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Transtorno Dissociativo de Identidade: do filme Fragmentado ao mundo real

De que forma o filme de Shyamalan’ reflete a realidade e quais as problemáticas envolvidas com vilões de cinema que possuem algum transtorno psicológico?
Três imagens do protagonista do filme "Fragmentado", com a sigla "TDI" (que significa Transtorno Dissociativo de Identidade) ao lado
Por Larissa Bilak (larissabilak@usp.br)

Os filmes de terror e suspense psicológico são capazes de gerar fortes emoções nos telespectadores, principalmente quando envolvem assuntos que fogem do dia a dia. Esse é o caso do filme norte-americano Fragmentado (Split, 2017), dirigido por M. Night Shyamalan’. A trama gira em torno de Kevin Wendell Crumb (James McAvoy), um homem que possui cerca de 23 personalidades conhecidas devido a sua condição rara como paciente de Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI). 

Um dia, sob a influência de uma de suas identidades, Kevin sequestra três garotas e as mantém em cativeiro durante o decorrer da obra. Juntas, as jovens tentam desvendar o comportamento do sequestrador, adaptando-se às suas variadas personalidades para encontrar formas de fugir e sobreviver. Porém, a abordagem do TDI no filme mais afasta do que aproxima o público da realidade do transtorno.

Protagonista do filme "Fragmentado", em um carro, olhando para atrás da câmera
Dennis, a personalidade de Kevin que sequestra as três jovens.
[Imagem: Divulgação/Universal Pictures]

O Transtorno

De acordo com Vanessa Flaborea Favaro, diretora dos Ambulatórios do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, o Transtorno Dissociativo de Identidade é “uma condição na qual aspectos não integrados ao restante da personalidade surgem de maneira repetida, fora de contextos religiosos ou culturais adequados, causando sofrimento e servindo ao propósito de aliviar algum tipo de trauma que a pessoa tenha vivido”. 

Ou seja, a criação de novas identidades ocorre a partir de uma necessidade do indivíduo de se proteger de situações que remetem a algum episódio traumático, geralmente vivenciado na infância, como abusos físicos, psicológicos e sexuais. As memórias do paciente tornam-se confusas e ele perde o controle de muitos aspectos de sua vida, como diz Vanessa: “são pessoas que não conseguem ter uma vida de trabalho, de namoro, de ganhos financeiros”.

Protagonista do filme "Fragmentado", que tem Transtorno Dissociativo de Identidade, olhando para atrás da câmera
Assim como se expressa na realidade, Kevin adquiriu o transtorno como uma forma de se proteger de um trauma vivenciado na infância: sua mãe cometia, diversas vezes, violência física e psicológica.
[Imagem: Divulgação/Universal Pictures]

Mas nem sempre a condição foi tratada dessa maneira. Assim como no caso de outros transtornos psicológicos, o TDI era visto em termos religiosos e os pacientes eram encarados como vítimas de supostas possessões demoníacas, o que os isolava ainda mais de seus amigos e familiares. “O transtorno afasta as pessoas e deixa todo mundo com uma sensação de perplexidade, de preocupação”, afirma Vanessa.

O Transtorno Dissociativo de Identidade é raro e de difícil diagnóstico. Antes chamado de Transtorno de Personalidade Múltipla, trata-se de uma condição duradoura e persistente e que exige um longo processo de psicoterapia e investigação, além de se manifestar de diferentes formas dependendo do paciente. 

A diretora informa que os médicos têm dificuldade com os inúmeros diagnósticos diferenciais a serem feitos. “A entrevista e a investigação são detalhadas. Muitas vezes, precisa-se do relato de pessoas em volta e não existe nenhum exame disponível que possa substituir o diagnóstico”.

Graças a sua peculiaridade, há muitos debates entre os especialistas sobre a veracidade do transtorno. Segundo Antonio Egidio Nardi, professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), “em qualquer assunto, se você entrevistar dez psiquiatras, você terá dez opiniões diferentes. Principalmente em relação a transtornos tão raros”. Para ele, o TDI só existe, de fato, na literatura.

Apesar das discordâncias, há, no geral, um consenso em relação à existência de quadros dissociativos, caracterizados pela confusão mental, os quais podem acontecer com qualquer pessoa em situações de muita emoção ou estresse. Nesse caso, as dissociações são de curto prazo e menos estruturadas e podem, inclusive, aparecer com maior frequência em outros transtornos psicológicos.

Plano de uma mão escrevendo em um caderno com uma caneta
Quadros dissociativos podem acontecer também em situações de estresse não violento, como na realização de uma prova importante ou em entrevistas de emprego.
[Imagem: Reprodução/Freepik]

Em relação aos quadros de dissociação, Antonio compara a consciência a uma tela de cinema. “De repente, em uma situação de estresse, a tela vai ficando menor, em um só foco. Se explodir uma bomba aqui do lado, a pessoa não vai nem notar, porque está presa àquela situação. Há um estreitamento da consciência nos quadros dissociativos”.

A violência e o exagero no filme de Shyamalan’

Despertando dúvidas e debates até mesmo entre os especialistas, é claro que o transtorno seria, alguma vez, introduzido ao cinema. Porém, é importante lembrar: muitos filmes utilizam da ficção e do exagero para manter os telespectadores presos em frente à TV, e com o filme Fragmentado não seria diferente. 

A utilização de doenças mentais pela indústria cinematográfica, se não for feita com cuidado, pode atenuar vários preconceitos. “Nos filmes, o retrato dos pacientes é muito mais violento do que de fato eles são”, diz Vanessa. “O que a gente sabe é que os pacientes com transtorno mental são muito mais vítimas do que perpetradores de violência”.

Para além do cinema, Antonio diz que a mídia também possui um papel importante na criação de preconceitos relacionados aos transtornos mentais: “Quando a mídia dá a notícia de que um paciente psiquiátrico fez algo grave, isso ganha uma repercussão e é generalizado para todos os pacientes psiquiátricos. Mas aqueles em condição grave, inclusive os psicóticos, cometem muito menos crimes”.

No caso do protagonista Kevin, a violência aparece com frequência. Não somente no ato de sequestrar e aprisionar as três garotas, mas também na revelação de sua vigésima quarta personalidade, até então oculta: A Besta, a qual adquiriu, graças ao transtorno, características sobrenaturais como superforça e pele altamente resistente.

Protagonista do filme "Fragmentado" em uma das personalidades agressivas de seu Transtorno Dissociativo de Identidade, gritando e mostrando os músculos na direção da câmera
A Besta, vigésima quarta personalidade de Kevin. No final da trama, ela é responsável por assassinar a psicóloga Karen Fletcher (Betty Buckley) e canibalizar duas das garotas sequestradas.
[Imagem: Divulgação/Universal Pictures]

No filme, a ideia divulgada é a de que o sofrimento, ocasionado pelo trauma, foi capaz de desbloquear características anormais no próprio metabolismo de Kevin, permitindo que A Besta viesse à tona. Entretanto, isso obviamente não é possível e nada diz sobre o Transtorno Dissociativo de Identidade. 

“Coisas muito fundamentais da nossa biologia não mudam”, afirma Vanessa. “Mas, às vezes, em situações nas quais a emoção está dominando e você tem menos controle, a pessoa pode, por exemplo, andar muito e não se sentir cansada ou aparentar ter mais força. Não somente nesse transtorno, em várias situações, ela pode se mostrar mais valente, mas isso não é uma mudança da própria fisiologia”.

Protagonista do filme "Fragmentado" em uma camiseta vermelha
Patrícia, uma das personalidades de Kevin, a qual possui diabetes. Segundo a psiquiatra Vanessa Favaro, essa peculiaridade não acontece fora das telas.
[Imagem: Divulgação/Universal Pictures]

Porém, sintomas conversivos podem, sim, acontecer. De acordo com Vanessa, “a conversão é transformar uma emoção em algo corporal”. Por tal razão, existem casos de pessoas que não conseguem andar, sentir o tato, mexer algum membro ou mesmo enxergar e ouvir em situações de muita emoção. 

“Aquele sintoma é uma manifestação de uma emoção muito intensa”, continua a psiquiatra”. “Mas, se o médico examinar a pessoa, verá que está tudo normal. O que está acontecendo é que a mente está influenciando o corpo para que a emoção possa ser descarregada naquele momento”.

O exagero não é uma artimanha utilizada somente quanto aos superpoderes da Besta, mas também em relação a como o transtorno se manifesta. “O Transtorno Dissociativo de Identidade não aparece dessa forma, em geral”, diz Vanessa. “Geralmente ele surge com duas personalidades, no máximo três”, completa.

Além disso, em alguns momentos, Kevin tem a capacidade de escolher qual de suas personalidades virá à tona, e isso também não acontece na realidade. “Caso a pessoa tenha controle, então não é mais um transtorno dissociativo”, declara a especialista. 

“Vamos supor que ela saiba exatamente como fazer para surgir aquela personalidade e que ela tenha consequências positivas a partir disso. Então, na verdade, isso é um problema de simulação”. Geralmente, a mudança de uma personalidade para a outra acontece de maneira involuntária graças a algum gatilho, na tentativa do indivíduo de se distanciar da situação estressante, e não de uma escolha.

No filme, as personalidades até mesmo conversam e relacionam-se entre si. “Às vezes, a pessoa tem essa sensação de que dá pra conversar, de que uma das personalidades está enxergando a outra, mas isso é muito desagradável e é uma coisa que a pessoa tenta evitar”, acrescenta Vanessa. Ou seja, não acontece como no filme, onde há conversas com determinados objetivos entre as identidades de Kevin, quase como uma cooperação.

O paciente com TDI pode não se lembrar de nada do que aconteceu após assumir outra personalidade, assim como costuma acontecer no filme, ou pode entrar em um estado chamado de despersonalização. “É como se a pessoa estivesse vivenciando tudo aquilo, ela sabe, mas está escondida, como se estivesse nos bastidores”, exemplifica a especialista. “Ela diz que não é ela quem está falando, apesar da palavra estar saindo de sua boca”, completa. Em tais situações, os indivíduos sentem-se impotentes e em estado de passividade.

O filme apresenta pontos que podem, sim, acontecer fora da ficção. Além do fato de Kevin ter adquirido o transtorno graças a um trauma ocorrido na infância, o que é fidedigno com a realidade, é possível, também, que uma das personalidades apresente-se como uma criança, expressando-se com um tom de voz mais infantil e portando-se como uma.

Protagonista do filme "Fragmentado" sentado, olhando para cima
Hedwig, a personalidade criança de Kevin.
[Imagem: Divulgação/Universal Pictures]

A psicóloga Karen Fletcher e sua abordagem do transtorno

Ao longo da trama, nos é apresentada Karen Fletcher, a psicóloga de Kevin já citada anteriormente em nosso texto. Apesar de seu real interesse em auxiliar o protagonista, a médica começa a encará-lo como alguém especial e diferente graças a sua condição, e isso é preocupante na psicoterapia. “O sintoma não pode ser o alvo principal do interesse do terapeuta. […] Uma vez que o diagnóstico foi confirmado, é importante que se mude a abordagem para que a pessoa em si seja o foco”, declara Vanessa.

Protagonista do filme "Fragmentado" e sua psicóloga, conversando frente a frente em uma sala com dois sofás
Kevin em uma consulta com sua terapeuta Karen.
[Imagem: Divulgação/Universal Pictures]

Vanessa ainda diz que, ao focar excessivamente nos sintomas do paciente, é possível que seu quadro piore, “porque a pessoa entende que aquilo serve para ela se sentir querida, e não é a intenção. […] A gente tenta, durante a terapia, mostrar que não é o transtorno que a torna interessante, é o fato de ela ser quem é, de estar ali”.

Da mesma forma, Antonio também ressalta a importância do foco ser sempre o paciente e sua melhora. “Nós, médicos, não tratamos de doenças, nós tratamos de pessoas. […] Nós aprendemos a técnica de diagnosticar, de tratar, mas na hora que estamos de frente com um paciente, temos que ter um comportamento humanístico”, conclui o professor.

“A medicina não é uma técnica, ela é uma arte.”

Antonio Egidio Nardi

Licença poética e desinformação

Apesar do filme estar bem distante da realidade, ambos os psiquiatras concordam que a obra é, de fato, interessante. “Eu entendo que tem uma licença poética”, diz Vanessa. “Existem fenômenos humanos que são difíceis de entender, e a loucura, as situações nas quais não temos um entendimento tão claro, chamam muito a nossa atenção”.

Homem com Transtorno Dissociativo de Identidade olhando para mulher
É possível assistir o filme nas plataformas da Netflix, Globoplay, AmazonPrime e Star+.
[Imagem: Divulgação/Universal Pictures]

A cultura pode auxiliar de diversas formas, incentivando a busca por ajuda quando necessário ou o aprimoramento de aspectos pessoais, além de facilitar o entendimento de assuntos desconhecidos. Entretanto, como qualquer coisa, também pode ser utilizada de forma negativa. “Temos que tomar cuidado com qual é a informação e de que jeito iremos utilizá-la”, declara Vanessa.

Para Antonio, “todo preconceito, não só com o paciente psiquiátrico, vem pela ignorância e pelo desconhecimento. Então, quanto mais se falar nesse respeito, mais fácil é diminuir esse estigma e ajudar as pessoas que sofrem”. O filme, por fugir muito da realidade, pode aumentar ainda mais esse estigma caso chegue a alguém desinformado. Por tal razão, é importante basear-se em fontes confiáveis para, assim, conhecer com maior segurança sobre algum transtorno ou sobre qualquer coisa.

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