Hugo Nogueira
A Depressão econômica da década de 30 significou uma perigosa reviravolta na mentalidade político-cultural norte-americana. As premissas doutrinárias da ideologia comunista passaram, então, a representar um desafio intelectual cada vez mais consistente às perspectivas liberais do sistema capitalista. A indústria cinematográfica de Hollywood não permaneceu indiferente a este aspecto da vida social e produções destinadas a evidenciar os males e os dilemas do Partido Comunista tornaram-se paulatinamente mais freqüentes. Nenhuma delas foi melhor do que Ninotchka. Nesta ácida comédia, a guerra dos sexos é brilhantemente engendrada como uma metáfora para o choque de ideologias numa concepção repleta de todo tipo de ironia, sendo, de longe, a melhor delas, a ambientação da luta de classes numa luxuriante e requintada Paris.
A inspetora Ninotchka (Greta Garbo) é enviada pelo Partido Comunista de Moscou a Paris para colocar na linha três emissários soviéticos (Sig Ruman, Felix Bressart e Alexander Granach) cuja incumbência, a negociação de jóias confiscadas da grã-Duquesa Swana (Ina Claire) fora colocada de lado no tresloucado esplendor da Cidade Luz. Ninotchka envolve-se com o Conde Leon d’Algout (Melvyn Douglas), o amante da Duquesa, um playboy burguês que cai de amores pela agente russa e se empenha, com sucesso sempre mediano, em despertar o desejo sensual que se oculta sob a carapaça racional da impassível militante partidária.
Mediante o embate entre Leon, completamente dominado pelos seus anseios sensuais incontroláveis, e a camarada Ninotchka, um verdadeiro soldado do Partido que oculta toda sua subjetividade sob uma armadura de frigidez, controlando rigidamente seus impulsos eróticos mais elementares, o diretor Ernst Lubitsch, um especialista em comédias sofisticadas coloca o comunismo e o capitalismo de cabeça para baixo.
Ambas as doutrinas não se sustentam na corrosiva crítica de Lubitsch. Não obstante, a produção, de modo algum, consiste uma fábula apartidária. Mesmo satirizando a futilidade de uma civilização fundamentada no consumismo desregrado (simbolicamente representado pelo ridículo chapéu que Garbo põe graciosamente em sua cabeça), é o ponto de vista capitalista que prevalece. Leon encarna alegoricamente um decadente, mas simpático capitalista, sempre disposto a se reinventar, superando os dilemas de seus próprios excessos no espaço que somente os regimes liberais pode propiciar. A perspectiva capitalista é especialmente acentuada na interpretação de Garbo, a qual sugere em sua personagem uma inocência impregnada de todo os signos de uma virgindade simbólica. Ninotchka parece descobrir a totalidade do sexo quando renuncia aos beijos mecanicamente controlados e decide se entregar de vez à paixão e ao consumismo e, quando se desfaz em gargalhadas, parece estar rindo espontaneamente pela primeira vez na vida. O comunismo ao qual ela se devota ardorosamente, assemelha-se, por contigüidade, a uma virgem ideologia fadada a ser dissolvida na alegria e no bem-estar liberal derivados do amadurecimento do capitalismo.
Ninotchka sobrevive não pela sua argumentação ideológica, mas, sim, por suas qualidades artísticas. A direção apurada de Lubtisch e o roteiro genial de Billy Wilder são dois dos maiores trunfos da produção. Todavia, é Greta Garbo quem prevalece integralmente num filme que, acima de tudo, consistiu uma sátira dentro de uma sátira. Além da zombaria às doutrinas políticas vigentes, Ninotchka permitiu a Greta Garbo satirizar a si mesma e a seus aclamados desempenhos nos pesados melodramas da década de 30. A campanha publicitária da produção concentrou-se nas até então insuspeitas habilidades cômicas de Garbo. As marquises anunciavam “Garbo ri” e seu riso, efetivamente, representa a apoteose do filme. A interpretação contida e sóbria, a gravidade dos gestos, a voz rouca da atriz, tudo em sua encenação é a antítese dos paradigmas da comédia. O efeito final, contudo, é paradoxalmente hilário.
Ninotchka consiste numa ostensiva ridicularização dos desvarios da política internacional. Mediante o riso elegantemente debochado, o filme promove uma profunda catarse ideológica no exato momento em que toda a ordem mundial estava prestes a entrar em colapso. Nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, o riso solto e franco de Greta Garbo teve o efeito de um profundo e salutar exorcismo existencial, consubstanciando no bom-humor a única forma então concebível de resistência racional frente aos absurdos da realidade histórica. No momento em que Garbo riu, o mundo inteiro desabou numa incontrolável gargalhada e assim a paz reinou ao menos nas salas de cinema.