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De estacionamento a estacionamento

Por Laila Mouallem (lailaelmouallem@gmail.com) Cinco milhões: esse é o número aproximado de automóveis que atualmente circulam na cidade de São Paulo. Para cada dois habitantes, há um carro. Pensar em São Paulo é pensar na onipresença desse veículo, seja como meio de transporte, símbolo de ascensão social ou local de privacidade. O modelo automobilístico vigora …

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Por Laila Mouallem (lailaelmouallem@gmail.com)

Cinco milhões: esse é o número aproximado de automóveis que atualmente circulam na cidade de São Paulo. Para cada dois habitantes, há um carro. Pensar em São Paulo é pensar na onipresença desse veículo, seja como meio de transporte, símbolo de ascensão social ou local de privacidade. O modelo automobilístico vigora há muito tempo e questioná-lo traz à tona diversas de suas nuances: as relações com outros meios de transporte, os impactos para a cidade, as influências na vida das pessoas. Debater a cultura carrocêntrica é pensar criticamente a cidade, sua ligação com o uso dos carros e as relações sociais que permeiam esse contexto.

O modelo automobilístico

Foi em novembro de 1891 que o primeiro carro motorizado chegou ao Brasil. Seu proprietário foi Alberto Santos Dumont, com dezoito anos na época. Já em 1904 eram registrados 84 carros na Inspetoria de Veículos. Figuras ilustres da sociedade paulista, como Ermelindo Matarazzo e José Martinelli, faziam fila para adquirir o bem. Frente a esse mercado, em 1919 a Ford veio para o país. “O automóvel está destinado a fazer do Brasil uma grande nação”, disse Henry Ford na ocasião.

Em 1925 é a vez da General Motors. Ela se instala no bairro do Ipiranga. “Já a partir da década de 20, a gente vê um urbanismo, pelo menos nas partes centrais [da cidade de São Paulo], levando muito em conta o automóvel como um grande protagonista”, diz Renato Cymbalista, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Segundo ele, naquele momento, a cidade estava “crescendo monstruosamente” fato responsável por congestionar (não apenas com carros) o chamado Triângulo Histórico, região compreendida entre o Largo São Francisco, o Largo São Bento e a Praça da Sé. Nesse contexto, Francisco Prestes Maia, na época Secretário de Viação e Obras Públicas da Prefeitura, começa a desenvolver o Plano de Avenidas. O projeto, apresentado em 1930, traz em sua introdução o seguinte trecho: “Estamos, sob todos os pontos de vista, em um momento decisivo da nossa existência urbana”.

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Fachada da primeira GM no país, localizada na Avenida Presidente Wilson, no bairro do Ipiranga. (Fonte: Reprodução)

Dentre as ideias do projeto, disponível na seção de obras raras da biblioteca da FAU-USP, estava a tentativa de evitar a concentração excessiva no Triângulo e “auxiliar a tendência descentralizadora” da cidade. “Não é propriamente a concentração (motivo e vantagem das cidades) o mal, mas o congestionamento, que é a concentração excessiva, defeituosa e prejudicial”, diz o texto. Nesse sentido, um elemento fundamental do plano era o Perímetro de Irradiação, que visava a distribuir a circulação por meio de ruas secundárias, desviando as correntes de passagem, descentralizando a vida comercial e ampliando o centro. O projeto, assim, articulou a construção de avenidas radiais e de um sistema em Y, formado pelas ruas 23 de Maio e Nove de Julho e pela Av. Tiradentes e ficou conhecido por ser um dos marcos na implementação de um modelo rodoviarista em São Paulo, priorizando o transporte rodoviário em detrimento do transporte sobre trilhos. “Onde houver topografia favorável, e nas direções importantes, devem-se prever artérias rápidas ou semi-rápidas para veículos superficiais”, continua o texto. Os bondes eram tidos como empecilhos à fluidez do trânsito, e a iniciativa da canadense Light (São Paulo Tramway, Light and Power Company) de instalar os subways as primeiras linhas de metrô era considerada precipitada. Repleto de referências às cidades européias e norte-americanas, o projeto explicita um Brasil que buscava atingir padrões de modernização defendidos no exterior, por mais que buscasse fazê-lo a partir de iniciativas nacionais.

O Plano de Avenidas também levou em consideração  o transporte coletivo. Frases como “o automóvel particular deve em regra ceder ao veículo coletivo” e “o automóvel é o principal fator de congestionamento, em movimento ou estacionado” estão presentes na obra. Ainda que o ônibus seja tido como “quase tão embaraçante quanto o bonde”, fala-se de seu aperfeiçoamento, considerando uma cidade com ruas planas e de trânsito rápido algo que o projeto pretendia alcançar. Entretanto, por mais que a sua presença fosse considerada, o papel “mais aconselhável” do ônibus seria como auxiliar, “em serviço local, afluente e suplementar”.

O metrô, por sua vez, não era visto com bons olhos. “O subway descongestiona as ruas na medida em que liberta a superfície dos seus próprios carros, e congestiona-as [com pessoas] na medida em que anima a vida geral da cidade. No balanço dos efeitos, o congestionamento em regra não diminui”, segundo o projeto. Enquanto o metrô se via necessário perante as ruas estreitas e a topografia acidentada, o Plano de Avenidas se propunha a resolver essas questões e instalar avenidas que promovessem o trânsito rápido. “O que fica adiado é o subway prematuro”, diz o texto. Entretanto, não se escondia a motivação econômica deste posicionamento: o documento considera o projeto do subway de “remuneração duvidosa”. Para aqueles que atuaram na elaboração do plano, o projeto da Light estava “certo como transporte”, mas não “como urbanismo”. Somente em 1974 a primeira linha do Metrô de São Paulo foi inaugurada, com sete estações.

Há controvérsias em relação às reais motivações e aos impactos do Plano de Avenidas. Para Renato, é um projeto injustiçado: “O Plano de Avenidas é tido como se fosse o grande modelo em que a cidade foi rendida ao automóvel. Eu discordo. Se você pega todos os desenhos do Prestes Maia, ele acreditava, apostava no carro, mas sempre levando em conta transporte coletivo e grandes calçadas. A aposta dele era a de convivência entre diferentes modais. Ele não projetou uma via expressa tipo Marginal Pinheiros, que é só carro, carro”. Segundo ele, as obras foram feitas para dar maior fluidez ao tráfego de carros, mas também para expandir a cidade de São Paulo que, na época, não tinha avenidas. “Ele está propondo a avenida como uma grande vitrine da modernidade da cidade da qual o carro fazia parte”, diz. “Todas as cidades do Brasil foram vendidas para o carro, mas só a cidade de São Paulo teve o Plano de Avenidas. Se não tivesse Plano de Avenidas, a cidade estaria igualmente vendida para o carro.”

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O Plano de Avenidas está disponível na seção de obras raras da FAU. (Fonte: Reprodução)

Alexandre Delijaicov, também professor da FAU e atualmente um dos coordenadores do Grupo Metrópole Fluvial, ao falar sobre o Plano de Avenidas, ressalta a problemática de os rios terem sido emparedados por rodovias urbanas. “O primordial e o principal logradouro público da humanidade são os rios”, diz. O direito à cidade, segundo ele, se relaciona ao direito à infraestrutura e, nesse sentido, a infraestrutura fluvial se destaca. Além de ser formada por ruas e avenidas, uma cidade fluvial possui canais e lagos em sua composição, garantindo a qualidade das estruturas ambientais urbanas e o conforto propiciado por elas. “Não é apenas uma cidade ao lado de um rio.”

Ele salienta que pior que a transformação do rios em canais de esgoto a céu aberto foi o impacto das rodovias. “Rodovia urbana é uma prova concreta da nossa injustiça social, porque você simplesmente faz com que haja altas velocidades no tecido urbano, promovendo essa guerra civil dissimulada, que é o trânsito de São Paulo”, ele diz. “Não existe o tempo do pedestre, do pedestre idoso.”

Em 1956, começa-se a falar em uma implantação definitiva da indústria automobilística no Brasil. Isso se relaciona diretamente à criação do GEIA Grupo Executivo da Indústria Automobilística , ligado ao plano de metas do então presidente Juscelino Kubitschek. De acordo com o artigo 12º do Decreto nº 39.412, de junho de 1956, os incentivos à indústria automobilística seriam preferencialmente dirigidos aos projetos de iniciativa privada, “abstendo-se o Governo de estimular a instituição de novas entidades estatais, dedicadas à atividades similares”. E, de fato, foi o que ocorreu: a entrada de diversas fábricas do setor no país foram facilitadas e estas se instalaram no ABC Paulista. Em 28 de setembro de 1956, por exemplo, foi inaugurada a primeira fábrica de caminhões com o motor nacional da Mercedez-Benz, em São Bernardo do Campo. Segundo o artigo 2º do mesmo decreto, os equipamentos da Indústria Automobilística Brasileira eram “considerados da mais alta essencialidade para o desenvolvimento econômico do País”.

Segundo Renato, é nos anos 1960 que fica claro que o carro começa a “roubar” o espaço de outros modais, como o ônibus, as redes de transporte coletivo. O Brasil chega ao final da década com uma população de 65.755.000 habitantes e 321.150 veículos produzidos desde a implantação deste parque industrial. É a partir desse período, portanto, que as cidades fazem cada vez mais escolhas que priorizam o automóvel, introduzindo mais faixas de rodagem, menos semáforos, mais vias expressas, minhocões, vias elevadas, marginais, canalização de córregos com avenidas e empresas destinadas exclusivamente à fluidez do tráfego.

“Em seguida, você vai criando uma cidade que só é compatível e bem apreensível para quem tem automóvel”, diz Jaime Tadeu Oliva, docente do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) e autor da tese A cidade sob quatro rodas. Conforme a cidade foi se dispersando exponencialmente, ele explica, um regime de distâncias inadequado foi estabelecido, o que estimulou cada vez mais o uso dos carros.

Cultura anti-urbana

“Cidade é uma forma social de vivermos juntos e é uma forma social que tem como essência o fato de diminuirmos as distâncias físicas entre nós”, diz Jaime. Segundo ele, ela tem a sua grande força pautada na multiplicação das relações sociais: as pessoas vivem juntas porque, de alguma maneira, entendem que há vantagens nisso.

Esse potencial multiplicador da cidade, no entanto, pode ser sabotado quando obstáculos ambientes fechados, condomínios fechados, shoppings são criados para a concretização dessas relações. Esses empecilhos não se dão apenas no plano físico: espaços públicos discriminatórios à mulher, aos imigrantes, aos pobres, aos negros ou à comunidade LGBT também são agentes atuantes nesse distanciamento. À medida que isso se torna o ideal de vida na cidade e passa a ser feito deliberadamente, constrói-se uma cultura anti-urbana, na qual a lógica da do ambiente urbano é violada.

“O carro, de certa maneira, obriga as cidades a modificarem seu regime de distâncias”, diz Jaime. A partir do momento em que a cidade organiza sua circulação com base em um modelo predominantemente automobilístico e este se torna o ideal de vida nos espaços urbanos, ele passa a contribuir para a consolidação da cultura anti-urbana. Nesse sentido, o veículo pode ajudar a produzir uma cidade em que se cria o fenômeno que ele chama de “retroação negativa”: a causa inicial de um problema é também responsável por sua reprodução. “Eu não quero ter automóvel, mas todo mundo investe nisso e só me resta também ter automóvel”, exemplifica. Trata-se de um círculo vicioso. O uso do carro passa a ser justificado pelo seus usuários a partir da estrutura da cidade que, por si só, é resultado do próprio modelo automobilístico.

No que diz respeito à infraestrutura, a mobilidade urbana está necessariamente subordinada à ideia de acessibilidade esta, em relação aos recursos urbanos coletivos, aos espaços e bens públicos e aos serviços. “Acessibilidade não é dada só pelos recursos de mobilidade, mas pelo desenho da cidade. As cidades podem ser mais compactas”, diz Jaime. A menor incidência de bairros especializados em moradia ou comércio, por exemplo, seria um produto da compacidade. Perante uma cidade mais compacta e diversa, a mobilidade urbana o recurso técnico da acessibilidade seria mais eficiente. “A região central de São Paulo, por exemplo, é praticamente uma região fantasma. Por que aquela não é uma região de uso muito mais intenso? De moradias? Isso evitaria que continuássemos a nos expandir para as periferias, preenchendo o que está ocioso e promovendo um repensar da cidade que se expandiu desnecessariamente.”

Esse seria um processo longo, que desenvolveria uma “cultura verdadeiramente urbana”, nas palavras de Jaime, e que favoreceria a mobilidade urbana. De qualquer maneira, o professor considera impensável uma cidade que não tenha carros “considerando a sociedade que somos, o exercício do espírito individual e a força desse bem de consumo”. A problemática está na presença de um modelo automobilístico de fato: ele cria uma “rede” que funciona integralmente baseada no automóvel. São Paulo, nesse sentido, é como um estereótipo: uma rede de condomínios fechados articulados a shoppings. “Há gente que vive só nesse circuito de garagem a garagem, de estacionamento a estacionamento. Não põe os pés na rua, não tem contato com o resto da cidade; tem toda a sua sociabilidade definida dentro dessa rede, em espaços fechados tidos como espaços seguros.”

Tal conceito de segurança, em essência, é outro fator a ser questionado. A escritora Jane Jacobs, na obra Morte e vida nas grandes cidades, trata a segurança urbana a partir de uma perspectiva que foge ao senso comum. Segundo ela, “o principal atributo de um distrito urbano próspero é que as pessoas se sintam seguras e protegidas na rua em meio a tantos desconhecidos”, defendendo que a manutenção da segurança não é feita pela polícia, mas “pela rede intrincada, quase inconsciente, de controles e padrões de comportamento espontâneos presentes em meio ao próprio povo”. Nesse sentido, sua teoria vai de encontro à configuração dos espaços promovida pelo modelo automobilístico já que esta seria a rede de ambientes fechados, que não promove o contato interpessoal.

Blindagem ideológica

Tem muitas cidades automobilizadas, mas nada que se aproxime a São Paulo. Nós não sabemos disso, não temos essa ideia”, diz Jaime. A tese defendida por ele gira em torno da ideia de que o automóvel é naturalizado no ambiente urbano. Segundo o professor, o constante uso do carro é muitas vezes justificado pela premissa de que obtê-lo seria o exercício de um direito individual, considerando que o indivíduo tenha recursos para tal, numa linha de raciocínio meritocrática. A partir disso, culpam-se os sistemas de transporte público pelo fato de o carro ser considerado a melhor opção, caracterizando-os como ruins e ineficientes.

Antes de tudo, existe a necessidade de “uma primeira remoção da blindagem ideológica que cerca a questão do automóvel e que o mantém como algo ligado às questões técnicas e funcionais ou então como um dado cultural e social associado a comportamentos e posições de status”, escreveu Jaime. Nesse sentido, associar o carro a um bem de consumo que confere status a quem o possui pode ser visto como um modo de naturalizar sua presença. Segundo o professor, esse uso exagerado do carro se dá, em suma, porque a cidade não é cultivada. “Se nós cultivássemos a vida urbana como um valor mais razoável, nós questionaríamos mais o uso do automóvel e desfaríamos também essa blindagem ideológica que o protege de qualquer discussão”, afirma.

Renato, por sua vez, diz que ao assumir o carro como uma maneira básica de deslocamento, um tipo específico de cultura espacial na cidade está sendo construído. “Você já está induzindo as pessoas a usarem grandes equipamentos onde você possa parar o carro e não utilizar o comércio de vizinhança”, diz. Ao vivenciar a cidade a pé, em contrapartida, fomenta-se uma cultura da rua e do pedestre, modificando a relação entre os cidadãos e o território que ocupam cotidianamente.

Nesse sentido, Jaime afirma que as cidades pressupõem uma trama relacional que é minada pela presença exacerbada do automóvel. Tóquio, Paris e Buenos Aires, segundo ele, seriam exemplos de cidades em que ter um carro é algo inconveniente. A funcionalidade do carro, contudo, depende de onde ele está instalado. Ainda que na cidade seja inadequado, ele é rápido e apropriado para grandes distâncias, principalmente em regiões suburbanas e na zona rural. “Aí, então, o automóvel é eficaz, porque quanto mais você espalhar a população e desdensificar [os espaços], não dá para ficar organizando transporte coletivo para um núcleo residencial de três ou quatro mil habitantes”, diz. “Na cidade ele é desvantajoso”.

Rompendo o mito

A São Paulo dos últimos anos tem sido cenário de algumas transformações que vão de encontro a essa cultura. “É muito recente. De uns quatro, cinco anos para cá, a gente rompeu com o mito de que não se mexe com carro”, diz Renato. Segundo o professor, interferir nas velocidades e reduzir o leito carroçável, adicionando faixas de ônibus, ciclofaixas e ciclovias são modificações que atuam nesse sentido.

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Imagem do documentário Bikes vs. Cars, que trata da relação entre bicicletas e o modelo automobilístico nas cidades. (Imagem: Marek Wieser/WG Film)

Em 20 de julho de 2015, passou a valer a redução da velocidade máxima permitida nas vias da cidade de São Paulo, com destaque para as marginais Pinheiros e Tietê. A medida visava a diminuir a quantidade e a severidade dos acidentes de trânsito e, assim, igualar os índices paulistanos aos de países desenvolvidos. Aderindo à “Década de Ação pela Segurança no Trânsito”, movimento lançado pela ONU em 2009, a cidade de São Paulo se comprometeu a reduzir em 50% o número de mortes no trânsito em um período de dez anos.

De acordo com o Relatório sobre a Redução das Velocidades, feito pela CET em 2015, a menor velocidade do veículo pode evitar o acidente ou abrandar os danos físicos e materiais da maioria dos acidentes de trânsito. O documento diz que, a partir de 30 km/h, qualquer acréscimo de velocidade tem seu efeito exponencialmente ampliado sobre a letalidade dos acidentes. “Assim, se um impacto a 30 km/h tem menos de 10% de chance de matar o pedestre, a 40 km/h essa chance sobe para cerca de 20% e a 50 km/h se aproxima dos 50% de chance, chegando a 100% para qualquer velocidade acima dos 80 km/h.”

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(Fonte: Floeden, Mclean, Moore e Ponte, 1997 – Travelling Speed and Risk of Crash Involvement; Relatório sobre a Redução das Velocidades, CET, 2015.)

Dos 25.508 acidentes com vítimas ocorridos em todo o ano de 2013, 1.275 aconteceram nas marginais o que equivale a 4,9% do total de acidentes na cidade. Em relação aos acidentes de trânsito com mortes, dos 1.114, 56 ocorreram nessas vias o correspondente a 5% dos acidentes fatais. O relatório salienta a maior incidência desses acidentes no período noturno. “A maior incidência de acidentes fatais coincide com os horários de menor média de lentidão nestas duas vias, ou seja, nos horários em que os motoristas conseguem desenvolver maiores velocidades.”

Sem prejuízos graves — a não ser a diferença de poucos minutos entre as viagens de hoje em dia e as de anos atrás —, o programa chegou até mesmo a diminuir o trânsito. Segundo Renato, as menores velocidades permitem que o espaço entre os automóveis diminua e, com isso, mais carros caibam nas ruas. “Diminuiu-se a velocidade e não aumentou o trânsito. Você está racionalizando o uso do carro.” O Programa de Redução de Velocidades contou com a implantação das “Áreas 40” — bolsões criados em regiões de grande concentração de pedestres onde a máxima velocidade permitida é de 40 km/h. A iniciativa começou a ser implantada em outubro de 2013 e já abrange todas as regiões da cidade. No caso das marginais, a proposta exibida no relatório foi de reduzir de 10 km/h a 20 km/h a velocidade máxima das pistas expressas, vias centrais e vias locais que antes chegavam a 90 km/h e 70 km/h. Ainda que as velocidades continuem altas, após um ano o programa foi responsável reduzir o número de acidentes em quase 40%.

O projeto resultou em polêmicas entre os cidadãos, principalmente aqueles que passam pelas marginais em sua rota cotidiana. O relatório, em sua conclusão, responde aos questionamentos comparando a mudança nas velocidades à feita há alguns anos, em relação à obrigatoriedade do cinto de segurança. Inicialmente alvo de reações negativas, hoje a aceitação gira em torno dos 100%, perante os bons resultados atingidos. “Esperamos que os efeitos provocados pela redução das velocidades máximas permitidas nas vias urbanas nos aproximem da sociedade que almejamos, com números cada vez mais baixos de mortos e feridos no trânsito.”

Além da alteração nas velocidades, mudanças como o aumento no número de faixas de ônibus se fizeram presentes na cidade nos últimos anos. De acordo com a Pesquisa de Monitoração da Mobilidade de 2014, também feita pela CET, 94% dos usuários entrevistados julgaram a iniciativa de implantação como boa ou ótima, sendo que 25% dos que responderam à pesquisa migraram de algum veículo para o ônibus após a mudança. Os condutores de ônibus são unânimes na aprovação e afirmam que as condições de trabalho da categoria melhoraram eles ganharam qualidade de vida, com menos estresse e mais tempo para descanso e refeições, segundo o documento. Ainda que apontem problemas de infraestrutura como a largura dos ônibus dentro de faixas estreitas, os espaços para conversões e a invasão de outros usuários nos corredores , eles esperam que a ampliação do projeto continue. Quanto aos condutores de automóveis, a falta de conforto no ônibus é utilizada como justificativa para que não migrem para o transporte em questão. Já 67% dos motociclistas entrevistados aprovam a implantação das faixas, apesar de o espaço entre os carros ter diminuído com a medida.

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Avenida Nove de Julho em um sábado, por volta das 11 h da manhã. (Foto: Laila Mouallem)

A atenção ao transporte via bicicleta também aumentou. Em 2013, houve 713 acidentes envolvendo ciclistas, sendo 35 deles fatais. Até aquele ano, a infraestrutura cicloviária existente totalizava 63 km. Um programa de ampliação das vias para bicicletas foi iniciado, com a meta de adicionar 400 km à estrutura já existente até 2015. Por mais que a meta tenha se estendido para 2016, São Paulo hoje conta com 341,7 km de vias exclusivas para ciclistas o que reduz em muito a possibilidade de acidentes. Essas transformações têm sido altamente questionadas, com críticas à qualidade das vias. Mesmo assim, Renato diz que é preciso aceitar que o que se tem feito é o modelo possível, por mais que precisemos melhorar. “Eu não acho que está bom, mas está melhor que há cinco anos em todos os sentidos. A gente tem que melhorar a partir do tem”, ele afirma.

Jaime também vê a mudança com bons olhos. “Mesmo que haja muita resistência, que não vingue imediatamente, isso que está acontecendo agora é uma novidade muito grande, partindo do poder público ou sendo incorporado por ele”, afirma. Ele salienta a existência de órgãos voltados para acomodar o automóvel na cidade e adaptá-la para a sua presença, como a CET e a Secretaria de Obras que, junto a outros fatores, foram criadas em prol da naturalização do automóvel. “Independentemente de qualquer coisa, não é possível que tenhamos um modelo automobilístico sem nunca ser questionado, sem nunca se verificar o custo absurdo que isso é para a cidade.”

Perspectivas

Sobre os rumos que a mobilidade urbana deve seguir daqui para frente, Alexandre vê como primordial a presença de calçadas dignas para circulação e nisso estão inclusas ruas iluminadas, com pavimentação lisa e antiderrapante. O veículo urbano não motorizado é o outro caminho a ser percorrido: Alexandre vê nos corredores de ônibus, por exemplo, a base para o desenvolvimento de bondes elétricos. O professor também fala sobre reintroduzir a navegação fluvial meio trabalhado pelo projeto do Hidroanel Metropolitano de São Paulo, em desenvolvimento pelo Grupo Metrópole Fluvial. Em sua dissertação, Os rios e o desenho da cidade, Alexandre coloca o transporte hidro-ferroviário como agente na redução do tráfego pesado de caminhões na cidade.

Além disso, segundo o texto, o caráter de vias expressas “verdadeiras auto-estradas” marginais aos canais dos rios elimina as oportunidades de integração urbanística entre os rios e o desenho da cidade. Não há a possibilidade de o pedestre se aproximar da beira do rio;  assim, o ambiente fluvial urbano torna-se paisagem-cenário para aqueles que passam a altas velocidades. “Com os vidros fechados, uma paisagem bidimensional para um filme tridimensional.”

A cidade, sua acessibilidade e mobilidade urbana são assuntos complexos, permeados pelas mais diversas facetas. É certo, porém, que eles concernem aos cidadãos de forma direta, por mais que passem despercebidos na agitação cotidiana. Uma cidade interessante é composta pela convivência com o diferente e isso em muito é proporcionado pelo uso do transporte coletivo, pela vida pedestre e de bicicleta. Segundo Jaime, é necessário atuar duplamente na transformação do modelo que ainda vigora: “No plano ideológico, atacando um discurso que naturalizou essa cidade como uma cidade que afasta ao invés de aproximar; e no campo da ação, direcionando as obras e as políticas à compactação da cidade e à diminuição da automobilização”.

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