Jornalismo Júnior

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Kiusam de Oliveira, entre a cor e o candomblé

Por Jessica Bernardo (jessicabmarcelino@gmail.com) Aos 11 anos, após ouvir falas racistas de um professor, uma criança perguntou para a mãe se poderia ser colocada em uma bacia com água sanitária. A menina queria ficar mais clara. Hoje, já adulta, Kiusam de Oliveira defende que o seu envolvimento com as religiões de matriz afro-brasileira foi um dos …

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Por Jessica Bernardo (jessicabmarcelino@gmail.com)

Aos 11 anos, após ouvir falas racistas de um professor, uma criança perguntou para a mãe se poderia ser colocada em uma bacia com água sanitária. A menina queria ficar mais clara. Hoje, já adulta, Kiusam de Oliveira defende que o seu envolvimento com as religiões de matriz afro-brasileira foi um dos principais aliados para o seu fortalecimento enquanto negra.

Com um currículo que inclui, entre outros, os títulos de pedagoga, mestre e doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), mãe de santo (iyalorixá) e autora dos livros infantis “Omo-Oba: Histórias de Princesas”, “O mundo no Black Power de Tayó” e “O mar que banha a ilha de Goré”, Kiusam é uma das mais importantes mulheres no movimento negro.

Em 2008, publicou a tese Candomblé de Ketu e Educação: Estratégias para o empoderamento de mulher negra”, tendo como desafio mostrar como a religião poderia auxiliar no empoderamento da mulher negra, sem que fosse, inclusive, necessária a conversão. Ela é hoje a entrevistada da J.Press e fala sobre representatividade, feminismo e o lado social do Candomblé de Ketu.

J.Press — Para começar a nossa conversa, Kiusam, gostaria que você contasse um pouco da sua experiência pessoal com as religiões afro-brasileiras. Como a sua relação com essas religiões te auxiliaram na aceitação do seu próprio corpo, rosto e características?

Kiusam — Eu venho de uma infância marcada por períodos muito difíceis no espaço escolar com relação a minha cor negra. Minha segunda escola foi um colégio de freiras e lá conheci o que era o racismo na prática, aos 6 anos. Aos 12 anos, eu já era uma menina completamente transformada, com raiva do meu corpo, com ódio da minha cor da pele, culpando meus pais por ter nascido com essa cor e sofrer tanto com ela.

Com 11 anos, eu tive um professor que disse que não responderia minha dúvida porque eu não passaria de uma empregada doméstica. Porque eu era preta, feia e tinha canela fina, e canela fina [segundo ele] era boa para o trabalho. Este foi o momento derradeiro. Esse professor já tinha atitudes racistas e minha mãe tinha me instruído a levar um gravador para a aula dele. Nesse dia eu gravei e ele estava extremamente perverso.

Depois daquela ação, foi a primeira vez que vi a minha mãe chorar: eu perguntei para ela se ela podia me colocar dentro da bacia com água de cândida para ver se eu ficava mais clara. Foi quando ela entendeu que não ia dar conta do processo de construção da minha identidade negra sozinha e disse que ia procurar ajuda. Essa ajuda veio através do Movimento Negro Unificado (MNU) GT Balogun – São Bernardo do Campo.

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Após ter sofrido com racismo durante a infância, Kiusam encontrou no candomblé maneiras de se empoderar. “Não tem como não se fortalecer”, diz ela. (Foto: Acervo pessoal)

Paralelo a tudo isso, eu tinha uma vida espiritual bastante agitada, pois também enxergava espíritos desde muito pequenina. Meus pais me levavam a médicos que diziam que eu estava louca. Então, um dia, quando meu pai estava muito triste no trabalho, um colega perguntou qual era o problema e ele contou o que estava acontecendo. Esse amigo disse que frequentava a umbanda. Tanto ele [o pai] quanto a minha mãe eram católicos. Eles relutaram um pouco, mas foram [à cerimônia].

Eu fiquei muitos anos na umbanda. E quando eu fui para o candomblé, eu me encontrei completamente. No candomblé, os orixás eram negros e não tinham corpos perfeitos: tinham lábios grossos como os meus, narizes largos como o meu, cabelos crespos como os meus… Houve uma identificação muito grande.

E, para além disso, essa identificação se dava através da oralidade, porque os mais velhos contavam as histórias sobre esses orixás, homens e mulheres. E como essas mulheres eram fortes, como eram incríveis! Ao mesmo tempo em que eram extremamente femininas, eram bélicas e estratégicas. Elas ocupavam espaços de poder. E aquilo foi construindo a minha identidade de forma positiva, onde eu pude rever a pessoa negra como protagonista, como bonita, como guerreira. Aquilo foi me colocando novamente no prumo.  

Tudo isso foi construindo uma rede de fortalecimento para a minha identidade de mulher negra. Não tem como não se fortalecer, se empoderar, e não ter um discurso mais feminista.

J.Press — As mulheres assumem certo protagonismo nas religiões afro-brasileiras, mas na maior parte da África também são os homens que celebram os cultos. Como se deu o processo de protagonismo da mulher nas celebrações no Brasil?

Kiusam — As senhoras que perpetuaram o Candomblé de Ketu no Brasil, e que vêm transmitindo seus conhecimentos através das gerações, sempre foram mulheres extremamente fortes, que trabalharam em prol do empoderamento feminino com a noção exata da sociedade machista e racista em que vivemos no Brasil especificamente.

O Candomblé de Ketu não é africano. É brasileiro. É uma criação brasileira. Isso é fundamental. Foi criado por mulheres africanas, caçadas e capturadas no continente africano, que precisaram recriar uma forma de vida e de convivência familiar, que para os africanos sempre foi fundamental e que, com o processo da escravidão, foi extremamente devastada.

Os negros estavam morrendo de banzo, de tristeza profunda, pela solidão e pelo rompimento com os familiares. Essas senhoras, que já eram sacerdotisas lá no continente africano, chegaram aqui e, percebendo tudo isso, criaram uma religião com centralidade na questão familiar.

Na África, essas mulheres podiam até não ter um papel de protagonismo, se você olhar com os olhos ocidentais, mas tinham um papel fundamental junto aos reis. Como sacerdotisas, elas podiam até não ter a visibilidade, porque aparentemente podia estar um homem no comando daquela sociedade, mas as orientações básicas daquela comunidade eram dadas pela sacerdotisa.

E olha que nem sempre foi assim: é fundamental ressaltar que houve um tempo no continente africano em que as mulheres detiveram o poder em sociedades secretas como Geledés, como amazonas etc. Desde que esse poder nos foi tirado à força, temos tentado secularmente nos colocar como protagonistas de nossas histórias, sem querer estar à frente do homem e sim caminhando junto dele.  

J.Press — Qual o papel ocupado pelas mulheres nessa religião? Como o Candomblé de Ketu reflete sobre a imagem da mulher negra?

Kiusam — Dentro do Candomblé de Ketu, enquanto ser vivo contemporâneo, você está revivendo os mitos vividos pelos orixás. Nós revivemos aquilo que os nossos ancestrais viveram um dia.

Então, ele vê a mulher negra como protagonista de tudo, como protagonista da própria vida. Como uma mulher extremamente fortalecida porque é a imagem dessas ancestrais antigas que nós temos como modelo. A mulher negra é inteligente, iniciadora, estrategista, amorosa. Ela é vista como o coração de uma comunidade. Os movimentos contemporâneos estão sendo pautados por ela.

O candomblé não prega a superioridade da mulher negra. Na verdade, ele prega a união do masculino e do feminino. Portanto, homens e mulheres precisam aprender a caminhar juntos.

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Os livros de Kiusam têm contribuído para que a representação de crianças negras na literatura seja positiva. Entre eles, “O mundo no Black Power de Tayo”. (Foto: Acervo pessoal)

J.Press — Os negros sofrem muito com a falta de representatividade. De que forma você acredita que a valorização e a presença das mulheres negras na religião contribui para a identificação e o empoderamento feminino? Para além da questão espiritual, a figura da mãe de santo contribuiu para isso?

Kiusam — A figura da iyalorixá [mãe de santo] contribui como uma forma positiva e empoderada de representação feminina. Ela está no trono, está na cadeira principal do barracão. É extremamente positivo tudo isso. Ela está no lugar de representatividade-mor, de rainha.

E essa mulher que ocupa um espaço de poder dentro do espaço religioso transmite todos os dias, no cotidiano também, as histórias dessas orixás em forma de contos. Esses contos estão carregados de ensinamentos poderosos sobre vidas em comunidades, valores éticos e estéticos.

As histórias nos fortalecem o tempo todo. E eu não consigo pensar nisso sem deixar de fazer essa ponte com essas histórias ganhando o espaço da literatura brasileira, que é o que eu também faço. Eu escrevo histórias para que as crianças negras possam ver uma representação positiva da sua própria imagem.

As narrativas recontadas são ferramentas, instrumentos fundamentais na luta por uma educação anti-racista. Os contos de fadas no Brasil são basicamente europeus, com princesas brancas, de olhos claros, cabelos lisos, com um tipo de beleza que as crianças negras e não negras rapidamente desejam ter. Aquelas que têm aquele perfil se sentem representadas, mas mesmo as crianças brancas que não têm aquelas características começam a pensar: “Poxa vida, se eu tivesse meu cabelo loiro, meus olhos azuis ou verdes… Mas eu não tenho, olha o jeito que eu sou!”. Imagina para as crianças negras! A representatividade negra ainda é pequena nas bonecas, nas propagandas de televisão, nas revistas e jornais.

O “Omo-Oba: Histórias de Princesas” [livro escrito pela pedagoga], por exemplo, traz as histórias de princesas negras como Iemanjá e Oxum de uma forma que não toca em nenhum momento em religiosidade. São princesas africanas, negras, cada uma com suas característica básicas, com suas ligações com os elementos da natureza.

São histórias que nos fortalecem dentro do espaço religioso, mas também, através da literatura, podem fortalecer aquelas que não estão nesse espaço e que acreditam que não existam princesas ou rainhas negras africanas. Um livro e uma história podem mostrar que sim, elas existem! E assim, cada criança vai se identificando e criando prazer em ser do jeito que é.

Representatividade, para a criança, o jovem e o adulto negro, é fundamental. Uma representação positiva para seus seres liberta os seus, os nossos corpos.

J.Press — E na sua pesquisa de doutorado você também observou isso…

Kiusam — Sim. Uma coisa é você estar dentro, outra coisa é você colher dados sistematicamente, entrevistando pessoas que você não conhece para ver os caminhos que cada um trilhou dentro da religiosidade e o que essa religiosidade fez de bom, de construtivo para a identidade daquelas pessoas, não é?  Aí a gente consegue ver que não foi benéfico somente com a gente. Que muitas pessoas conseguem se beneficiar deste espaço, tendo em vista o resgate da autoestima, o fortalecimento das suas identidades… É algo que ninguém pode tirar do candomblé, porque ele está aí para isso.

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Segundo Kiusam, embora o candomblé não pregue a superioridade da mulher negra, ele a vê como protagonista de sua própria vida. (Foto: André Mellagi/Flickr)

J.Press — Quando fez a pesquisa, você se propôs a mostrar que a pessoa não precisava se converter, como está dizendo agora, para colher os benefícios do candomblé na educação. Você pode contar um pouco desses resultados?

Kiusam — Dentro do espaço do candomblé a gente trabalha com valores afro-brasileiros como, por exemplo, a circularidade. A gente tem o hábito de sentar na escola, um atrás do outro, e isso rapidamente provoca uma sensação de que um não pode olhar para a folha do outro, para o caderno do outro, para o lado. Só pode olhar para a frente. E o professor mesmo dá essa instrução: “Olha pra frente, menino!”. E na hora das provas e atividades é a individualidade que prevalece.

Rapidamente, a pessoa aprende a cobrir a sua folha de atividades para que ninguém veja. Assim, aquele que sabe mais fica no poder, vai tirar as notas sempre mais altas e isso vai estimulando, o tempo todo, a criança a ser egoísta. Quem sabe mais poderia muito bem estar em um trabalho coletivo, compartilhando a forma como ele entendeu aqueles conhecimentos com quem sabe menos, com quem tem dificuldade de aprender.

E outro ponto é a hierarquia mesmo. Você não olha no olho das pessoas. Se você trabalha dentro da circularidade, que é um valor civilizatório afro-brasileiro, tá todo mundo olhando para todo mundo. As cadeiras colocadas em círculo, o espaço aberto para a energia correr, para que as atuações aconteçam na frente de todo mundo. É um valor civilizatório que acontece o tempo todo no candomblé.

Outras ideias, que também estão ligadas em fazer oposição ao individualismo ocidental, são o cooperativismo e o comunitarismo. Dentro das tradições afro-brasileiras, no candomblé tudo se faz no coletivo. Você organiza festas no coletivo, as obrigações são dadas no coletivo…

É importante reconhecer que cada criança, cada adulto e cada jovem que frequenta o banco escolar tem a sua energia própria, tem a sua força, tem o seu conhecimento e o seu saber que antecede os conhecimentos da escola. Mas a arrogância dos profissionais da educação – e da educação enquanto um sistema maior – acha que a criança acaba sendo um livro em branco que precisa ser preenchido pela educação eurocêntrica e desconsidera os conhecimentos prévios que aquela criança já tem, o que não acontece no espaço do candomblé. Eu posso ter 50 anos, a criança pode ter quatro, e eu vou ter que respeitá-la, porque ela tem uma energia vital ancestral que é a mesma que eu tenho e que eu carrego.

A tese traz pessoas de dentro [da religião], que um dia foram de fora, e que conseguem pensar nos ensinamentos que foram transmitidos a elas dentro candomblé, que seriam fundamentais que a educação brasileira conhecesse. A contribuição que temos para dar é enorme em tempos de tantas desorientações educacionais.

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