É como ser palmeirense e assistir um jogo na arquibancada da Gaviões. É ser colorado e assistir um jogo na arena do Grêmio. É ser considerado torcida adversária em qualquer estádio, em qualquer ocasião. No momento em que o racismo e o machismo são ferrenhamente combatidos no ambiente futebolístico, a homofobia enraizada nos estádios passa a ser uma pauta.
O conservadorismo, inerente à boa parcela do público do futebol, propicia a utilização de ofensas homofóbicas como forma de ataque a torcedores rivais, árbitros e jogadores. Essa prática, banalizada por décadas, afasta até hoje membros da comunidade LGBTQIA+ dos estádios de futebol. Contudo, o avanço da luta contra a homofobia vem combatendo este cenário.
Acompanhei Guilherme, homossexual e torcedor do Corinthians, em jogo diante do Flamengo disputado na arena do time paulista. Nos encontramos no Brás – de lá, fomos para Corinthians-Itaquera, estação de metrô próxima ao estádio. Faltava cerca de uma hora para iniciar a partida quando transitamos a linha vermelha, portanto, nos guiamos pelo fluxo de torcedores.
Guilherme estava acanhado. Segundo ele, não pelos cantos da torcida, que até o momento, só havia proferido os famosos “todo poderoso timão” e “esse jogo teremos que ganhar” – mas sim, por não saber como reagir a reportagem. Contudo, aos poucos, durante o caminho, o fanático torcedor do Corinthians passou a sentir-se à vontade.
Chegamos ao estádio. O clima era de jogo grande, torcedores ansiosos. Perguntei a Guilherme se ele sentia-se plenamente à vontade ali – ele prontamente respondeu “não”, e então completou, “eu amo vir assistir meu time, e nada vai mudar isso, mas eu não tenho liberdade para ser eu aqui, eu tenho que ser outra pessoa”.
Algumas pessoas, como o tetracampeão Vampeta, consideram as ofensas homofóbicas como “brincadeira”. O ex-jogador do Corinthians, responsável por apelidar o São Paulo de “bambi”, afirma que este tipo de atitude faz parte do futebol. Essa visão, no entanto, vem sendo repudiada pelas principais entidades futebolísticas nos últimos anos.
Durante as eliminatórias da Copa de 2018, a Fifa (Federação Internacional de futebol) distribuiu multas para federações sul-americanas devido a ofensas homofóbicas proferidas pelas arquibancadas. Chile, Argentina, México, Peru, Uruguai e Brasil foram denunciados à entidade internacional pelo “mal comportamento” de seus torcedores.
Adentramos o estádio cerca de 20 minutos antes da bola rolar, ficamos em cadeiras próximas às áreas mais agitadas da Arena. Os times entraram em campo. Por alguns instantes, até me esqueci que estava ali para fazer uma reportagem devido ao bom clima do jogo. Porém, a torcida corintiana, logo, fez o favor de me lembrar a pauta que eu deveria retratar.
“Diego Viado, Diego Viado…”, cantou a torcida do Corinthians, se referindo ao meio campista do Flamengo. Eu e Guilherme nos olhamos. “Estava demorando”, ele comentou. Perguntei o que ele sentia ao ouvir aquilo: “eu me sinto mal, claro. Ele não é gay, mas se fosse, tem algum problema?”
Algumas pessoas que estavam próximas perceberam nossa conversa e passaram a nos olhar de maneira diferente, talvez curiosa. O jogo começou e os torcedores focaram na partida. Os cantos mudaram de tom, passaram a ter o intuito de incentivar o time alvinegro.
Desde que a Fifa passou a punir este tipo de ato, dos 15 países multados, 12 são latino-americanos – um retrato social de um continente atrasado não só na maneira de jogar futebol, mas também na maneira de tratar a diversidade. O Brasil é o sexto país que mais pagou multas por homofobia. O líder do ranking é o Chile, que já cedeu cerca 794 mil reais à federação.
O valor, se comparado aos montantes movimentados pelo futebol, pode ser considerado baixo. Contudo, essa ação, movida pela maior entidade do futebol internacional, é um pontapé inicial visando tornar o ambiente futebolístico menos agressivo à comunidade LGBTQIA+.
Alguns minutos de jogo se passaram. O Corinthians chegou ao ataque, porém, errou o alvo – cedendo um tiro de meta para Diego Alves, goleiro do Flamengo. Naquela altura, eu já sabia o que iria acontecer, todos sabiam. A torcida puxou: “OOOOOH BICHA”. Talvez, o grito homofóbico mais comum entre os estádios sul-americanos.
Sequer precisei pedir o feedback do meu companheiro corintiano desta vez. Guilherme balançou a cabeça negativamente e comentou: “esse é muito comum mesmo. Todo mundo faz, sinto que nem todos fazem para ofender, está tão enraizado que eles acham normal e não pensam o que realmente significa”.
Esse grito se repetiria cerca de 10 vezes na partida. Durante estes momentos, me ative às reações das outras pessoas – a maioria delas acompanhou o coro e pareceu se divertir com aquilo. Houve, porém, alguns indivíduos que não repetiram a ofensa em nenhuma oportunidade.
Em 2019, a luta diante da homofobia no futebol brasileiro ganhou capítulo importante. Após conquistar o título da Copa Guanabara diante do Fluminense, Fellipe Bastos, jogador do Vasco, reproduziu gritos da torcida vascaína, apontando o rival como “time de viado”. O tricolor carioca tomou atitude inédita entre clubes do Brasil, repudiando publicamente as palavras do jogador cruz maltino.
Após a publicação, Igor Julião, lateral do Fluminense, reiterou as palavras tricolores, postando em seu twitter a seguinte frase: “Eu jogo há 16 anos no #TimeDeTodos. Todos são bem-vindos, menos os atrasados e preconceituosos. Que orgulho em vestir a camisa do Fluminense por tanto tempo”.
O jovem de 24 anos é conhecido por posicionar-se em relação às pautas sociais brasileiras. Em outubro do ano passado, por exemplo, o jogador publicou uma foto na qual vestia uma camiseta estampada com a imagem de Marielle Franco. Igor, no início da carreira, revelou ter perdido um tio que suicidou-se após sofrer homofobia por toda a vida.
Com exceção das ofensas para os tiros de meta do arqueiro flamenguista, no restante do primeiro tempo a torcida somente cantou em incentivo ao time. Houve, claro, outros xingamentos e ofensas, entretanto, nenhum de viés homofóbico aparente.
Veio o segundo tempo e com ele o gol do Corinthians. Todos comemoram muito, inclusive Guilherme e eu. O clima continuou bom durante alguns instantes. O time corintiano passou a dominar a partida, portanto, a torcida como um todo se acalmou.
Nos últimos minutos do jogo, bola na área corintiana e gol do Flamengo. Foi um balde de a água fria em todos os torcedores alvinegros. Porém, houve suspeita de impedimento no lance. O Árbitro de vídeo faria a análise. A demora para que fosse tomada a decisão esquentou os ânimos dos torcedores. Então, após seis minutos, o gol foi validado.
A torcida, efervecida pela demora, não se agradou com o veredito. Houve ofensas de todos os tipos, inclusive homofóbicas, para o juíz e para os jogadores rivais. A torcida só se acalmaria com o apito final do árbitro. Por fim, Guilherme avaliou: “como eu disse, eu venho porque amo muito meu time, mas entendo o torcedor homossexual que não vem. Dependendo da cabeça, sofre muito”.
A homofobia não se limita às arquibancadas, ela transpõe e invade as quatro linhas em algumas situações. Richarlyson, multicampeão pelo São Paulo, sofreu na pele a discriminação. Entre 2005 e 2010, torcedores rivais levantaram rumores sobre o jogador ser homossexual, o que desencadeou uma série de piadas na internet.
O meio-campista, em entrevista à RedeTV!, disse não se magoar com as ofensas. Porém, indagou sobre o tema: “Vamos partir do princípio que a situação seja sobre homossexualidade. Quer dizer que no futebol não pode haver homossexual? E por causa disso ele deixa de ser um grande profissional?”.
Outro que sofre com esse cenário é o goleiro Messi, um dos únicos jogadores do futebol brasileiro que assumiu a homossexualidade. Ele, que atualmente joga pelo Palmeira de Goianinha, convive diariamente com ofensas homofóbicas proferidas por torcedores rivais. O potiguar, entretanto, afirmou em entrevista ao Globoesporte “lidar bem com a situação”.
São raros os casos de jogadores que, assim como Messi, assumem a homossexualidade antes da aposentadoria. O principal jogador que o fez foi Collin Martin, do Minnesota United. O americano, com o apoio de diversos ex-atletas, levantou em seu Twitter a hashtag “YouCanPlay”, reforçando que qualquer um, independente da orientação sexual, pode se relacionar com o futebol.