Por Fernanda Silva (fernandasilva@usp.br)
“Cai fora, Flanders!”, “P**a merda, mataram o Kenny!”, “Eu sou um picles, o Picles Rick!”. Essas frases são ícones de série animadas, como Os Simpsons (1989-atualmente). Muitas dessas obras vão além da malícia e do humor ácido e trazem críticas em relação ao conservadorismo da sociedade.
O início
Embora o gênero de animação seja atrelado ao público infantil, as animações surgiram como forma de entretenimento para adultos. O primeiro desenho animado da história foi o experimental Fantasmagorie (1908), do francês Émile Cohl. A obra mostra diversos desenhos de um palhaço, todos feitos à mão em movimentos e ações aleatórias.
Em 1919, surgiu o estúdio Sullivan, responsável por trazer os primeiros curtas do Gato Felix, personagem que, a princípio, fazia atrocidades como dirigir bêbado e ter alucinações alcoólicas. Entretanto, existe uma explicação para esses acontecimentos nada apropriados para crianças: naquela época, ainda não havia televisão e os desenhos eram transmitidos no cinema, que permitia apenas a entrada de maiores de idade. Assim, as animações começaram como uma forma de diversão para adultos.
Apesar do público adulto como alvo das animações, o estúdio Hanna-Barbera, por volta da década de 1940, alterou o perfil de sua audiência por conta de problemas com baixa verba. Assim, a empresa redirecionou seu conteúdo para o público infantil, já que o mesmo não era tão exigente em relação aos roteiros e qualidade das animações.
Anos depois, na década de 1960, o mercado audiovisual já estava tomado de diversas animações de sucesso voltadas a crianças, como Os Flintstones (The Flintstones, 1960-1966), Os Jetsons (The Jetsons, 1962-1963) e Scooby-Doo, Cadê Você? (Scooby-doo, Where Are You!, 1969-1970).
Adultos voltam a ser o público-alvo

[Imagem: Divulgação/Star Channel]
As televisões ficaram repletas de animações para crianças, enquanto o público maduro parecia esquecido pelas emissoras e estúdios. O cenário permaneceu o mesmo até 1989, quando Matt Groening estreou sua série Os Simpsons (The Simpsons, 1989-atualmente) e levou a família politicamente incorreta para o FOX Channel (que depois se tornou o extinto Star Channel).
A série, que satiriza o estilo de vida das famílias estadunidenses, ganhou o público logo nos seus primeiros anos e, após três temporadas, tornou-se um programa do horário nobre do canal. Os Simpsons trouxe uma nova era para a televisão, de forma a mostrar que havia espaço para os desenhos adultos voltarem às grades de programação.
Em 2025, a série enfrentou boatos sobre um possível cancelamento, mas Matt Groening, criador do programa, esclareceu que o show está renovado até a 40ª temporada.
Outra emissora com papel importante nessa nova fase foi a MTV norte-americana, que entregou animações como Beavis and Butthead (1993-1997) e South Park (1997-presente). A Cartoon Network, embora seja um canal infantil, também teve atuação marcante na área: em 2001, criou o bloco Adult Swim (2001-presente), responsável por transmitir animações adultas nas madrugadas do canal.
Atualmente, clássicos como Os Simpsons e South Park continuam no ar com 36 e 26 temporadas, respectivamente. Além disso, existem novas séries de sucesso como Rick & Morty (2013-presente), do Adult Swim, Hazbin Hotel (2024-presente), da Amazon Prime e Bojack Horseman (2014-2020), da Netflix.
Produções Nacionais

ex-apresentador da MTV, João Gordo
[Imagem: Reprodução/YouTube/ Fudêncio e Seus Amigos]
O Brasil também tem sua porcentagem de produções animadas para adultos, cuja parte significativa se deve à MTV Brasil, que comandava uma produtora voltada apenas a esse segmento: a Drogaria de Desenhos Animados da MTV.
A marca lançou sucessos como Megaliga MTV de VJs Paladinos (2003-2007), uma série protagonizada pelos apresentadores do canal, personalidades como João Gordo e Marina Person tornaram-se super-heróis nos episódios da série de animação. A trama satirizava a história da franquia X-Men.
Outra produção é Fudêncio e Seus Amigos (2005-2011), desenho que acompanhava a rotina de Fudêncio, um boneco de plástico com vida, junto de outros alunos em uma escola pública brasileira.
Desenho também é coisa séria!
Embora muitos desses títulos contenham palavrões e obscenidades, os desenhos para adultos vão muito além das piadas ousadas. Os roteiros também trazem diversas reflexões acerca de assuntos sérios como homofobia, intolerância religiosa e saúde mental, por meio de piadas ácidas.
South Park aborda a vida de crianças que vivem em uma pequena cidade no Colorado, nos Estados Unidos, e passam por situações controversas. Dentre as características mais marcantes da animação, estão as falas preconceituosas proferidas por Eric Cartman, um garoto de apenas oito anos que ofende diversas minorias. Um de seus principais alvos é seu colega Kyle, um menino judeu. Cartman afirma ser uma pessoa melhor que Kyle por supostamente não negar a Jesus Cristo. O personagem é uma crítica aos estadunidenses que espalham preconceitos e ainda acreditam ser superiores por conta de sua religião.

Imagem: [Reprodução/Pluto TV]
Mais um exemplo de tema complexo em uma animação adulta o segundo episódio da 11ª temporada de South Park, em que, após um mal entendido, os pais do personagem Butters, de apenas oito anos, resolvem enviá-lo para um acampamento de conversão sexual por acreditarem que têm um filho bissexual. Ao chegar no local, o garoto se depara com um campista que se enforca após não conseguir conviver com sua própria orientação sexual. O teor triste e mórbido da cena fica em segundo plano por conta da essência satírica da série, mas as críticas do roteiro contra a LGBTFobia continuam, até que, próximo ao fim do episódio, o colega de Butters tenta pular de uma ponte pelas mesmas razões. Porém, o garoto interfere ao fazer um discurso sobre como não há problemas em ser bissexual e evita a tragédia.
Um nome conhecido por abordar temas de caráter mental é a produção da Netflix, Bojack Horseman. A série de Raphael Bob-Waksberg acompanha a vida do cavalo Bojack, uma ex-estrela de sitcoms dos anos 1990 que precisa se acostumar com o fim de sua fama. Esse cenário causa muitas dores ao personagem, que apela para o consumo de álcool e outras substâncias como escapismo de seus problemas.
A trama, em seus primeiros episódios, tende a parecer uma comédia, mas ao longo da temporada os dramas são cada vez mais sérios e profundos a fim de causar reflexões sobre saúde mental. Um dos momentos mais marcantes é quando Bojack admite que seus sentimentos são uma completa bagunça mas que ainda assim só gostaria de escutar que é uma boa pessoa.
Mais uma série que não poupa críticas ao conservadorismo é Hazbin Hotel (2019-presente). O enredo, criado por Vivienne Medrano, conta a história de Charlie Morningstar, a princesa do inferno. Ao ver que seu reino sofre com superpopulação, a garota cria um hotel para reabilitar pecadores a fim de fazê-los subir aos céus. Entretanto, os líderes do Paraíso não aceitam a ideia, pois não acreditam na possibilidade de mudança dos pecadores. A questão é que os seres celestiais também apresentam comportamentos controversos mas preferem fingir que são superiores.

[Imagem: Divulgação/ YouTube/Prime Video Brasil]
Um dos personagens com comportamentos desalinhados à conduta celestial, é Adão, o chefe do exército angelical que constantemente solta falas machistas e homofóbicas, apesar de ser um ser celestial. Ele e sua companheira de batalhão, Lute, chegam a definir a Angel Dust, um personagem abertamente homossexual, como “Uma p*** que é pura maldade”.
O que dizem os fãs?

[Imagens: Reprodução/Instagram/@miiacos]
A cosplayer Mia é uma fã da série e já fez cosplays dos personagens Angel Dust e Valentino. Em entrevista à Jornalismo Júnior, ela revelou quais são os pontos mais atrativos da trama de Hazbin Hotel, em sua opinião: “Eu gosto muito da parte que aponta a hipocrisia dos personagens do céu, que supostamente deveriam ser bons. Gosto também da ambiguidade de alguns personagens que estão no inferno”.
A artista também acredita que a animação faz sucesso pela ausência de puritanismo em sua trama: “É realmente muito absurdo perto de outras obras, escancarando total alguns assuntos super polêmicos e problematizados”. Já o profissional de Tecnologia da Informação, Gabriel Dias Arias Gonzalez, conversou com a Jornalismo Júnior sobre a influência positiva que enxerga na série Bojack Horseman: “Acredito que a série tem um grande potencial de acréscimo positivo na saúde mental, uma vez que ela proporciona vários momentos de reflexão para situações que podemos atribuir a nossas próprias realidades e nos identificar. Logo em seguida, vemos como cada uma das personagens lida com isso de sua forma”, destaca.

[Imagem: Divulgação/Netflix]
Além do básico
A chegada dos serviços de streaming trouxe mais opções de entretenimento, incluindo novas animações para adultos que não haviam ido ao ar na TV brasileira e agora estão disponíveis nas plataformas.
Clone High (2002-2003, 2023-2024)

Cientistas fazem um experimento científico em que figuras históricas são clonadas e colocadas no mundo atual. Teletransportadas como cópias adolescentes de personalidades históricas como Joana D’arc, Frida Khalo, Cleópatra e J.F Kennedy, eles precisam sobreviver ao ensino médio.
A série foi dividida em duas partes: a primeira, transmitida entre 2002 e 2003, quando os personagens viviam nos anos 2000, e a segunda, que durou apenas duas temporadas, e traz as mesmas figuras para os dias atuais.
Disponível na HBO Max.
Tuca e Bertie (2019-2022)

Uma abordagem humorada para os conflitos da vida adulta é a premissa da história que acompanha a vida das melhores amigas Tuca, uma tucana ousada e extrovertida, e Bertie, uma pardal insegura e cautelosa. Juntas, elas enfrentam questões relacionadas a trabalho, romances e amizades.
Disponível na HBO Max e na Netflix.
Helluva Boss (2019-presente)

[Imagem: Divulgação/YouTube/ViviziePop]
Blitzø é um demônio que administra uma empresa de assassinos de aluguel no inferno, onde pessoas já mortas podem encomendar a morte de seus desafetos da terra. Entre uma missão e outra, a história mostra conflitos sentimentais e psicológicos vividos pelos personagens.
A animação é assinada por Vivienne Medrano, mesma criadora de Hazbin Hotel.
Disponível no Youtube.
Sociedade da Virtude (2017-presente)

Criada pelo roteirista Ian SBF, Sociedade da Virtude é uma produção nacional sobre uma sociedade onde existem super-heróis, mas eles não são tão virtuosos quanto parecem e precisam enfrentar problemas e conflitos como qualquer ser humano.
Disponível na HBO Max.
Teenage Euthanasia (2021-presente)

o Dia da Mentira de 2023
[Imagem: Divulgação/Adult Swin/HBO Max]
Trophy é uma mãe ausente que abandonou sua filha, Euthanasia. Um dia a mulher morre mas, logo em seguida, é acidentalmente ressuscitada na funerária de sua família. Agora, ela deve aproveitar a segunda chance para consertar o relacionamento com seus parentes, mas Trophy não parece querer levar a vida a sério.
Disponível na HBO Max.


