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Debaixo da lona

Na fase da vida em que não somos filhos pequenos ou temos filhos pequenos, o circo tem lugar de memória. Mas sinto que hoje um maior público reserva a ele esse lugar.  As crianças parecem distrair-se mais com tablets, com o YouTube. O circo soa como uma diversão à moda antiga. Mas a memória aos …

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Na fase da vida em que não somos filhos pequenos ou temos filhos pequenos, o circo tem lugar de memória. Mas sinto que hoje um maior público reserva a ele esse lugar.  As crianças parecem distrair-se mais com tablets, com o YouTube. O circo soa como uma diversão à moda antiga.

Mas a memória aos poucos se esmaece, e nos deixa dúvidas do que de fato era essa experiência e de como fica sua presença no mundo das redes.

Muitas vezes fantasiamos a respeito do circo. Convivemos com estigmas como “fugir com o circo” e podemos enxergá-lo com certo romantismo. Não é raro que pensemos que o circo seja uma pequena sociedade mais igualitária internamente, mais comunitária.

Outras vezes, lembramo-nos da questão do maltrato aos animais, ou na estética dos palhaços tão reaproveitada pelos filmes de terror. Nesse caso o mistério do circo parece ser mais sombrio do que gostaríamos.

Depois de 10 anos – ou até mais – retornei para ver, com olhos menos suscetíveis à magia, do que se tratava a ocasião. Coloquei-me novamente debaixo da lona. E lembrei-me da acolhedora e instigante sensação de estar dentro de algo que pode ser desfeito. Uma coisa grande que se projeta acima e aos lados; nos encobre. Versão muito maior daquelas cabaninhas de lençol que as crianças normalmente fazem. 

Ficou claro que eu não era exatamente o público esperado. Logo que cheguei, notei que a frase emblemática de um dos palhaços era um bom exemplo do porquê disso: “Tchau, tchau, criança!”. Ele a dizia a todos que saiam da sessão anterior, em tom de gás hélio – justamente a substância que os balões que vendia continham. Percebi que, realmente, todos os núcleos de pessoas que passavam por ele tinham, no mínimo, uma criança. 

Inicialmente fiquei um pouco contrariada com o preço dos ingressos – a meia-entrada era trinta reais na área central. Pelo que eu imaginava, esse tipo de entretenimento seria mais acessível. 

Mais tarde me foi explicado que o valor dos ingressos não depende só do que é oferecido – a sessão em si -, mas também de onde o circo está. Quando instalado em áreas mais valorizadas das cidades, eles aumentam o preço. Normalmente ir ao circo custa menos que isso por pessoa.

O espectador se acomoda. Antes dos artistas povoarem o palco, este permanece renovando sua energia para dali a pouco. Enquanto isso, o espectador pode comprar doces e brinquedos. Uma locução dá avisos iniciais e deseja uma boa sessão ao público, com um sotaque entre o espanhol e o italiano. 

Ao início da apresentação as decorações, ora brilhantes, ora felpudas, são iluminadas por luzes coloridas. É uma estética muito própria na qual fica suspenso o princípio do “menos é mais”. Por causa disso o mais pode ser mais sem medo! E ao sentir isso, a plateia passa a buscar mais daquilo que, em outras situações, seria “exagero”. Mas ali são tão cabíveis quanto uma luva no frio; um nariz vermelho em um palhaço.

Entram e saem dançarinas, malabaristas, os próprios palhaços, mágicos, acrobatas… Voltam as dançarinas… Nessa evolução a sessão vai se desenrolando. Em algum ponto da playlist eclética – que ia de Rush a Evanescence, passando por Lindsay Stirling e Anitta – uma questão pipoca em minha cabeça. 

A relação dos circenses com o momento é bastante interessante. Despenderam muitos outros momentos de suas vidas praticando aquele número, mas o estalo daquela vez não pode ser desprezível. Penso no homem que pulava por dentro de um aro de facas. Sim, talvez as facas não sejam as mais afiadas do planeta. Mas conferem algum risco ao artista. Há a possibilidade constante de as coisas darem errado.

É tudo muito real. O espetáculo todo se dá em cima do fazer, na hora. E se parece difícil que as coisas saiam do ideal, não é tanto assim. O malabarista do monociclo não estava em boa fase para empilhar xícaras sobre sua cabeça. As deixou cair.

O palhaço, a cada sessão, avalia a plateia para fazer a interação mais adequada. Por mais que uns ainda fiquem mais nervosos que outros, que uns dediquem mais tempo que outros para ensaiar os seus números, que uns inovem mais que outros, todos estão lidando com as variáveis do ao vivo. Sejam as consequências do erro mais ou menos drásticas, existem. Não é um filme. 

O público se envolve com esse fator da “mão na massa”, com essa saudável tensão. Sente-se fazendo parte de algo verdadeiro que se constrói diante de seus olhos, não importa quantas vezes o circo se desmonte e monte.

Durante o intervalo procurei um palhaço para entrevistar ao fim da sessão. Ele estava vendendo batatas fritas. Vários outros membros do circo também vendiam produtos. A princípio parecia cooperação, algo que tendia ao estigma da “sociedade comunitária”.

Esse palhaço era o Palhaço Panqueca, ou para os mais formais, Marlon Antonio Pires Miranda. Ele foi quem me encontrou quando saiu do palco. 

Contou-me que, na verdade, recebem participação daquilo que venderem, no seu caso, as batatas. Enquanto isso, apontou para seu pai, como exemplo daqueles que continuavam vendendo. A relação com o circo é tradicional na família de Marlon. Seu pai, o Palhaço Chumbrega, Athos Silva Miranda, hoje tem quase oitenta anos e pertence à terceira geração de artistas de circo. 

Panqueca chegou a receber bolsa em uma faculdade de Direito em Belo Horizonte, durante uma breve fase em que estavam afastados, ele e seu pai, do circo. Mas bastou aparecer uma oportunidade para ingressar no Circo Stankowich para desistir e retornar à ocupação anterior. Ele diz nunca ter entrado para o circo, mas sim ter nascido nele. Hoje não se vê fazendo outra coisa e ele diz que provavelmente nem existiria se não fosse o circo. Seu filho, inevitavelmente, também já convive com picadeiro. Panqueca diz que ele parece ter afinidade com o meio – seguindo a família -, o que percebe ao observar o estilo das brincadeiras do pequeno. 

Panqueca em número com convidados da plateia [Imagem: Ana Gabriela Zangari]
Hoje existe uma lei que assegura a matrícula de filhos de artistas circenses, como me informou Panqueca. Isso se justifica pela demanda de troca de região com, relativamente, alta frequência. Desde 1978 essa regulamentação já estava em vigor, mas valia apenas para escolas públicas e, mesmo nesse caso, funcionava mediante apresentação do certificado de escola de origem. A necessidade desse documento dificultava o ingresso desses estudantes.

Visando eliminar a recusa arbitrária do documento e os entraves burocráticos, o deputado Tiririca teve um projeto de lei aprovado em 2012. Com ela o aluno pode se matricular em instituições de ensino, mesmo que não disponha de certificado ou documento equivalente da instituição anterior. Fica estabelecido que é encargo da escola examinar o grau de desenvolvimento do estudante e desenvolver estratégias pedagógicas adequadas para a sua aprendizagem.

Essa é uma medida para garantir os direitos de quem vive com o circo fora dele. Àqueles que desejam ingressar nesse mundo, Panqueca diz que hoje a entrada é mais flexível do que no passado. Normalmente os processos para isso podem acontecer por meio de audições ou vídeos que demonstrem a habilidade do candidato. Segundo ele, essas seleções não são tão raras e qualquer pessoa que souber fazer um número de interesse do circo tem chances. Para aqueles que de fato desejam estar lá, a formação oferecida por escolas de circo pode ser efetiva. E muitas vezes o é.

Uma exceção a isso são os circos mais tradicionais, nos quais a seleção para o ingresso na equipe é mais rígido e há a opção frequente por artistas que possuem vínculo familiar com a instituição. Se baseando no modelo de uma “grande família circense”, esse critério de seleção é um costume antigo, e, segundo Panqueca, é adotado por aqueles que não souberam se reestruturar ao longo do tempo. “Mas hoje há uma dominação muito grande daqueles que não são tradicionais”. 

Momento de clímax com seis malabares [Imagem: Ana Gabriela Zangari]
Algo que claramente exigiu uma reestruturação dos circos foi a questão da proibição dos animais no picadeiro. A lei responsável por isso em São Paulo foi a n° 11.977, implementada em 2005. Depois dela o circo no Brasil reduziu seus custos, uma vez que manter animais era algo muito caro, mas isso foi acompanhado por uma grave baixa de público, que durou por cerca de dois anos. 

Quando o Cirque du Soleil chegou ao Brasil, muitos circos conseguiram enxergar uma alternativa ao formato anterior dos espetáculos. Segundo Panqueca, o Circo dos Sonhos, que está em  Itaquera, é um deles. “É muito bonito, não tem tanto a apresentar, mas o povo enche o olho de ver”. Mas ele pontua que essa possibilidade de reprodução tem limites: “o público brasileiro quer assistir um circo barato achando que é o Cirque du Soleil”. A caráter de curiosidade, da última vez que a companhia esteve em São Paulo, no fim de 2017, o preço dos ingressos variou entre R$ 450,00 e R$ 125,00 (meia entrada).

Alguns encararam a proibição como algo natural da modernização do circo, reconhecendo seu “pé no passado”, mas concebendo que deva haver alterações que levem a mentalidade do presente em conta. Mas por uma esmagadora parcela da população, foi como avanço em direção à defesa dos animais que a medida foi vista.

O caso pareceu estar resolvido, com os animais fora das mãos dos vilões

Muitas pessoas apenas engavetaram o ativismo. Treze anos se passaram e pouco se falou sobre o estágio a que os animais seguiram. Para onde foram? Como ficaram? 

Panqueca não tem opinião formada sobre animais no circo. Conta que os zoológicos paulistas, que estavam falindo, os incorporaram em uma ação conjunta com ONGs e Polícia Federal. E aí veio a consequência: “noventa e cinco por cento dos animais de circo que foram para zoológico morreram.”

A manutenção dos animais no picadeiro não era barata. Elefantes, tigres, hipopótamos. Considerando a condição dos zoológicos à época e o resultado do ato, é pouco provável que neles os animais tenham recebido mais atenção, ou que tenham sido mais bem tratados.

O palhaço comenta que havia circos que cometiam maus-tratos, mas que não eram maioria. E ele teoriza um motivo simples para tanto: “Você sabe quanto custa para comprar um elefante? Meio milhão de dólares… Você tem coragem de maltratar meio milhão de dólares?” 

Na sua opinião, além dos animais, quem saiu perdendo foi o público, que, hoje, raramente tem algum tipo de contato com girafas, ursos, tigres, elefantes.

Outra perda para o público é a de grandes artistas circenses que vão trabalhar no exterior: “os melhores do Brasil não estão no Brasil”. Sobre o mercado desses profissionais – nacional e internacionalmente -, Panqueca estabelece uma comparação. “O artista de circo é igual ao jogador de futebol: vai recebendo propostas e, dependendo, muda de circo”. Ele, por exemplo, depois de onze anos trabalhando no Circo Stankowich, está há seis meses no Di Napoli.

Os saltimbancos recebem semanalmente. A maior parte dos circos paga seus artistas no domingo, aproveitando a bilheteria forte desse dia.“Tem gente que chega a receber R$1200,00, R$1400,00”. 

A quantia depende de algumas variáveis como a valorização do artista, a sua função e a já citada participação na venda de alguns produtos. Ou seja, existe diferença salarial, o que, por si, já relativiza a imagem do circo como organização coletiva. 

Entre os artistas há freelancers, aqueles que não são exatamente do staff, mas que fazem apresentações quando estão disponíveis – como é o caso de um malabarista que participou no domingo em que assisti.

Embora morem  no circo, quem trabalha lá tem horário para entrar. Este se baseia na hora da apresentação. Pelo resto do tempo, podem se ocupar com outras coisas como visitar parentes, ou ir ao shopping. 

O circo tem um dono, é uma empresa. O do próprio Di Napoli não mora no local, e nem está presente todos os dias. 

Há circos que viajam para mais longe e outros que nem saem de São Paulo. Então a rebeldia contida no ideal de “fugir com o circo” pode não corresponder à expectativa, de forma que esses rebeldes, se ainda existem, talvez devam buscar outro sonho catártico. 

“Circo” passa a impressão de uma estrutura horizontal de trabalho. A própria palavra do latim (“circus”) – que originou “circo” – gerou “circunferência” e “círculo”. Essa forma remete a relações mais equilibradas de poder entre os envolvidos. Pode-se pensar nas que se propõem em rodas de cerimônias indígenas ou em aulas de professores que, por exemplo, valorizam a discussão entre os alunos.

Embora essa organização não seja exatamente a que se desenrola no circo, – as relações de trabalho se parecem com as de negócios mais comuns – há uma característica rara nele. É o princípio que parece guiar a formulação de todos os números. Esse traço é o do lúdico profundo, no sentido da curiosidade e do experimento criativo, marcantes no pensamento infantil. 

Acrobacia em três etapas [Imagem: Ana Gabriela Zangari]
O desenvolvimento de cada quadro segue um fio de especulações que vão se concretizando no ato. “E se uma pessoa entrasse nesse globo? E se fosse suspenso? E se ela conseguisse sair dele enquanto ainda está suspenso?!”, “e se esse malabarista pegasse mais um disco? Mais outro? E mais outro?!”, “E se essas duas mulheres pulassem na catapulta e aquele homem fosse lançado quase no teto?!”

A progressão imaginativa ir se realizando no decorrer do espetáculo é o que, por muitas vezes, rouba olhares brilhantes e incrédulos de cada um na plateia. É difícil que o espectador não seja tomado por uma espécie de regressão à época em que o pensamento se dedicava mais a fantasiar. Por isso penso que, posta ao final da sessão, a fala daquele palhaço, “tchau tchau, criança!”, não se direcionava a um público tão restrito assim.

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