Por Breno Queiroz (breno.rqueiroz@gmail.com)
O sistema financeiro – por vontade e não necessidade – usa um vocabulário próprio, que nunca foi traduzido de forma clara pela grande mídia. Os parágrafos que sucedem este tópico são desafiadores e tortuosos, exatamente na medida para quem não tem medo de se afogar em algo novo. Afinal, é uma reportagem de fôlego.
Alguém, alguma vez, disse que para fazer um texto para a J.Press é preciso fazer perguntas a ele [o texto]. Portanto, para que o leitor fique atento, ao final desta reportagem deve-se encontrar respostas para as seguintes questões:
O que caracteriza o processo de financeirização?
O que é capital fictício?
Como isso afeta as relações produtivas?
Para onde vamos com tudo isso?
(A última pergunta é de responsabilidade do leitor responder. A reportagem flertou, mas não foi seduzida por especulações).
Invisível
“Muitas vezes, quando eu falo que faço pós, alguém pergunta: ‘O que você pesquisa?’ Eu respiro fundo e digo: ‘eu pesquiso o processo de financeirização’”. (Ilan Lapyda)
O pesquisador Ilan Lapyda reconhece que a mídia não é a única culpada pelo desconhecimento desse processo. Contudo, se ele pesquisasse sobre jornalismo econômico, saberia que a fundação dessa editoria sempre esteve mais para um diário aos investidores do que para um manual de economia. Daria mais créditos ao (des)serviço midiático.
No caso, Ilan dá créditos ao tema da própria pesquisa. Ele o considera pouco palpável, abstrato, imaginário. O processo de financeirização é diferente, nas formas de se perceber, de um esquema clássico de fábrica: com patrão, engrenagens e Charlie Chaplin.
Essa tendência do capitalismo mundial é percebida se identificarmos os fluxos do capital financeiro, a forma como os bancos movimentam a riqueza, desde sua acumulação, até a quebra de fronteiras em um mundo globalizado. Dinheiro gerando dinheiro.
Recorte Histórico
O período pós-Segunda Guerra Mundial (1945) é lembrado por alguns historiadores econômicos como Idade de Ouro, quando vigorou o compromisso keynesiano: Estado desenvolvimentista, alta tributação da renda e regulação dos mercados.
Era uma época de grande crescimento econômico, com exportação do modelo fordista de produção, industrialização de países periféricos – como o Brasil –, aumento do consumo e perspectiva de um tal de Estado de bem-estar social.
Até a década de 70, o modelo capitalista teve tempo para crescer, expandir e se consolidar, gerando grande acúmulo de capital que, como se pode imaginar, seria guardado em bancos. O que precede a financeirização é uma concentração de renda suficiente para diversificar as áreas de investimento, ao invés de repor esse valor no aumento da produção.
Uma Londres dentro de Londres
Por incrível que pareça, existe outra Londres além daquela do Big Ben. E não é uma metáfora. Existe dentro de Londres a City of London (Cidade de Londres), com um prefeito próprio, uma polícia própria, mais antiga que a Londres original e mais permissiva a fluxos financeiros.
Fundada pelos romanos como posto de comércio no rio Tâmisa, a Cidade de Londres permaneceu independente por toda sua história, para desgosto de todos os conquistadores e monarcas da Inglaterra. Hoje, possui mais de 11 mil habitantes, e é considerada a capital financeira mundial.
Isso porque em 1958, permitiu-se a criação de um mercado de bancos para troca de capitais, com regulação fraca, parecida com a de um paraíso fiscal. Na década de 70, com o fim da expansão econômica da Idade de Ouro, todo o acúmulo de capitais não reinvestidos na produção encheu o caixa dos bancos da cidade londrina.
A crise do petróleo também influenciou a concentração desses capitais. Em 1973, o preço do barril subiu até quatro vezes. O que fizeram com esses petrodólares? — a Cidade de Londres. A partir dessa centralidade de liquidez, o mercado financeiro pôde inovar nas formas de usar o dinheiro para fazer mais dinheiro.
Capital Fictício e Derivativos
“A formação de capital fictício se dá quando valor a ser gerado no futuro é trazido ao presente através de contratos financeiros. O capital fictício nos permite realizar transações financeiras no presente com base em valores ainda a serem produzidos e realizados no futuro.” (Tomás Rotta)
Essa é a definição de Tomás Rotta, PhD em Economia na University of Massachusetts, para o termo elaborado pela primeira vez por Karl Marx, no terceiro volume d’O Capital.
Pois bem, mas o que isso quer dizer? Podemos usar o exemplo dos derivativos para entender melhor. Imagine que você é agora um produtor de milho para uma fábrica de pipoca. Você, desconfiado do jeito que é, quer ter certeza de que seu gasto com o plantio não seja maior do que o preço do milho após o tempo de cultivo, então, apresenta um derivativo, fixando o preço do seu ativo (o milho) acima do que gasta com a plantação. Se no final desse período, o preço do milho for menor do que o fixado, você ganhou dinheiro. Se for maior, você deixou de ganhar — perdeu. Mas pelo menos garantiu sua margem de lucro.
O derivativo, portanto, é um contrato de preço futuro, uma aposta no mercado. E pode ser atribuído não apenas aos preços de commodities como o milho, mas também sobre a cotação de uma moeda, o valor de uma ação, ou taxas de juros.
Crise de 2008
“A crise financeira é o evento econômico que realinha a parte financeira com a parte real, caso uma delas tenha crescido de maneira desproporcional à outra.”(Tomás Rotta)
O verdadeiro entrave da financeirização está na geração e na conceituação de valor. Para ilustrar esse problema, temos a crise de 2008, quando uma bolha no mercado imobiliário, que havia crescido graças aos olhos desatentos das instâncias reguladoras, explodiu; e quase levou diversos bancos à falência.
A bolha é uma metáfora para o processo inflacionário, uma geração de valor que não corresponde ao valor real. No caso, os bancos americanos haviam dado muito valor para algo cuja solidez era inquestionável: quem vai deixar de pagar a hipoteca da própria casa?
Porém, em um esquema fraudulento, no qual até as agências de classificação de risco estavam envolvidas, os bancos vendiam gato por lebre, ou um CDO. Collateralized Debt Obligation (CDO), é um investimento em que se compra parte da dívida (debt) de alguém, que é obrigado (obligation) a pagar. Colateralizado (Collateralized), significa que vem por meio de uma garantia. Só que a partir de todas as desregulamentações, não havia mais garantia de que os devedores teriam como pagar, ao ponto de dívidas serem contraídas sem mesmo uma simples comprovação de renda.
O CDO é apenas um exemplo de um produto financeiro, dentre os vários que eram ofertados na economia americana, antes de 2008. Quando a bolha explodiu – e o primeiro devedor não pode honrar as cobranças e, consequentemente, o banco que vendeu o CDO também não – quem que perdeu sua casa e quem foi que recebeu dinheiro do governo americano porque era muito grande para falir?
Consequências para o trabalho
“Nas Sociedades Anônimas, a área financeira vira o centro da empresa.” (Ananias Andrade)
Telas de publicidade no metrô, painéis gigantes de LED, televisores na praça de alimentação do shopping. Sabia que existem empresas que vendem os espaços que disputam nosso olhar? E tem até um nome chique: out-of-home advertising. Sabia que uma dessas empresas foi comprada por uma firma americana de investimentos, administradora de um fundo de 27 bilhões de dólares?
Ananias trabalhava nessa companhia, e descobriu por experiência própria o que significa ter uma empresa reorganizada para dar rentabilidade aos seus investidores. De início, acontece um rearranjo produtivo. Os donos antigos passam a ser acionistas minoritários, uma equipe de gestão assume o exercício da empresa e acontecem aquisições de empresas menores do ramo (a fim de tornar o investimento mais rentável). Com isso, são necessárias diversas padronizações de processos, para que várias virem uma.
Nessa nova forma de capitalismo, o patrão clássico é substituído pela figura do gestor, o que no financês é chamado de CFO (leia a sigla em inglês para maior requinte). O Chief Financial Officer (CFO) é o responsável por espremer os gastos na medida certa para manter os acionistas contentes, as ações em alta e os potenciais investidores interessados. Isso inclui estabelecer “táticas” de empreendedorismo, como fazer com que alguém ganhando um salário maior ensine alguém de salário menor, depois substituir um pelo outro para ter a mesma função por um menor preço. Ou atrasar por 45 dias o pagamento dos fornecedores, e deixar esse dinheiro não-pago rendendo no próprio mercado financeiro.
No relato feito por Ananias, incluem-se grandes mudanças na cultura da empresa: promessas de participação nos lucros, redução na frequência das pesquisas de clima e pressão para ficar além do tempo devido no trabalho. Tudo para espremer os gastos e maximizar os ganhos. Afinal, nessa nova lógica administrativa, o pensamento é a curto prazo, e os únicos objetivos que importam estão na demonstração de resultados exposta para o mercado a cada três meses.
Muito bom! Parabens
Muito didática e importante reportagem, parabéns ao(s) jornalista(s).