Na leitura habitual dos periódicos nacionais, semana passada deparei-me com a notícia do encontro dos presidentes do Mercosul. Porém, a reunião, dessa vez, foi marcada por instabilidades e desencontros. Argentina ausente devido ao delicado momento econômico em que vive. Enquanto, Brasil e Uruguai discordavam sobre os rumos que o bloco deveria tomar. O que me veio a mente, todavia, foram alguns dos momentos em que o tom notável dos encontros sul-americanos era a colaboração. Destas uniões, uma das mais sublimes, foi a que gerou o belíssimo filme Diários de Motocicleta (Diarios de Motocicleta, 2004). Uma produção que passeou por toda a América Latina, do diretor brasileiro, ao compositor argentino, passando pelo músico uruguaio Jorge Drexler, autor de Al Otro Lado Del Rio, premiado com o Oscar de melhor canção original. A premiação foi um episódio bem curioso, e que pode render um bocado de aprendizado.
Drexler contou à Folha na época, que ao receber uma ligação de Walter Salles, o diretor da película, logo teve a ideia de como compor a canção. A música que cresce junto a cena chave do filme: o momento em que Ernesto Guevara (Gael García Bernal) tenta atravessar o rio Amazonas a nado, na Colônia de San Pablo no Peru. A descrição bastou para o uruguaio saber como orquestrar o momento.
Para tanto, é preciso entender Diários de Motocicleta como um filme de estrada, no qual ao longo de uma viagem, há um desenvolvimento dos personagens à medida que se defrontam com o desconhecido. Só que, nesse caso, a mudança extrapola o âmbito pessoal. Cria-se a noção de América do Sul como um coletivo. Um sentimento que nós, como daqui nativos, ainda temos dificuldades de entender.
Continuamos, braçada por braçada, a remar contra águas titânicas, ignorando nossa bagagem de união, de conhecimento do próximo. Em vez de buscar a empatia do outro ao nosso lado, buscamos aprovação de quem nos planifica em objeto. A forma como Drexler recebeu a estatueta de ouro da Academia brinca de ser parábola, ao passo que deixa insinuações muito claras sobre como o mundo ocidental vê a América Latina.
Independentemente de ser o primeiro Oscar por canção original dessa porção de terras, o evento é mais lembrado por tribulações do que por glória. A concorrência com gigantes da música, pareceu logo cortar a fé do sucesso em suas raízes. Depois a notícia, que sem passar por Drexler, apareceu já no site da premiação: Al Otro Lado Del Rio seria interpretada no espetáculo por Antonio Banderas e Carlos Santana. O primeiro Espanhol. O segundo Mexicano, mas radicado nos EUA, uma das formas de receber algum crédito quando não se é do “ocidente”. Simultaneamente, o intérprete original ganhava o carimbo de desconhecido. Um selo comum de se receber por essas bandas.
De qualquer maneira, Jorge decidiu comparecer à cerimônia, ainda que proibido de cantar a própria composição. Da plateia, assiste a deturpação de tudo que a música e o filme representam. Salma Hayek tenta passar para a audiência um pouco da mensagem contida nos versos, embora, desajeitadamente. A guitarra distorcida de Santana, e uma performance não muito natural de Banderas, desmantelam o cunho singelo e íntimo da música. Pegaram a canção do uruguaio, a nossa cultura e vilipendiaram, desdenharam, com o intuito de nos encaixar aos padrões deles.
Quando finalmente chegou a vez de Prince anunciar o grande ganhador, a força de Al Otro Lado del Rio se mostrou tamanha, que Drexler foi chamado, finalmente, ao palco. Lá subiu e cantarolou, “Oigo una voz que me llama casi un suspiro/ Rema, rema, rema-a, rema, rema, rema-a”. E, após os versos banidos, fez o menor discurso que já se viu na premiação, uma breve despedida. Saiu, por fim, como quem não deve satisfação.
Para nós deveria ficar o exemplo. Toda vez que nos dobramos facilmente, o prêmio é descaso. O que os países daqui fazem para entrar na OCDE, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, parece circo. Ao mesmo tempo que nos rebaixamos para sermos aceitos em países desenvolvidos, tratamos os irmãos de América do Sul como inferiores, queremos muitas vezes usá-los de trampolim. Deixamos que tratem nossas características como exoticidade. Temas distantes agravam-se frente a nossa identidade.
Se nos separam com muros, devemos usar nossos rios limítrofes como pontes. Para nós a luz do outro lado da fronteira, está em reconhecer nossa vastidão, saber que ao sair dos limites de nossas cidades, chegando a zona rural mais próxima, encontramos inúmeras diversidades. Essas são as dimensões do nosso continente, e devemos fazer com que essa diferença seja soma agregada. É no peruano que vende ceviche em São Paulo e na baiana que vende acarajé em Buenos Aires, que estão as oportunidades. A nossa união é a chave do nosso progresso.
Seguem a bela canção Al Otro Lado del Rio e a trilha sonora de Diários de Motocicleta:
Este texto faz parte do especial de 10 anos do Cinéfilos. Para ver mais da antiga editoria Trilha Sonora, clique aqui.
por Pedro Teixeira
pedro.st.gyn@gmail.com