Imagem: Samantha Prado / Comunicação Visual – Jornalismo Júnior
A língua portuguesa tem um acordo ortográfico para que se escreva na norma culta e — repara no palavrão… Não! Esse termo é errado. Repara na contagem de caracteres do termo que vem a seguir — uniformizada. Temos de escrever a redação do vestibular dessa — ou seria desta? — maneira. Temos que aprender as escolas literárias seculares pra — e o corretor indica para — ter um bom rendimento na prova de múltipla escolha — não pode dizer que é de xizinho porque é feio. Tem que ser padrão senão — vê se está correto aí, meu diretor — fica irregular. Irregular pra — pra mesmo — quem? A literatura sai fora dessa caixa surrada e se reformula nas mãos e experiências de quem está escrevendo. E nas favelas, no sentimento das favelas, ela é passada com muito potencial. Tem cultura sendo produzida e consumida por quem faz parte dela. E indo para outros lugares também.
Há várias referências nesse campo. Sérgio Vaz é um poeta brasileiro que se autodeclara como vira-lata da literatura e é fundador do Sarau da Cooperifa, onde se realiza atividades culturais no Bar do Zé do Batidão, zona sul, na periferia de São Paulo. Ele tem livros lançados e prêmios recebidos também. Em maio de 2018, o rapper Emicida disse em entrevista à Le Monde Diplomatique Brasil que odiava literatura na escola pois parecia que aquilo era coisa de gente morta. E quem mostrou que poesia era coisa de gente viva foi Sérgio Vaz. E com certeza não é somente na vida do rapper que o poeta trouxe uma identificação. Tal qual, o vira-lata tem poesias que mordem a reflexão e retratam a realidade de muitos que não se viam nos grossos livros. O próprio, em 2016, deu um depoimento à Rede Brasil Atual, falando sobre o movimento literário na favela:
“A cultura na periferia sempre existiu, mas a partir do ano 2000 surgiu como um movimento. Sempre se fez cultura, mas antes era de uma forma isolada. É quando vem o hip hop que a periferia dá um grito de independência: ‘Eu posso! Eu sou da periferia, e daí?’ É aí que vem o orgulho de ser negro, de ser da periferia e o respeito por quem mora na favela. Por isso começamos a fazer cultura para nós. Essa é a grande diferença: antes nós fazíamos cultura para nos apresentar para a classe média e hoje fazemos para nós. Estamos fazendo e consumindo cultura. Ela não fala dos negros, ela fala pelos negros, com os negros. Não fala dos pobres, fala com os eles e por eles, junto.”
Nesse contexto, não poderia faltar Carolina Maria de Jesus. Ela vivenciou e escreveu a formação da favela do Canindé. No seu diário, denunciou as mazelas nas quais as pessoas ali estavam tendo e, ao mesmo tempo, era um retrato do desigualdade social e do descaso dos governantes com a população. Quarto de despejo tornou-se um marco, sendo traduzido para outros idiomas. É uma escrita direta e dura feita por uma mulher negra, o que torceu o nariz de muitos. E hoje, a leitura é cobrada no vestibular de uma das maiores universidades do Brasil: a UNICAMP.
“Eu sabia que ia angariar inimigos, porque ninguém está habituado a este tipo de literatura. Seja o que deus quiser. Eu escrevi a realidade”.
Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada – Carolina Maria de Jesus
E a produção da quebrada está ganhando vários lugares. Carolina receberá mais um parceiro que vem da favela para a lista de leituras obrigatórias. Junto à outros nomes da poesia, os Racionais MC’s terá o seu álbum Sobrevivendo ao Inferno, de 1997, incluído no vestibular da UNICAMP a partir de 2020. O álbum traz os consagrados sucessos, ou melhor, os sons pesados Diários de Um Detento, Fórmula Mágica Da Paz, Capítulo 4,Versículo 3 entre outros. O grupo do bairro do Capão Redondo comemorou a notícia e postou no Instagram a foto da capa do álbum e a seguinte frase que se explica por si só: “É a favela ocupando a academia”.
Do mesmo Capão vem outra referência no campo literário: Ferréz. O escritor é reconhecido pelas suas obras, principalmente por uma lançada em 2000: Capão Pecado. No livro, o Datilógrafo do Gueto fala sobre a sua quebrada com a linguagem da quebrada, usando gírias que a população fala. Em sua obra Os Ricos Também Morrem, de 2015, Ferréz traz contos urbanos vivenciados por personagens, ilustrando o cotidiano de muitos no Brasil, seja pelas situações, seja pela fala comum. O autor falou sobre essa sua obra e a identificação que se cria com o leitor, além das inspirações que se originam de fatos do dia a dia para escrever as narrativas:
“Tentei deixar o livro bem oral, bem fluente e popular, então o apego aos personagens é algo que acontece, na hora de ler. O livro é bem fluente, com rapidez e com conforto. As pessoas estão bem inquietas, e tudo está mais rápido, por isso eu tentei deixar a tranquilidade das histórias afluir. Sim, são coisas do cotidiano, um homem dando água pra um cachorro, um jovem casal atravessando a rua de mão dada, essas coisas me marca e acabo depois criando histórias em volta de tudo isso”.
A literatura não é só o “aportuguesado letrado”. É algo mais abrangente. Experimente ficar-se nu do nós e vestir o nóiz, de trocar o compreendo pelo pode pá e de dizer trocar uma ideia ao invés de temos que conversar. Os bons livros são aqueles que envolvem, que criam uma relação insana entre os olhos do leitor e as letras ali na página, onde quem está lendo se vê. É algo muito mais além. O trecho a seguir é de “Literatura, pão e poesia” do Sérgio Vaz e ilustra perfeitamente a conexão da favela com a literatura, Tá ligado?
“Mas eu quero falar mesmo é da poesia que se espalhou feito um vírus no cérebro dos homens e mulheres da periferia.
Pois é, essa mesma poesia que há tempos era tratada como uma dama pelos intelectuais,
hoje vive se esfregando pelos cantos dos
subúrbios à procura de novas emoções.
O Tal poema, que desfilava pela academia, de terno e gravata,
proferindo palavras de alto calão para platéias desanimadas,
hoje, anda sem camisa, feito moleque pelos terreiros, comendo miudinho na mão da mulherada.
Vocês, por acaso, já ouviram falar
do tal poema concreto?
Pois é, os trabalhadores e desempregados estão construindo bibliotecas com eles, nas favelas.
E o lobo mau pode assoprar que não derruba.
Apesar da pouca roupa que lhe deram está se sentindo todo importante com sua nova utilidade.
A periferia nunca esteve tão violenta, pelas manhãs é comum ver, nos ônibus, homens e mulheres segurando armas de até 400 páginas.
Jovens traficando contos, adultos, romances.
Os mais desesperados, cheirando crônicas sem parar.
Outro dia um cara
enrolou um soneto bem na frente da minha filha.
Dei-lhe um acróstico bem forte na cara. Ficou com a rima quebrada por uma semana.
A criançada está muito louca de história infantil.
Umas já estão tão viciadas, que, apesar de tudo e de todos, querem ir para as universidades.
Viu, quem mandou
esconder a literatura da gente,
Agora nós queremos tudo de uma vez!”
Por Pedro Ezequiel
pedroezequiel36@gmail.com