Há dez anos, no dia 18 de julho, era lançado no Brasil o filme Batman: O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, 2008), do renomado diretor Christopher Nolan. A obra está inserida na trilogia que Nolan fez sobre o herói, iniciada com Batman Begins (2005) e encerrada por Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (The Dark Knight Rises, 2012). Dos três filmes, o segundo é o mais elogiado pela crítica e relembrado com muito afeto por fãs do homem morcego, em especial o icônico Coringa, interpretado por Heath Ledger.
O ator morreu pouco antes do lançamento do filme, a causa foi uma intoxicação acidental de remédios prescritos. Ledger inclusive recebeu um Oscar póstumo de Melhor Ator Coadjuvante pela sua atuação como o Coringa. Além do excelente vilão, o filme possui diversos elementos marcantes que, dez anos depois, confirmam a sua posição como um dos melhores filmes de super-heróis de todos os tempos. Mas quais são esses elementos? E quais são os seus pontos negativos? Confira abaixo!
Os personagens (e O personagem)
O grande destaque do filme de Christopher Nolan é, sem sombra de dúvidas, a excelente construção dos seus personagens. Os três de destaque são o próprio Batman (Christian Bale), grande protagonista do filme, o promotor Harvey Dent (Aaron Eckhart) e o vilão Coringa (Heath Ledger). O primeiro passa por uma jornada de afirmação como o grande herói da cidade de Gotham. O segundo passa por um processo de decadência, tornando-se o vilão Duas-Caras. Já o terceiro não sofre nenhuma mudança, começando e terminando o filme como um vilão sádico, anárquico e cruel.
Ao longo do filme, Bruce Wayne perde o seu grande amor, Rachel Dawes (Maggie Gyllenhaal), e passa por diversos auto questionamentos. O filme ilustra os limites entre o humano (Bruce Wayne) e a figura heróica (Batman), mostrando os sacrifícios e os desafios pelos quais Wayne passou e ainda deve passar para proteger Gotham dos criminosos. É interessante notar que o longa abre margem para que os telespectadores questionem as ações do herói, não colocando-o como um ser perfeito, mas sim como um humano, que comete erros e acertos.
Já a figura de Harvey Dent representa um outro tipo de herói. Um promotor que segue as leis e que tem plena convicção de que é possível fazer justiça sem apelar para a violência. Dent acaba sofrendo um processo de decadência, cujo ápice é atingido com a morte da sua namorada, Rachel Dawes. Com a morte do seu grande amor, o promotor, sempre movido por uma cega confiança na justiça, torna-se violento, pragmático, mais sombrio. É a passagem de Harvey Dent para o famoso vilão dos quadrinhos, o Duas-Caras. O personagem torna-se a personificação da sua frase usada para se referir ao Batman no começo do filme: “Ou se morre como herói ou vive-se o bastante para se tornar vilão”. Ao fim, a jornada do personagem mostra que até o melhor dos homens pode ser corrompido pela sociedade.
O filme também conta com um excelente elenco de apoio, em especial o mordomo e confidente do homem morcego, Alfred Pennyworth (Michael Caine), que é o mais próximo de um alívio cômico no longa e um excelente conselheiro para o herói. Também merecem destaque Lucius Fox (Morgan Freeman), CEO das Indústrias Wayne e o Comissário Gordon (Gary Oldman), um policial determinado em acabar com a máfia na cidade, além de Rachel Dawes, advogada da promotoria de Gotham. É interessante notar que, diferentemente da maioria de filmes de super-heróis da atualidade, os personagens coadjuvantes são muito bem desenvolvidos e aprofundados, não sendo usados apenas como um apoio para contar a história do Batman, mas também tendo suas próprias histórias ao longo da trama.
Mesmo assim a proeminência é, sem sombra de dúvidas, do vilão Coringa. A atuação de Heath Ledger rouba a cena e transforma um filme do Batman em um filme do Coringa com o Batman. O ator conseguiu absorver o Coringa dos quadrinhos, seus maneirismos, loucuras e distorcido senso de humor. Até hoje há uma polêmica em torno da morte do ator, já que, para alguns, o processo no qual Heath tornou-se o personagem acabou por influenciá-lo negativamente, e serviu como um catalisador para o desenvolvimento de tendências suicidas por parte do ator.
Vale lembrar que Ledger havia sido considerado por Nolan para interpretar o Batman no primeiro filme da trilogia, mas o ator rejeitou o convite. Ele acabou aceitando o posterior convite para interpretar o vilão, mas foi intensamente criticado pelos fãs do herói, que achavam a escalação inapropriada. Não há como negar que Ledger provou o quão errado essas pessoas estavam, e hoje o seu Coringa é o mais elogiado pela legião de fãs do Batman.
O processo de atuação de Ledger envolveu um período de isolamento, em que o ator escreveu textos e realizou colagens de imagens para entrar no personagem. Heath também se inspirou no livro Laranja Mecânica, do escritor Anthony Burgess, e nas pinturas de Francis Bacon. Heath comentou sobre todo esse processo numa entrevista para o Empire Online em 2007: “Eu me sentei em um quarto de hotel em Londres por um mês, me tranquei, formei um pequeno diário e fiz experimentos com vozes — era importante tentar achar uma voz e uma risada um pouco icônicas. Eu acabei pousando mais no reino de um psicopata — alguém com muita pouca consciência em relação aos seus atos.”
É importante focar não na morte do ator, ou nas suas causas, mas sim na sua carreira. Em especial, na sua primorosa atuação como o Coringa, atuação que inclusive rendeu diversos prêmios ao ator, entre eles o primeiro Oscar dado a um ator por sua atuação em um filme de heróis. Apenas para comparação, nos 10 anos de sucesso do Universo Marvel, nenhum dos seus filmes foi agraciado com a estatueta. Heath fez história em O Cavaleiro das Trevas, e é assim que ele deve ser lembrado e discutido.
Os aspectos técnicos
A trilha do sonora do filme foi produzida pelos mesmos compositores do filme Batman Begins: Hans Zimmer e James Newton Howard. Simples mas eficaz, ela consegue aumentar a imersão do telespectador no filme, mesmo que às vezes pareça um pouco repetitiva (em especial nos momentos que antecedem as cenas de ação). O trabalho dos dois compositores rendeu um Grammy de Melhor Álbum de Trilha Sonora para Filme, Televisão ou Outra Mídia Visual.
Quanto aos efeitos especiais, o filme acaba optando pela simplicidade. Isso é compreensível, já que o Batman não é conhecido por enfrentar alienígenas, lidar com magias ou enfrentar monstros bizarros. O herói também não voa, dispara raios ou consegue alterar sua forma. O Batman é um herói mais humano, com inimigos mais humanos, portanto é natural que não haja grandes efeitos a ser empregados. O que chama a atenção é a construção do rosto desfigurado de Harvey Dent, com uma aparência mais realista e menos cartunesca.
As cenas de luta e perseguição são bem coreografadas, trabalhando bem o realismo que marcou a trilogia de Nolan com o aspecto mais fantasioso das cenas de ação das histórias em quadrinhos. A grande cena de perseguição ocorre em um túnel, quando Coringa tenta capturar Harvey Dent. Mesmo sendo bem feita e cheia de ação, a sequência é excessivamente longa, com alguns trechos que parecem ter sido inseridos apenas para aumentar a quantidade de acidentes e batidas no filme.
Uma cena específica de destaque é a de abertura do filme. Seu maior feito é a excelente introdução ao Coringa, primeiro com a criação de uma aura em torno do vilão a partir das falas dos seus capangas, depois com a revelação de que o Coringa estava o tempo todo entre os seus homens. Nela, já podemos ver quem é o vilão, um personagem sádico, bruto, violento e anárquico, que gosta de tirar uma com a cara dos outros de um jeito sombrio e distorcido e ama ver o circo pegar fogo. Em cinco minutos vemos a malévola genialidade do personagem de Ledger, e notamos que, nesse filme, Batman terá realmente um vilão à sua altura.
Os temas abordados
É comum que os filmes de heróis evitem discutir temas tidos como mais adultos, também evitando cenas excessivamente violentas. Batman: O Cavaleiro das Trevas foge dessa tendência. As cenas de ação, quando necessário, conseguem ser bastante violentas e brutalmente excessivas, algo essencial para retratar de forma completa a figura sádica que é o Coringa.
Em relação aos temas presentes no filme, chama a atenção a abordagem da questão da corrupção. Tanto em um sentido de figuras públicas agindo a partir de interesses privados, com diversos exemplos de policiais corruptos ao longo da trama, quanto de uma corrupção humana, personificada na trama de Harvey Dent. O pragmatismo do Comissário Gordon também é colocado em xeque no filme, já que ele trabalha com policiais que possuem suspeitas em relação a suas condutas, mas que, por serem eficientes e aparentemente leais, são mantidos no cargo pelo policial.
O filme até tenta colocar mais protagonismo na sua figura feminina principal, Rachel Dawes, mas não consegue retirar dela a imagem de uma donzela em perigo, algo ainda muito presente em filmes de heróis mas que, felizmente, está mudando. Vale notar que a sequência do filme, Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge, já coloca uma personagem feminina mais independente com a Mulher-Gato (Anne Hathaway).
Um tema central da trama é a questão da moralidade. De um lado temos um personagem que se coloca como o seu defensor, movido exclusivamente por ela, que é o promotor Harvey Dent. No entanto, ela também apresenta suas limitações, já que sozinha não é capaz de liquidar o crime em Gotham. Nesse sentido, o embate entre essa moralidade cega de Dent e o pragmatismo exacerbado de Gordon é muito interessante de se observar, e suscita um interessante questionamento em relação à aplicabilidade da moralidade no combate ao crime.
Outro momento de grande importância em relação a esse tema é a cena das balsas no final da trama. Nela, duas balsas são usadas para evacuar a cidade de Gotham após uma ameaça do Coringa. Em uma estão diversos moradores comuns da cidade. Na outra estão criminosos presos ao longo da atuação de Dent. O Coringa coloca bombas nas duas balsas e envia os controles das bombas para seus ocupantes, mas com a seguinte questão: cada balsa tem o controle das bombas da outra. Todas as bombas explodirão em 60 minutos, mas os ocupantes de uma balsa serão preservados caso acionem as bombas da outra.
O objetivo do vilão com isso é provar que, em situações extremas, o ser humano abandona a sua moralidade em prol da sua sobrevivência. No filme, a tese do vilão é refutada, mas em diversos momentos anteriores da trama vemos essa moralidade ser sim abandonada, geralmente graças à atuação do vilão, o que abre margem para discussão sobre o assunto.
No geral, nota-se que Nolan conseguiu utilizar muito bem um filme de herói para tratar de temas muito sérios, comumente vistos como inapropriados para gêneros voltados para um público, teoricamente, mais novo, caso dos filmes de super-heróis. Nesse sentido, a escolha de utilizar o Batman provou-se muito acertada, já que, por ser um herói mais realista e sombrio, as tramas sobre ele abrem margem para esse tipo de debate.
Com isso, Nolan quebrou as expectativas que existiam em torno dos filmes de super-heróis à época, reforçadas por filmes como A Liga Extraordinária (The League of Extraordinary Gentlemen, 2003), a trilogia de filmes dos X-Men (X-Men e X2 de Bryan Singer e X-Men: The Last Stand de Brett Ratner), os dois filmes do Quarteto Fantástico (Fantastic Four e Fantastic Four: Rise of the Silver Surfer de Tim Story) e muitos outros. Criando um filme que não possui personagens previsíveis ou que sustenta um roteiro clichê com cenas de ação exageradas e efeitos especiais de outro mundo, Batman: O Cavaleiro das Trevas é um filme que trata de temas muito relevantes e que conta com atuações dignas de grandes filmes.
O filme envelheceu bem?
Anos depois, Batman: O Cavaleiro das Trevas ainda é um filme muito bom de se assistir, que sempre consegue trazer consigo muita tensão (em grande parte graças a atuação de Heath Ledger) e questionamentos contundentes para o espectador. Um problema da obra é o seu grande tempo de duração, e, em certos momentos, deve-se admitir que o filme pode ficar um pouco entediante, mas, no geral, é superado por um enredo bem construído e amarrado.
No fim, a excelência do filme, sem sombra de dúvidas o melhor da trilogia de Nolan, acaba sendo também o seu maior defeito. Não há como ver o seu antecessor e o seu sucessor e não se sentir decepcionado, já que os dois nem de longe conseguem se igualar ao filme, o que acaba reduzindo a qualidade da trilogia. Outro aspecto interessante é que, depois do Coringa de Ledger, nenhum vilão do Batman retratado nas telas consegue ser tão ameaçador ou impactante quanto ele.
Em relação aos filmes de herói como um todo, a trilogia de Nolan já se destaca por ser mais realista, sombria e madura, e Batman: O Cavaleiro das Trevas é o que mais se destaca nesse sentido. Na atualidade, em que a referência são os filmes da Marvel Studios, mais descontraídos e com mais alívios cômicos ao longo da trama (não que haja algo de errado nisso), é interessante sair um pouco desse novo padrão, e explorar outros tipos de filmes de heróis.
Também não há como negar que as atuais produções de personagens da DC Comics nos cinemas não conseguiram chegar ao nível de qualidade desse filme. Ao mesmo tempo, é interessante notar que buscam inspiração na trilogia de Nolan, tentando retratar temas mais sérios ou trazendo mais realismo nas suas produções. Essas tentativas, no entanto, não produziram muito sucesso até agora.
No geral, Batman: O Cavaleiro das Trevas conseguiu manter sua qualidade mesmo com o passar dos anos e se mostrou paradigmático para seu gênero. Com tudo isso, fica claro que o melhor jeito de comemorar os dez anos desse filme é fazendo uma pipoca e vendo esse grande filme mais uma vez!
por João Pedro Malar
joaopedromalar@gmail.com