por Carolina Tiemi
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Game over?
Jogar também é arte. Os videogames são considerados a décima arte na versão atual do Manifesto de Ricciotto Canudo. Algumas modalidades, porém, construíram um vínculo de amor e ódio durante sua evolução. É o caso do cinema e dos games.
Existe uma lenda sobre essa relação: enquanto filmes servem de base para a criação de excelentes jogos, como foi o caso de GoldenEye 007 (jogo de tiro em primeira pessoa para Nintendo 64, inspirado no filme homônimo de James Bond) e os inspirados na série Star Wars, que alegraram seus seguidores em diferentes plataformas (Playstation 2 e 3, PC, PSP e Xbox), o caminho inverso não é tão bem sucedido; como uma maldição que paira sobre as adaptações cinematográficas das histórias dos games, os filmes dificilmente agradam os fãs.
Primeira adaptação, primeira frustração
O pioneiro a se a aventurar nessa transgressão entre gêneros foi Super Mario Bros. (Super Mario Bros, 1993). No início dos anos 90, as improbabilidades de um mundo de plantas carnívoras, canos e plataformas flutuantes em um live-action foram substituídas por um Brooklyn mais realista. Com Bob Hoskins como Mario e John Leguizamo como Luigi, os irmãos (que, no filme, têm uma relação de pai e filho) entram num universo paralelo, onde os humanos descendem de dinossauros e velhinhas andam armadas. O governante desse local, Rei Koopa (Dennis Hopper), uma versão humanizada do vilão Bowser, sequestra Daisy, interpretada pela loira Samantha Mathis. Se estávamos acostumados com uma Princesa Peach presa num castelo, o filme decepciona (também) neste ponto, uma das poucas lembranças que podemos ter é o possível romance entre Daisy e Luigi -isso, para quem acredita na fofoca do game da Nintendo.
Assim, com o roteiro totalmente diferente da história do game, a presença de um mascote chamado Yoshi, as bombinhas e os cogumelos soaram apenas como tentativas forçadas de lembrar o jogo. Arrecadou apenas US$ 20 milhões nas bilheterias estadunidenses, sendo que o orçamento do filme foi estimado em US$ 48 milhões. Bob Hoskins falou criticamente de Super Mario Bros., dizendo que era “a pior coisa que eu já fiz” e que “toda a experiência foi um pesadelo” em uma entrevista de 2007 para o The Guardian. Em outra entrevista com o mesmo jornal, Hoskins respondeu Super Mario Bros. para três das perguntas que recebeu: “O que é o pior trabalho que você fez”, “Qual foi sua maior decepção” e “Se você pudesse editar o seu passado, o que você mudaria?”. Seu sucesso estava em outro castelo, quem sabe.
Questão de perspectiva: uma boa comédia
No ano seguinte da desastrosa adaptação da série Mario, outro clássico dos games ganhou sua versão em película: Street Fighter – A Última Batalha (Street Fighter, 1994). O filme, que alterou o enredo do jogo original e as motivações dos personagens, foi um sucesso comercial recebido como um fracasso pelos fãs de SF. Contou com atores como Jean-Claude Van Damme (que interpreta o Coronel Guile) e Raúl Juliá (que, em seu último filme, faz o vilão Bison), e todos os personagens famosos da série, exceto o kickboxer Fei Long, aparecem no longa. Na época, a produtora alegou que Fei Long só não participou do filme porque era um personagem muito secundário. Porém, como o personagem é claramente inspirado em Bruce Lee, acredita-se que a Capcom não o incluiu porque não poderia pagar os direitos de imagem para a família do lutador, morto em 1973. Além dessa falta, com a história alterada, cada personagem foi repaginado ao tom cômico característico da obra: Ryu e Ken são traficantes de armas (e cedem todo o protagonismo para Guile, no filme), Chun-Li é uma repórter de TV, Honda é seu cinegrafista, e Blanka virou um monstro após uma experiência feita por Dhalsim, um cientista contratado por um Bison que tenta dominar o mundo e construir seu império, mas encontra dificuldades com o tamanho da praça de alimentação -uma das muitas tiradas do primeiro longa de Street Fighter.
Steven E. De Souza, produtor, afirmou que não queria fazer um genérico filme de artes marciais, que se submetesse ao game apenas, e descreveu seu plano como um cruzamento entre Star Wars, James Bond e filmes de guerra. Assim, a luta entre Ryu e Vega (vilão que causou muita dor de cabeça em alguns gamers) é embalada por Habanera, da ópera Carmen de George Bizet; e Honda e Zangief prestam uma homenagem aos velhos filmes do Godzilla. A produção aliviou significativamente o tom da adaptação, com a inserção de vários interlúdios cômicos, diálogos dignos de sitcom e detalhes risíveis ao longo da película.
Depois de Street Fighter – A Última Batalha, ainda foram lançados o filme Street Fighter – A Lenda de Chun-Li (Street Fighter – The Legend of Chun-Li, 2009), três animações, um anime, uma série de desenho animado e duas webséries. Por último, Street Fighter – Legacy (Street Fighter – Legacy, 2010), um curta dirigido por Joey Ansah, o assassino Desh de O Ultimato Bourne (The Bourne Ultimatum, 2007). O dublê e ator comenta que resolveu realizar o vídeo por ser fã de videogames de luta e estar insatisfeito com as adaptações de Hollywood.
Toasty!
Considerado um dos melhores filmes baseados em games, o triunfo da produção de Mortal Kombat – O Filme (Mortal Kombat, 1995) está no fato do roteiro, os cenários e os atores não fugirem do que foi criado no popular jogo de luta. Dirigido por Paul W. S. Anderson (que tomaria gosto pelo tema, dirigindo mais tarde os filmes da série Resident Evil) e contando com Ed Boon e John Tobias, criadores do game, como roteiristas, o longa retrata o primeiro torneio da saga.
A fidelidade da trama cinematográfica à história narrada durante a série de games trouxe o deus Raiden (interpretado por Christopher Lambert, famoso pelo papel em Highlander) convoca Liu Kang (Robin Shou), Sonia Blade (Bridgette Wilson) e Johnny Cage (Linden Ashby) para lutar no torneio e impedir o domínio de Shao Kahn -que não aparece na película, deixando a vilania para Shang Tsung (Cary-Hiroyuki Tagawa) e o Goro (Tom Woodruff Jr). Ed Boon dá voz ao personagem Scorpion no filme e, no meio de citações clássicas como “get over here!”, a música tema do jogo dá um gostinho nostálgico nas lutas. Paul Anderson acertou ao escolher o coreógrafo Pat E. Johnson, que deu intensidade e velocidade às batalhas, e Alison Savitch para os efeitos especiais, que deixou a produção à frente dos filmes lançados anteriormente.
Mortal Kombat teve recepção mista por parte da crítica especializada. Em base de 12 avaliações profissionais, alcançou metascore, pontuação dada por especialistas e usuários, de 58% no Metacritic e uma nota de 7.6 nos votos dos usuários do site americano, que avalia games, filmes, séries e livros. Pontuação maior do que seu sucessor, Mortal Kombat: A Aniquilação (Mortal Kombat: Annihilation, 1997), que não atingiu a repercussão do primeiro filme: uma das poucas adaptações não odiadas, sucesso de bilheterias e ganhador do prêmio da BMI Film & TV Awards pela trilha-sonora, composta por George S. Clinton.
Bem-vindo à Silent Hill
Um gamer escreve um roteiro alternativo para o jogo do qual é fã. Um novo enredo, mas inspirado fortemente na história original. Sua paixão é tamanha, que chega a fazer gravações caseiras, pedindo ao dono da franquia a liberação de seu projeto. Com a aprovação, faz disso um filme, aceito por públicos diferentes, entre amantes do jogo e não jogadores. Elogiado, inclusive, pelo criador deste game, que decide produzir outro jogo, se baseando no longa para concretizar o que se passa na película -um modo de elogiar a peça cinematográfica? Foi o que aconteceu com Silent Hill.
Terror em Silent Hill (Silent Hill, 2006) bebeu da fonte dos dois primeiros jogos da série Silent Hill, da Konami. No primeiro lançamento, conhecemos Harry Manson, que sai de férias com sua filha, Cheryl. Mas a criança desaparece depois de um suspeito acidente, e assim começa o game: com a busca de Harry por sua filha, na cidade de Silent Hill. No segundo jogo da franquia, outra história: James Sunderland recebe uma carta assinada por sua falecida esposa, com um convite para encontrá-la em um “lugar especial”, que leva James à mesma enevoada Silent Hill. O que o filme faz é mesclar as duas aventuras. Nele, Rose (Radha Mitchell) parte com sua filha Sharon (Jodelle Ferland) rumo à Silent Hill, em busca de respostas para o estranho sonambulismo da menina, que cita o nome da cidade enquanto dorme. Depois de um acidente de carro, porém, Sharon desaparece, e sua mãe passa a procurá-la desesperadamente. Com o passar do tempo, o local se mostra cada vez mais sinistro, e Rose avisa seu marido, Christopher (Sean Bean), do sumiço da filha. Christopher então entra na busca por sua família, mesmo sem nenhuma evidência das mulheres na cidade.
O longa deixa em paralelo dois momentos diferentes, remodelando personagens e emaranhando-os numa Silent Hill tão aterradora quanto a do próprio game, conhecido pelo terror psicológico bem conduzido. Muitos pontos remetem ao jogo: a neblina característica (que nasceu pela limitação gráfica de processamento do Playstation, mas se tornou marca da série), a corrida pelas ruas desertas, o mundo paralelo que se forma de tempos em tempos (com a mesma transformação em grades e paredes ensanguentadas). O diretor Christophe Gans e o roteirista Roger Avary (o mesmo de Pulp Fiction) criaram uma cidade decadente, singular e estranha: atmosfera semelhante ao do video-game. A trilha sonora, importante para a criação do amedrontador universo, é constituída por músicas dos jogos Silent Hill, Silent Hill 2, Silent Hill 3 e algumas de Silent Hill 4: The Room, todas compostas por Akira Yamaoka.
Por conta do enredo bem exposto, o filme pode ser aproveitado por quem não conhecia o video-game; ao mesmo tempo em que os fãs puderam relembrar elementos do game, inseridos e supervisionados por Keiichiro Toyama, criador do jogo. O mistério que envolve o lugar e outras questões em aberto do filme, no entento, são melhor explicadas na sequência Silent Hill – Revelação (Silent Hill – Revelation 3D), que, infelizmente, não acompanhou a vitória do primeiro filme.
A Double Helix, desenvolvedora do game Silent Hill: Homecoming, usou diversos trechos do filme para construir o sexto jogo da série. A transformação do mundo normal para o alternativo, que se esvai em pedaços até revelar uma versão dark da cidade, é a inspiração mais evidente no jogo. Outras similaridades com o filme incluem os insetos que andam junto com o Pyramid Head e a reação das Nursers, enfermeiras monstruosas, à luz. A própria Ordem, organização religiosa da trama, passou a ter maior relevância no jogo após sua aparição no longa-metragem.