Haruki Murakami já é um velho conhecido no mundo da literatura. Autor de grandes romances como Kafka à Beira-Mar (Alfaguara, 2008) e Norwegian Wood (Alfaguara, 2008), o escritor japonês encanta leitores pelo mundo inteiro com sua escrita fluida e marcada por elementos fantasiosos. Contudo, o leitor de Murakami é pego de surpresa em Abandonar um Gato (Alfaguara, 2022); em seu livro mais recente, o autor abandona a ficção e pega uma página emprestada — figurativamente — da vencedora do prêmio Nobel de Literatura, Annie Ernaux; mergulhando na sua relação com o próprio pai.
Em meados da década de 1950, no Japão, o jovem Murakami vai, acompanhado de seu pai, a uma praia, com um objetivo um tanto funesto: abandonar um gato. O motivo para o abandono é incerto; a memória, apesar de poderosa, também falha. Seja como for, a missão se prova um fracasso. Depois de deixarem a gata na praia, pai e filho voltam para casa e se deparam com uma surpresa: a gata abandonada sentava à porta, esperando-os.
A situação, apesar de parecer pontual, denuncia temas recorrentes no livro. Murakami, a partir do episódio do gato, se dedica a recontar a história de vida do pai — igualmente marcada pelo abandono. O episódio também expõe o principal obstáculo enfrentado pelo autor durante a narrativa: a memória. Em diversos momentos do texto, o autor se vê forçado a reconhecer os limites das suas lembranças; e os fatos de que lembrava por vezes são desmentidos por documentos oficiais, tensionando as fronteiras entre memória, realidade e ficção.
Com uma linguagem simples — afinal, a vida real dispensa floreios —, Murakami se debruça, então, sobre sua relação com o pai, um homem sensível e artístico cuja vida foi permanentemente marcada por uma passagem no exército. Como tentativa de se aproximar do pai falecido, Murakami volta no tempo e resgata suas origens familiares, narrando desde o início do século 20. E não se pode falar da figura paterna sem esbarrar no contexto político do Japão, um país marcado por sucessivas guerras sangrentas, que, por alguns anos, protagonizaram o cotidiano do pai.
De forma orgânica, o livro mescla a história de vida do pai com a história do Japão, variando entre grandes eventos históricos, relevantes acontecimentos da vida do pai e memórias singelas e cotidianas. E todos esses eventos são embasados não só pela memória, mas também por uma intensa e perceptível pesquisa, o que confere ao livro um caráter quase jornalístico. Ao longo de toda a narrativa, Murakami faz referência a documentos oficiais e registros históricos para embasar e preencher as lacunas deixadas pela memória.
Apesar de constar entre as listas mundiais de best-sellers, o autor japonês é tido como excessivamente ocidentalizado por alguns leitores por ter morado grande parte de sua vida nos Estados Unidos e ter uma forma de escrita mais próxima à utilizada no Ocidente. As suas narrativas, apesar de situadas no Japão, relatam um contexto já muito globalizado do país, e seus livros são marcados por elementos da cultura norte-americana. Mas em Abandonar um Gato, os elementos da cultura japonesa transbordam nas páginas. Ao retomar a história do pai, Murakami, além de traçar um panorama da história do Japão, também explora o universo dos poemas haicais, uma grande paixão do protagonista, e as tradições budistas. Elemento central da cultura japonesa, os curtos poemas acompanharam o pai durante toda a vida, e os haicais por ele compostos são transcritos do livro, agregando um elemento lírico e intimista à narrativa.
Mais do que uma biografia do pai, Abandonar um Gato é uma jornada de autorreflexão. Uma leitura rápida e bonita que promove a literatura como forma de diálogo com o passado e como ferramenta que propicia um redescobrimento de si. Murakami, na obra, se aventura em um campo que lhe é menos familiar e mostra que suas habilidades literárias não se restringem somente à ficção.
Imagem de capa: divulgação