“Se é para o bem da pessoa, pode mentir”. Uma Família de Dois (Demain tout commence, 2016) é uma comédia francesa estrelada pelo ascendente Omar Sy. Dirigido por Hugo Gélin, a produção tem em seu elenco as francesas Clémence Poésy e Gloria Colston, e o canadense Antoine Bertrand. O longa é divertido e hilariante: uma boa comédia. Ele também traz problemáticas complexas, embora não as explore com afinco. Comove, mas não reflete sobre.
A vida é uma folia para o motorista de barco Samuel (Sy). Irresponsável, ele não sente pudor em dar uma festa em seu local de trabalho, independentemente dos alertas de sua chefe (Clémentine Célarié). Ao acordar com duas mulheres em sua cama, Samuel é abordado logo no píer por Kristin (Poésy). A jovem londrina entrega-lhe o bebê fruto do relacionamento entre os dois há um ano, e some. Samuel tenta encontrá-la em Londres, mas falha. Sem rumo, ele é amparado por Bernie (Bertrand). Samuel decide, então, criar a sua filha Gloria (Colston) sem a mãe. Até que um dia, ela retorna.
O enredo é, majoritariamente, alegre e cômico. O público tem do que rir do começo ao fim. Até mesmo nos momentos de maior seriedade, como uma cantada gay em meio a um julgamento de tribunal, há uma piada sutil pelo menos. Uma certa imaturidade é exposta, em algum momento, por cada um dos personagens: de Gloria até a rígida diretora Miss Appleton (Anna Cottis), a qual se deixa ser corrompida por informações sobre o futuro de seu personagem de série de TV favorito. As cores, no filme, são saturadas e diversificadas, impulsionando o caráter risonho e infantil de Uma Família de Dois. Porém, Uma Família de Dois propõe algumas reflexões ético-morais. No caso, duas questões se sustentam, diferentemente de outras mais que são, de modo simples, esquecidas com o decorrer da película. Primeiramente, as vidas de Gloria, Samuel e Kristin são tecidas em mentiras. O enredo acaba por ser contagiado por isso, induzindo o espectador à mentira. Sobra para o espectador se questionar: é correto mentir pelo bem de alguém? O longa tende ao “sim”, mas responde de maneira difusa. Também não tão clara é a forma como a trama lida com a problemática da ausência materna na vida de uma criança. As expectativas, a realização, a construção do laço concreto, as decepções e o perdão são abordados para se chegar a uma conclusão. O problema está no fato do processo e do desfecho serem muito mais emotivos do que reflexivos. Os espectadores mais frios podem se comover, mas não lhes é dado discernimento algum.
O coração de um filme de comédia é seus personagens. A película, obviamente, investiu nessa ideia. Talvez, com a exceção de Kristin, todos os principais tem muito carisma e vida, mesmo sendo estereotipados a certo ponto. O palhaço irônico e irresponsável que amadurece com as responsabilidades e o amigo gay engraçado são os principais exemplos. Gloria também cativa, mas convém crer na facilidade que é para uma criança ser carismática em um longa. A única figura sóbria (além de Kristin) é a chefe de Samuel, a qual pouco aparece.
Os atores conseguiram assumir seus papéis caricatos com eficácia. Omar Sy surpreende e encanta o público com mais uma atuação formidável. Considerando sua personalidade, Samuel só poderia ser interpretado de tal maneira magnífica por Sy. O ator francês é compatível com as exigências de carisma, comicidade e drama do protagonista. Kristin é uma personagem pouco trabalhada, considerando a densidade que o enredo poderia ter dado a ela. Poésie extrai o possível do papel, atuando regularmente. Bertrand encaixou bem como Bernie, talvez, pelo seu perfil físico, no mínimo, fofo. De qualquer forma, seria injusto atribuir ao quebequense uma atuação fraca. Ele foi cômico como Bernie, e, no caso, é isso que importa.
Com um esperado tomate podre de 33% no Rotten Tomatoes e um 7,4 no IMDB, Uma Família de Dois é um filme de família. Isso não é do gosto de quem prefere um cinema mais cult. Entretanto, como uma comédia popular, a produção francesa exerce bem seu papel. Personagens carismáticos e cenas engraçadas preenchem a demanda do longa. Ele deixa claro seu público alvo, e não o decepciona. Assistir à película, para um espectador mais exigente, somente se for para analisar, ou melhor, apreciar a performance elegante de Omar Sy, um dos mais brilhantes atores franceses recentes.
Confira o trailer (embora não se recomende, pois revela muito sobre o enredo):
por Caio Mattos
caiomattcardoso@gmail.com