“mas ele se benze
tudo
por que não benzer o olho morto pra voltar normal?
será que ele prefere não ver?
imaginar o mundo
deve ser mais bonito mesmo”
— O Peso do Pássaro Morto, Aline Bei
Essa é a história de uma mulher sem nome. Parece estranho que a protagonista de um livro seja desprovida daquilo que é uma das coisas mais comuns ao ser humano: uma nomeação. A questão, que circunda a personagem sem nome de O Peso do Pássaro Morto (Editora Nós, 2017), estreia na literatura de Aline Bei, é que ela sente-se insuficiente, e não se identifica com nenhum título, o que talvez justifique sua falta de nome. Não se sente mãe, nem mulher. Não se sente pertencente nem a seu próprio corpo ou a sua própria casa. Sua vida, que passa praticamente alheia aos seus olhos, não é profundamente aproveitada, e, muitas vezes, a personagem perde-se em pensamentos sobre como sua vida poderia ter sido.
A trajetória da mulher começa aos 8 anos, quando, ainda criança, entende pouco sobre as temáticas de morte, saudade e abandono. Desde muito jovem, a protagonista experimenta o sofrimento e as faltas – de alguém ou de alguma coisa –, que a acompanham até o final de sua vida. Aline faz questão de não enquadrá-la na conhecida dualidade de “vilã ou mocinha”. Ainda que falte protagonismo em sua vida, a personagem é complexa e possui características, ao mesmo tempo, boas e ruins, assim como qualquer ser humano.
Quando ela atinge a idade adulta, sua coleção de faltas e de perdas continua aumentando. Não é como uma história romântica em que, no final, a personagem assume um papel central, encontra um amor e vive feliz para sempre. Essa é uma história real, sobre temáticas duras, em que nem sempre a felicidade e o amor reverberam. No caso da mulher, as verdadeiras protagonistas de sua vida são as faltas e perdas, que estão presentes em todas as suas idades.
“mas não era
Tempo,
o problema foi a perda
da parte
de mim que
acreditava, vazou no banho um dia
pelo ralo,
escorreu e a água rápida mandou pro cano que levou
pro rio”
— O Peso do Pássaro Morto, Aline Bei
O Peso do Pássaro Morto não é uma leitura fácil. Ainda que a história seja genialmente disposta em formato de poesia, as temáticas abordadas pela autora são difíceis de acompanhar em uma leitura contínua. Entretanto, é maestral a dualidade que a própria obra apresenta: de ser um livro com temas pesados, mas que são retratados em tom poético, em que a estrutura tenta acrescentar leveza aos acontecimentos.
A obra, que começa na página 7, não termina na página 165. A palavra da escritora reverbera, mesmo depois do final físico do livro. Seja pelas prováveis lágrimas ao final da trama, ou pelos temas abordados por ela, é quase impossível parar de pensar no enredo quando a capa se encontra à contracapa. Por ser uma escrita intimista, cada episódio apresentado ao leitor provoca reflexões, que transpassam a ficção. Quantas mães solteiras carregam todas as consequências do abandono paterno? Quantas mulheres, vítimas de algum tipo de abuso, vivem silenciadas por anos, com medo de fazer uma denúncia? Quais as consequências de experienciar um grande trauma tão cedo na vida? Essas são apenas algumas das questões que ficam com a leitura do livro.
Qual é, então, o peso desse pássaro que morre? É apenas sobre uma ave que Aline se refere? Durante a leitura, ele assume a forma de pessoas, lugares, outros animais e até sentimentos. A personagem lida com inúmeras perdas, e todas as consequências que essas faltas fazem em sua vida.
O Peso do Pássaro Morto é importante, chocante, cruel e, ao mesmo tempo, lindo. É o retrato de uma mulher com pouca presença no mundo, e que luta calada e sozinha para encontrar um lugar só seu, em meio a tanta dor e sofrimento. Sem dúvida, a obra de estreia de Aline Bei demonstra sua força como escritora, o que explica ela ter vencido o Prêmio São Paulo de Literatura 2018.
“quando um bebê nasce
uma Flor brota
no peito e sai
pelo leite da mãe
é assim
que os bebês crescem
se alimentando dessa
flor invisível
algumas pessoas
chamam ela de
amor”
— O Peso do Pássaro Morto, Aline Bei
[Imagem de capa: Beatriz Pecinato]