No dia 13 de maio, é celebrada a promulgação da Lei Áurea de 1888, responsável pela abolição institucional da escravidão no Brasil. 134 anos depois, no dia 25 de maio de 2022, Genivaldo de Jesus Santos foi morto durante uma abordagem da Policia Rodoviaria Federal na cidade de Umbaúba, em Sergipe. O homem negro de 38 anos tinha um quadro de distúrbio mental e foi colocado dentro do porta malas da viatura com bombas de gás lacrimogêneo. O laudo do Instituto Médico Legal confirmou a morte por asfixia mecânica e insuficiência respiratória. Anderson Torres, ministro da justiça, em Audiência Pública na última quarta (15), afirmou que o caso é grave, porém isolado. Entretanto, os dados do Atlas da Violência de 2021 mostram que 77% das vítimas de homicídio no país são pessoas negras. Esses casos são um resquício da eugenia, movimento que defendeu a melhoria de características genéticas de uma população.
Racismo, por vezes, é compreendido como um ato de ignorância ou estupidez. Contudo, as teorias eugenistas foram defendidas por grandes teóricos, desde as ciências biológicas até as sociais, especialmente entre os séculos 18 e 19. O racismo científico teve grande influência nas políticas públicas adotadas pelo Império e Governo brasileiro durante o processo abolicionista e nos primeiros anos da República, respectivamente.
Origem da eugenia na biologia
O século 18 ficou marcado pela valorização da racionalidade, que levou a um grande desenvolvimento científico e tecnológico. Nesse período, a biologia foi sistematizada com a Taxonomia de Linné, uma forma de divisão dos seres vivos proposta pelo naturalista sueco Carl Von Linné e utilizada até os dias atuais. Essa divisão partiu do pressuposto biológico da existência de diferentes espécies e subespécies (ou raças) na natureza e desse momento em diante surge, no meio científico, a discussão sobre a existência (ou não) de diferentes raças dentro da espécie humana.
Para Linné, a humanidade poderia ser dividida em quatro raças. Entretanto, essa separação não era baseada apenas em critérios biológicos, como praticado na zoologia e na botânica. Aspectos comportamentais e culturais foram incluídos, assim como juízo de valores, com o objetivo de justificar uma suposta superioridade branca-europeia e uma inferioridade americana, africana e asiática. Para Luciana Mello, bióloga pela Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), não é possível afirmar que existam diferentes raças humanas, pois não há incompatibilidades anatômicas, cromossômicas ou gênicas entre as etnias que embasaram tal subdivisão. “A economia e o dinheiro que se colocava na ciência naquela época justificou a separação do homem em raças, a partir de uma ideia pseudocientífica. [Linné] desconfigura conceitos biológicos já conhecidos [na divisão], ele usa adjetivos valorativos que não são usados na biologia para descrição de espécies”, afirma Luciana.
A bióloga ressalta a importância do contexto histórico na produção científica, porque apesar da pretensão de neutralidade, “as escolhas do que será estudado e das palavras parte de quem escreve. O cientista, por maior que seja o rigor do método científico usado, sempre vai partir do seu contexto social e histórico”, diz Melo. A hierarquização do homem em raças superiores e inferiores era necessária para justificar o sistema colonial e escravocrata e por isso foi sustentada.
O papel das ciências sociais
O apogeu dessa corrente de pensamento, que viria a culminar na eugenia, foi no século 19, época em que as ciências biológicas e sociais partem da teoria da evolução e seleção natural, proposta pelo naturalista Charles Darwin, para criar pseudociências que justificassem a inferioridade de certas “raças”.
O darwinismo, em sua origem, propõe que os indivíduos que apresentam características mais adequadas ao ambiente são selecionados, enquanto os outros, por não estarem tão bem adequados ao ambiente, são extintos naturalmente. Essa seleção só é possível graças à grande variabilidade de características, hoje chamadas de genes, presentes nas espécies. Porém, vale ressaltar que Darwin não menciona a espécie humana em seu livro A Origem das Espécies.
De acordo com o artigo da doutora Maria Augusta Bolsanello (1948-2021), professora aposentada do Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o sociólogo inglês Herbert Spencer transpôs o conceito de seleção natural para as comunidades humanas, defendendo que a vida em sociedade era uma competição. Esta ideia conhecida como darwinismo social justificaria, por exemplo, a dominância europeia sobre a África e a América e a expansão do Estado Liberal.
O estatístico e antropólogo Francis Galton vai além e defende que os governos deveriam acelerar a seleção natural humana, incentivando a reprodução de “bons genes”, como forma de salvar a “raça europeia” de sua deterioração. É assim que nasce o termo eugenia, derivado do grego, que significa “bom em sua origem”.
O Brasil no fim do século 19 e início do 20
A partir da metade do século 19, o movimento abolicionista ganhou força no Brasil e ficou evidente que a abolição era uma questão de tempo. Para o sociólogo Tadeu Kaçula, autor do livro Casa Verde: uma pequena África paulistana e doutorando pelo Programa de Mudança Social e Participação Politica da Universidade de São Paulo (USP), as teorias eugenistas e racistas começaram a adentrar na sociedade brasileira antes do fim da escravidão: “era um projeto das elites brasileiras confrontar a ideia de uma abolição democrática, participativa e inclusiva, em que houvesse algum tipo de projeto que incluísse essa população na sociedade”. A exemplo disso, temos a Lei de Terras de 1850, a qual proibia ex-escravizados de possuírem terras, promulgada no mesmo ano em que o tráfico de pessoas escravizadas foi proibido com a Lei Eusébio de Queirós. Nesse mesmo período, houve grande estímulo do Império para a imigração de europeus, especialmente italianos, para o Brasil.
Apesar de as políticas para a exclusão dessa população recém liberta já ocorrerem desde o Império, é no início da República que a eugenia e o racismo institucional passam a ser um projeto de Estado. Em 1890, apenas dois anos após a abolição, é instaurada a Lei de Vadios e Capoeiras, com o objetivo de punir todos aqueles que não tivessem um ofício, fossem vistos “perambulando” pelas ruas sem documento ou estivessem em uma roda de capoeira: exatamente o perfil de quem deveria ter sido beneficiado pela Lei Áurea.
Um pouco mais adiante, em 1903, Pereira Passos, o então prefeito do Rio de Janeiro, iniciou as reformas urbanísticas da capital, inspiradas pelas feitas em Paris. O objetivo era modernizar a cidade: criar sistemas de saneamento, construir grandes avenidas, controlar as epidemias e principalmente acabar com os cortiços, os quais ocupavam o centro do Rio e, em sua maioria, abrigavam população negra. Os episódios mais emblemáticos dessa política sanitarista foram o “bota abaixo” em 1903, em que os cortiços foram demolidos e a população foi dispersa do centro em direção às zonas periféricas da cidade e aos morros, e a Revolta da Vacina em 1904, momento em que os moradores do Rio colocam-se contra os métodos violentos e invasivos adotados pelos agentes de saúde para realização da vacinação obrigatória.
As medidas citadas acima segregaram, de forma indireta, as pessoas pretas da sociedade brasileira. Elas não tinham acesso à educação, moradia ou trabalhado assalariado, já que muitas permaneceram nas fazendas em condições análogas a escravidão, além de serem proibidas de expressar sua cultura, tanto por meio da capoeira quanto da religião.
Contudo, até esse momento, a tentativa do governo de “apagar” a população negra do Brasil não era explícita. Segundo Tadeu, foi a participação do país no Congresso Mundial das Raças, em 1911, que desvelou a chamada “Teoria do Embranquecimento”, formulada pelo cientista João Baptista de Lacerda. Ele defendia que o atraso no desenvolvimento da sociedade brasileira era resultado do alto contingente de população negra, resgatando a ideia proposta por Linné de que a raça europeia era mais próspera: “o Estado brasileiro investiu grandemente no processo de desqualificação e apagamento da população negra no processo de formação deste Estado”, afirma Tadeu.
Lacerda foi o representante brasileiro no Congresso e chegou a afirmar que em 100 anos não existiriam mais pessoas negras no Brasil, devido ao incentivo governamental para imigração de europeus. O quadro A Redenção de Cam exemplifica a ideia de que por meio da miscigenação o Brasil iria, aos poucos, embranquecer-se.
É importante salientar que nem todos os teóricos envolvidos na convenção compactuavam com as ideias eugenistas. Dentre esses destaca-se o antropólogo Franz Boas, o qual refuta a ideia de que é possível a preservação das “boas características”. Em seu discurso para o Congresso, ele afirmou: “a antiga crença acerca da estabilidade absoluta dos tipos humanos deveria, portanto, evidentemente ser abandonada, e com ela a convicção da superioridade de certos tipos sobre outros”.
O surgimento da Democracia racial e o adormecimento da eugenia
Somente na década de 1930, os debates acerca da questão racial no Brasil se afastam da eugenia. Gilberto Freyre, discípulo de Franz Boas, propõe em seu livro Casa Grande e Senzala que a miscigenação faz parte da formação do país e rejeita a ideia de disputas raciais, pois para ele a sociedade brasileira vivia em harmonia. Essa ideia parte principalmente das diferenças que ele encontrou entre a população estadunidense, que nesse período sofria com a segregação racial bem delimitada por leis, enquanto na realidade brasileira não havia efetivamente uma legislação que separasse negros e brancos.
Para a época, o pensamento de Freyre era revolucionário por ir na contramão das ideias eugênicas e enxergar a miscigenação como algo positivo e não corruptivo — porém, atualmente isso é questionado. Para Lenon Hymalaia, professor especialista em Globalização e Cultura pela Fundação Escola Superior de Sociologia e Política de São Paulo, ao propor que vivemos em uma democracia racial, toda a exploração, perseguição e exclusão sofrida pela população preta é anulada: “a ideia de uma convivência pacífica foi falsamente propagada e houve um esquecimento que fora conveniente à burguesia sobre as condições de vida do negro. O que se viu de forma real foi um completo abandono, onde o negro ficou à mercê da própria sorte, sem condições de trabalho, educação ou moradia, passando fome e chegando a um estado de miséria absoluta, sendo inclusive expulso do meio social e destinado, assim, aos morros e às periferias.”
O ressurgimento do pensamento eugênico no Brasil e no mundo
Após a Segunda Guerra Mundial encerrada em 1945, o horror do Holocausto mostrou os perigos de fomentar a busca por uma “raça pura” e as teorias supremacistas perderam espaço dentro do meio científico. Todavia, na última década, houve um forte ressurgimento desse pensamento no corpo social. De acordo com dados da Polícia Federal, os casos de denúncia de apologia ao nazismo subiram de 13 em 2012 para 110 em 2020.
Para o professor Lenon, esse retorno está vinculado à escalada da extrema direita. “A história recente mostra que houve uma expansão significativa de governos com discursos supremacistas em todos os continentes, o que culminou no avanço de tais grupos, uma vez que esses encontraram respaldo ideológico.”
13 de maio de 1888 não foi suficiente
O projeto racista foi bem sedimentado na sociedade brasileira, no lugar de ser mera ignorância. Houveram políticas públicas que buscavam a exclusão e o apagamento da população negra. Tadeu evidencia a importância da universidade, que um dia apoiou as teorias supremacistas e hoje tem o dever de combatê-las. “Temos uma dificuldade de invocar o nosso pensamento na universidade. É necessário questionar a grade curricular e incluir a formulação crítica dos povos originários e da população preta em diáspora. Em vez de lermos Florestan Fernandes e Laurentino Gomes, precisamos ler Clóvis Moura e Lélia Gonzalez, a universidade precisa trazer esses referenciais“.
A supremacia branca – o eugenismo, há séculos combatido, nunca esteve tão presente nos dias atuais. Os textos aqui, em especial de Tadeu Kaçula e Lenon Hymalaia tratam essa questão com muita propriedade. Vivemos sim mais que um “apagamento” um genocídio racial. A extrema direita mostra suas garras. É preciso combatê-la e denunciar como está exposto nestes artigos. Conscientizar é um bom ensinamento!