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Periferia sonâmbula: do berço esplêndido ao quarto de despejo brasileiro

A exaustão promovida pelo trabalho na sociedade contemporânea atinge a todos nós. Contudo, é nas periferias que essa situação é ainda mais acentuada. Será que nos becos é possível descansar ou resta a essas regiões somente o quarto de despejo da exploração?

Temos que estar sempre em movimento. Não consigo cuidar de mim. A vida do pobre é assim. O pobre não para nunca. Talvez quando morrer eu descanse.”

Italo Thiago, morador da comunidade São Remo, na Zona Oeste de São Paulo, e trabalhador vigilante na Universidade de São Paulo.

“Saí indisposta, com vontade de deitar. Mas, o pobre não repousa. Não tem privilégio de gosar (sic) descanso.” Esse é um trecho do livro O Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, de Carolina Maria de Jesus, escritora semianalfabeta, que narra em seu diário as dificuldades de viver nas favelas do Brasil. Seja nas ruas, em casa ou até mesmo no trabalho, a sociedade contemporânea está em movimento. E, para o pobre, parar nunca é uma opção. Não existe segurança. Viver é sobreviver. A exploração é tão latente que nas áreas nobres do estado de São Paulo se vive 23 anos a mais do que quem mora nas áreas periféricas, segundo o Mapa da Desigualdade.

Variadas ciências, dentre elas a sociologia urbana e a psicologia social, têm se mostrado cada vez mais alertas aos riscos que esse problema poderá reverberar e investigam a forma como a favela é tratada e se há limites atrelados às questões trabalhistas exploratórias. Esse tipo de violência gera um sonambulismo, uma espécie de atividade inconsciente perante ao estado de estar presente no mundo, que está presente no indivíduo e na sociedade atual, principalmente nas periferias, diante de uma ideologia que insiste em tratá-las apenas como um setor a ser explorado e no qual é inadmissível estar desligado.

Enquanto no berço esplêndido da burguesia o sono é um privilégio, há também vielas cujas luzes nunca se apagam. Repousar em média oito horas de sono é um sonho que o quarto de despejo brasileiro não consegue desfrutar. A vida do pobre brasileiro é assim. Correr, produzir, servir. A periferia não dorme. O alarme não para de despertar.

Sem Tempo

Imagem de uma placa de "pare".
A placa não consegue interromper os sonâmbulos sociais. [Imagem: Arquivo pessoal/ Danilo Roberto]

As estações mudam. O relógio não para de girar. Os ponteiros parecem andar cada vez mais depressa. Tic tac. Soneca. Adiar o despertador. Acordar. Dormir e, por consequência, ultrapassar a expectativa de vida média dos sujeitos periféricos representa uma utopia. À vista de uma lógica trabalhista cada vez mais desumana e de jornadas de trabalho ainda mais exaustivas, seria necessário descansar para recuperar as energias gastas no serviço. 

O resultado desse sonambulismo? Estresse, esgotamento e um cansaço mental insistente. Isso ocorre porque a modernidade, que pretende estar sempre adiantada, impõe que atrasos não sejam tolerados. Em um momento em que tudo precisa estar em constante inovação, interromper essa velocidade demonstra uma impotência social.

Frases naturalizadas como “estou sem tempo”, “estou cansado”, “acordei atrasado” têm sido cada vez mais comuns numa época em que a busca do lucro influencia as relações humanas. É necessário entregar tudo que possui: tempo de lazer e de autocuidado são direcionados para o trabalho. Sentimentos de fracasso, insônia e até dificuldades de concentração atingem a saúde humana: o físico é impactado pelos processos mentais ao afetar o bem-estar do indivíduo.

Tiaraju Pablo [Imagem: arquivo pessoal/Tiaraju Pablo]

Uma outra estratégia adotada pelo sistema capitalista foi trocar as horas de sono pela força de trabalho por meio dos adicionais noturnos, que são um acréscimo salarial oferecido aos trabalhadores que desempenham suas funções no horário de trabalho noturno. Como conta ao Laboratório Tiaraju Pablo d’Andrea, coordenador do Centro de Estudos Periféricos (CEP) e também docente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), tal mecanismo é atrativo para as camadas populares que se submetem aos altos graus de exploração em troca de um aumento em seus salários que os ajude a sobreviver.

Somos obrigados a produzir inseridos em um sistema que nos trata como mercadoria a ser descartada. O trabalho perde seu prazer. Sua porção de sono é sacrificada e sua qualidade de vida vendida.” Tiaraju é um dos pesquisadores que se dedicam a ir além do estereótipo e estudar o que chama de “sujeitas e sujeitos periféricos”.

Mapeando o cansaço

O estado de São Paulo foi construído historicamente para atender os interesses das elites locais. Até o seu processo de urbanização foi pensado a fim de submeter as camadas populares ao sonambulismo e a um movimento de migração pendular, caracterizado pelo deslocamento diário. Após realizar as atividades desejadas na capital, essas pessoas retornam para a cidade onde vivem. Dessa forma, o conceito de cidades-dormitórios criado pela própria geografia demonstra a presença de espaços urbanos que, na verdade, não dormem, mas perambulam em virtude do deslocamento até seus locais de trabalho.

No mapa acima, é possível notar que a rede de transportes públicos é arquitetada para atender principalmente os interesses dos grandes centros. As grandes distâncias das zonas periféricas até as regiões centrais da cidade de São Paulo fazem com que os trabalhadores sejam tomados ainda mais pelo cansaço, que impacta o físico e o psicológico da independência. [Reprodução: Mapa da desigualdade Rede Nossa São Paulo]

Os efeitos desses novos processos de sociabilidade urbana acabam retirando a identidade do espaço público, uma vez que o capitalismo faz com que as relações sociais mirem no aumento da produção. Há uma arquitetura montada para não promover tempo de troca entre as pessoas, e o aumento das incertezas diante de um futuro imprevisível gera uma frustração que não consegue ser adiada. Entre os grandes centros e as margens da cidade, a desigualdade é notória.

De acordo com o filósofo Byung-Chul Han, a romantização do trabalho é uma consequência do que o pensador define como sociedade do cansaço. Esse tipo de organização social impõe na consciência dos indivíduos um desempenho permanente e traz um excesso de positividade. Com isso, influenciando em casos de depressão e em sentimentos de fracasso ao promover no consciente do indivíduo sentimentos de autodestruição, como a sensação de fracasso, ao não conseguir atender as cobranças pessoais que lhe são exigidas. A romantização do trabalho, também de acordo com o autor, resulta em patologias neurais que desenvolvem no inconsciente social o desejo de maximizar a produção, atreladas à Síndrome de Burnout, que causa no indivíduo exaustão emocional, estresse, esgotamento profissional e deficiência do sono, por exemplo.

Bernardo Parodi Svartman [Imagem: reprodução/Bernardo Parodi Svartman]

Para o docente em psicologia social do Instituto de Psicologia (IP) da Universidade de São Paulo (USP) e responsável pelo programa de pesquisa em psicologia comunitária da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP), Bernardo Parodi Svartman, o processo de uberização que atinge as sociedades modernas faz parte de um processo ideológico mais complexo. “Precisamos parar de responsabilizar a classe trabalhadora por essa exploração trabalhista perversa. Isso gera uma imagem que responsabiliza o indivíduo. Existe uma ideologia que tenta conformar a classe trabalhadora a um destino imposto pela classe dominante. As camadas populares, na verdade, não possuem autonomia. As camadas populares não têm controle das suas próprias vidas.”

E tem como acordar?

Imagem do metrô, é possível ver uma mulher sentada e dormindo e outras pessoas em pé, demonstrando o cansaço dos trabalhadores.
No transporte público é comum ver pessoas dormindo. Muitas delas trabalham longe dos seus locais de trabalho. Logo, seus bairros (ou cidades) tornam-se somente espaços dormitórios. O ciclo biológico do sono não é completado em suas residências e cabe ao trajeto alguns poucos cochilos. [Imagem: Arquivo pessoal/Danilo Queiroz]

Para Bernardo, é necessário não só a ampliação de medidas terapêuticas, como os Centros de Atenção Psicossocial, mas também da atuação da classe trabalhadora junto à população, reivindicando as limitações dessa lógica do trabalho. Segundo ele, esse movimento iniciará a partir da mudança dos mecanismos de hierarquização de poder, quando a periferia reconhecer que não é mais viável se submeter à exploração. Dessa forma, a atuação dos profissionais de psicologia é tão urgente quanto garantir estabilidade aos trabalhadores periféricos a partir da garantia dos direitos trabalhistas.

A favela não venceu. Tiaraju conta que discursos como esse prestam um desserviço que encobre as reais condições subumanas que o esgotamento mental traz, decorrente do excesso de trabalho.

Imagem de uma estação de metrô, com pessoas entrando nos vagões e mais a frente um pessoa "borrada".
Os tempos atuais exigem uma produtividade que impede o reconhecimento da identidade humana. Assim, o psicológico do ser humano é afetado ao ser identificado somente como um ser produtivo. [Imagem: Arquivo Pessoal/ Danilo Queiroz]

Seja para Italo, vigilante da própria vida, seja para os mais de 17 milhões de periféricos, de acordo com uma pesquisa do Instituto Locomotiva em parceria com o Data Favela e o Central única de Favela (CUFA), o cansaço não para de crescer. Em um país que possui mais quartos de despejo, como escrito por Carolina Maria de Jesus em 1960, do que berços esplêndidos, é necessário compreender que viver é sobreviver. Qualidade de vida é para quem possui vida. E em uma sociedade capitalista, o próprio controle das nossas vidas não passa de uma epifania.

*Texto publicado na editoria de crônicas do Laboratório, na qual nossos repórteres têm liberdade para desenvolver textos com caráter mais subjetivo e opinativo.

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