Imagem: Audiovisual / Jornalismo Júnior
Por Samantha Prado (sampradogp@gmail.com)
A erotização do umbigo, falso câncer, aborto, Stalin e seus subordinados, paquistanês inventado. Itens que aparentam total desconexão mas que serão entrelaçados para relatar a insignificância da vida humana. A obra é um belo encaixe das aleatoriedades cotidianas.
Marcando a volta do autor Milan Kundera ao mundo literário após 14 anos, a narrativa é ambientada em Paris e gira em torno do cotidiano de quatro amigos: Alain, Charles, Ramon e Calibã. Alain é o grande responsável pelas reflexões sobre a erotização do umbigo e convive com o trauma constante de ter sido abandonado pela mãe na infância. Charles frequentemente conta episódios sobre Stalin e faz ponderações sobre, inspirado pelo livro que está lendo. Ramon é abalado pela notícia da doença de um conhecido, levando-o a contemplações pessoais sobre indivíduos insignificantes e narcisistas – como o doente. Já Calibã é um ator frustrado que trabalha como garçom e, a fim de se transformar em uma pessoa interessante, finge ser paquistanês aos clientes.
D’Ardelo é um homem que mente ter câncer em um súbito desespero de afagar seu ego e sentir-se especial. Sua festa de aniversário – ponto culminante da obra, onde todos os personagens se encontram – passa a ter como propósito reforçar sua imagem como um homem significante e admirável, na figura daquele que segue sorrindo para vida apesar de seus desafios.
O livro é composto por capítulos curtos que abordam pequenos episódios cotidiano e as reflexões em torno deles. Trata-se de uma visita ao mundo particular dos personagens, perdidos em suas próprias questões. Os diversos pontos de vista mantêm a leitura rica, assim como o convite à ponderação a partir da filosofia crítica apresentada pelo escritor.
“A insignificância, meu amigo, é a essência da existência. Ela está conosco em toda parte e sempre. Ela está presente mesmo ali onde ninguém quer vê-la: nos horrores, nas lutas sangrentas, nas piores desgraças. Isso exige muitas vezes coragem para reconhecê-la em condições tão dramáticas e para chamá-la pelo nome. Mas não se trata apenas de reconhecê-la, é preciso amar a insignificância, é preciso aprender a amá-la.”
Como marca do autor, o cotidiano transborda significados e meditações existenciais profundas – e, muitas vezes, inusitadas. Sua escrita tem um tom curioso e transmite bastante conforto ao nos mostrar o dia a dia comum no qual todos estamos inseridos. O mundo é um grande lugar comum para Kundera – o que o torna pequeno e, ao mesmo tempo, confortável e mesquinho.
O egocentrismo é a peça chave da obra e é apresentado de forma sutil: os indivíduos, mergulhados em seus dramas individualistas, são incapacitados de perceber a festa da insignificância na qual se encontram.