentir os efeitos da Substância D. Cada vez mais envolvido em seu papel como infiltrado, Bob encontra-se apaixonado por sua fornecedora de drogas, Donna Hawthorne, e desconfia constantemente de seu colega, Jim Barris, que parece sempre conspirar contra ele. A vida de Bob e Fred, que até então havia sido de atuação diante dos amigos e das câmeras, começa a ser permeada por lapsos de memória, paranoia e alucinações.
“Será que o Fred é a mesma pessoa que o Bob? Mas quem sou eu? Qual deles eu sou?”
A gradual cisão de personalidade sofrida pelo protagonista, que se transforma em Fred e Bob separadamente, permite ao autor explorar questões como a construção da identidade. Conforme Fred (ou Bob) sente os efeitos da droga, os dois hemisférios de seu cérebro se desconectam e cada um desenvolve uma personalidade própria — sem que ele se dê conta. De maneira muito singular, Dick escreve passagens em que as duas personalidades se sobrepõem: enquanto uma analisa racionalmente um fato, a outra recita um trecho do Fausto, de Goethe, em alemão — trazendo uma interpretação emocional da situação.
Apesar de, em um primeiro momento, o livro parecer confuso e a trama um tanto arrastada, esses dois problemas vão se resolver conforme a leitura avança. A densificação dos personagens dá sentido a diálogos que soam desconexos e contribui para a criação de uma atmosfera caótica, quase psicótica. Por fim, a trama, que prometia ser apenas uma reflexão sobre a dependência química, entrega um final minucioso e perspicaz. Philip K. Dick se impõe mais uma vez como um mestre da ficção científica, e O Homem Duplo encanta especialmente aqueles mais afeitos à parte imaginativa e complexa da mente humana.