Na última terça-feira (23), a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do arcabouço fiscal, proposta elaborada pelo governo federal que substituirá o teto de gastos criado durante o governo Michel Temer, o qual passou a vigorar em 2017. Com 372 votos favoráveis, a versão substitutiva do relator Cláudio Cajado (PP-BA) procura estabilizar a dívida pública por meio de limites de crescimento e sanções para caso as metas não sejam cumpridas.
O projeto de lei complementar (PLP 93/2023) gerou atritos em diferentes polos políticos. Aprovado com unanimidade na bancada do PT, a proposta não foi apoiada pela federação Psol-Rede, que votou inteiramente contra. O PL, partido com maior bancada (99 deputados, com 90 presentes na votação), também votou majoritariamente contra, apesar de um terço dos deputados serem favoráveis ao texto.
Confira como foi a votação no gráfico interativo a seguir:
No dia 24, os parlamentares rejeitaram todos os destaques apresentados pelos partidos que poderiam mudar trechos do texto, o que manteve a redação do relator inalterada. O novo regime fiscal será enviado ao Senado e poderá sofrer mudanças. A relatoria será do senador Omar Aziz (PSD-AM), que integra a base política do governo Lula.
O que é o arcabouço fiscal?
O arcabouço fiscal representa uma estrutura de regras que regulam as receitas e as despesas do país. O balanço entre o que o governo arrecada e o que ele gasta é chamado de resultado primário. A partir de limites estabelecidos, o objetivo da proposta é manter esse saldo positivo (superávit primário): gastar menos do que recebe.
Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), durante reunião de trabalho sobre o novo arcabouço fiscal no Palácio da Alvorada, em Brasília-DF. [Foto: Flickr/Ricardo Stuckert/PR]
José Luiz Portella, doutor em História Econômica e pesquisador, explica que o propósito do arcabouço é ter uma previsão da trajetória da dívida pública. “Normalmente, os países gastam mais do que arrecadam, então eles contraem uma dívida. O projeto estabelece um limite para que o país não passe a ideia de que não vá conseguir pagá-la".
Em entrevista à Jornalismo Júnior, Guilherme Mello, Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, defende que o arcabouço é a substituição de um projeto ultrapassado e que fortalecerá as políticas públicas. “Ele vai permitir a necessária harmonização na política monetária fiscal, reduzindo o risco para o Brasil e abrindo um caminho para uma redução da taxa de juros e para que o país cresça mais no futuro".
O que vai mudar?
O arcabouço fiscal aprovado na Câmara substitui o teto de gastos instituído durante o governo Michel Temer, em 2016. Estabelecido pela Emenda Constitucional Nº 95, o teto limitava o crescimento dos gastos públicos por dez anos (com outros dez renováveis), sem reajustes acima da inflação. O modelo é alvo de críticas por estagnar o crescimento real das despesas públicas e fazer com que essas, ao longo do tempo, fiquem menores em relação ao PIB.
“Não adianta estabilizar a dívida se não crescer, porque você [país] vai ficar sempre no mesmo patamar. O objetivo de um país não é apenas se estabilizar, o objetivo de um país é crescer e distribuir renda”
José Luiz Portella
O novo projeto é mais flexível que o anterior por associar o crescimento das despesas ao crescimento da receita. Na prática, o aumento dos gastos públicos fica limitado a 70% do crescimento da arrecadação do governo acrescido da inflação. Os outros 30% são destinados à contenção da dívida pública.
Também foi definido um intervalo — variável de 0,6% a 2,5% — que limita o crescimento real das despesas no ano. Se o aumento de arrecadação for menor que 0,6%, as despesas ainda poderão crescer nessa proporção. Mesmo que a arrecadação ultrapasse o intervalo, o governo deve respeitar o limite de crescimento de 2,5%, mas pode investir parcela do excedente.
Para cada ano, foi estabelecida uma meta: zerar o déficit em 2024 e ter superávit em 2025 e em 2026. Em caso de não cumprimento, o arcabouço limita a 50% o aumento dos gastos públicos. Além disso, o projeto editado pelo relator prevê gatilhos para conter gradualmente despesas quando certos limites forem ultrapassados.
No primeiro ano fora da meta, a criação de cargos e a ampliação de subsídios, por exemplo, ficariam proibidos. Já no segundo ano consecutivo, mais sanções seriam acrescidas, como a proibição de novos concursos públicos e o reajuste de salários de servidores públicos. O descumprimento dos contingenciamentos e gatilhos se enquadra como uma infração pela Lei de Responsabilidade Fiscal e é passível de punição.
Entenda as dinâmicas do arcabouço fiscal.
O projeto obteve ampla maioria na Câmara, mas divide aqueles que votaram contra. De um lado, setores conservadores criticam a flexibilização em relação ao teto fiscal; do outro, grupos progressistas questionam a inflexibilidade em situações emergenciais.
Para o assessor econômico do Psol na Câmara dos Deputados, David Deccache, o arcabouço fiscal é uma política insustentável em momentos de crise. “Essas questões não devem ficar amarradas a uma nova construção fiscal para o país. Nós temos que ter gatilhos muito automáticos e muito ágeis para acomodar situações inesperadas”, comenta. Sobre isso, a equipe econômica do governo afirma que, em situações emergenciais, o crédito extraordinário aberto por uma medida provisória seria o suficiente para atender às necessidades de crise.
Portella pontua que a função do arcabouço é regular a dívida pública. “Ele [arcabouço fiscal] estabiliza a dívida dependendo do que o Estado vai fazer, mas não resolve nenhum problema de desigualdade nem necessariamente de crescimento”.
Polêmicas com o Fundeb e tensões políticas
O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) é um recurso que atende a todas as camadas da educação básica e que se prova essencial para o desenvolvimento desse âmbito no país. O teto de gastos anterior não incluía o Fundeb, mas o arcabouço fiscal passou a integrá-lo.
Para Deccache, esse tipo de movimentação é um "retrocesso ideológico”. Ele explica que a justificativa para a inserção dos gastos do Fundeb e da saúde no arcabouço fiscal é baseada no princípio da universalidade, que pressupõe que não há hierarquia entre os gastos. O assessor econômico do Psol discorda dessa visão, pois, segundo ele, as despesas com a educação e com a saúde são significativamente maiores que o resto, o que contribui para que os outros setores sejam suprimidos por elas.
Deccache ainda alega que a inclusão do Fundeb no arcabouço fiscal é matematicamente insustentável, pois as despesas precisam ser compatíveis com o limite geral. Para ele, essa incompatibilidade pode fazer com que haja uma interferência do governo nas verbas da educação e da saúde.
Guilherme Mello explica que os gastos com o Fundeb são garantias constitucionais e que não estão ameaçados. Caso o crescimento de gastos com a saúde e com a educação ultrapasse as proporções estabelecidas de 70% do aumento da receita, o limite total pode ser regulado reduzindo outras despesas. “É uma escolha política que cada governo vai fazer”, afirma.
Presidente Lula e Fernando Haddad, Ministro da Fazenda, em reunião sobre o novo arcabouço fiscal no Palácio da Alvorada, em Brasília-DF. [Foto: Flickr/Ricardo Stuckert/PR]
O que significa o arcabouço para a população brasileira?
As mudanças propostas pelo arcabouço fiscal buscam estabilizar as contas públicas e criar condições para um crescimento sustentável. Índices como a taxa de juros e o nível de desemprego estão diretamente associados à situação econômica do país e às movimentações políticas que nele ocorrem. Quando há previsibilidade nas contas públicas, a taxa de juros tende a baixar, de modo a aquecer a economia, atrair investimentos estrangeiros e gerar empregos.
De acordo com Portella, mesmo que haja crescimento econômico, pode não haver reflexos positivos nas contas da população. “Quando os juros são baixados, é gerado um crescimento, mas se isso for feito sem estabilidade, corre-se o risco de gerar inflação”. A inflação, por sua vez, relaciona-se diretamente ao nível de desemprego no país. Quando elevada, ela implica a diminuição do poder de compra da população, o que causa queda na demanda. Com essa queda, os lucros das empresas diminuem, de modo a ocasionar demissão em massa. Assim, é gerado o ciclo do desemprego.
O pesquisador acredita que, se as metas não forem cumpridas, os gatilhos de contenções podem afetar o funcionalismo público. A proibição da ampliação de subsídios e a do aumento de salários são algumas das punições para o governo. O pesquisador afirma que, para o setor, o arcabouço “vai ser mais rigoroso dependendo da trajetória da dívida pública".
“A grande praga do país é a desigualdade e nós não temos um plano para isso. O Brasil tem que deixar de ser um país com essa desigualdade abissal"
José Luiz Portella
*Imagem de capa: Lula Marques/Agência Brasil