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‘Female gaze’: a literatura como recorte da luta feminista

Conceito que busca representar a realidade através da perspectiva feminina vem ganhando espaço na literatura e também pode ser encontrado nos clássicos
Por Júlia Alencar (julia.alencar@usp.br)

“Elas têm ambição e elas têm talento,

além de apenas beleza.”

Mulherzinhas, Louisa May Alcott

O livro Mulherzinhas (Roberts Brothers, 1868), de Louisa May Alcott, foi emblemático ao mostrar, em um cenário literário majoritariamente masculino, que a diferença entre algo escrito e produzido por uma mulher e por um homem é frequentemente perceptível no mundo da arte, em especial quando se trata da representação feminina nas obras. Poucas falas, descrições sexualizadas e personalidades rasas — quando não são inexistentes — são marcas características do male gaze (ou, em tradução livre, “olhar masculino”), conceito criado pela teórica cinematográfica Laura Mulvey. Apesar de pensado para analisar a representação feminina em produções audiovisuais, o male gaze também pode ser aplicado a diversas mídias, desde músicas até literatura.

Afinal, o que é o female gaze?

Diferentemente do que o termo sugere, o female gaze não representa o oposto do male gaze. A hipersexualização de homens e o esvaziamento de suas personalidades, por exemplo, ainda se encaixam nos moldes de papéis atrelados a gênero e na concepção de que o gênero oposto tem como única função suprir desejos, sexuais ou não. 

O female gaze é a representação real de pessoas, em especial mulheres, ao contemplar seus sentimentos, sonhos, traumas, motivações e paixões. Trata-se da construção de narrativas que representam a experiência feminina ao navegar por um mundo dominado pela perspectiva masculina, em um movimento que coloca as mulheres em posições não apenas para serem observadas, mas para que também possam olhar de volta. 

Essa tendência está cada vez mais presente na literatura mundial, nos mais diversos gêneros literários. Inej Ghafa, uma das protagonistas de Six of Crows (Gutenberg, 2016) de Leigh Bardugo, foi construída de forma a ser uma mulher forte e independente, com uma história e motivações reais. Muito de sua personalidade, inclusive, gira em torno de seu trauma por ter sido alvo de tráfico sexual e consequentemente, objetificada e sexualizada durante anos, o que, ao invés de vitimizá-la, tornou-a ainda mais forte e complexa.

Inej Ghafa é símbolo não apenas de sua cultura, mas de resistência e força feminina, considerada no enredo a melhor e mais perigosa espiã
[Imagem: Divulgação/Kevin Wada para Leigh Bardugo]

Quando se trata de casais ou interesses amorosos, o female gaze procura evocar emoções e sentimentos, enfatizando a construção de atmosfera e interações que desenvolvem o relacionamento em si, ao invés do foco na sexualidade e atos sexuais, como muitas vezes é o caso no male gaze. Mesmo quando o desejo feminino é representado, não há sexualização e objetificação do receptor.

Os homens no female gaze

Mas não são só as personagens femininas que podem ser representadas de acordo com o female gaze. Personagens literários como Sr. Darcy, de Orgulho e Preconceito (T. Egerton, 1813), e Laurie, de Mulherzinhas são exemplos perfeitos de homens escritos de acordo com esse movimento. Ambos são respeitosos e admiram as mulheres por quem se interessam — Elizabeth Bennett e Jo March, respectivamente — tomando a iniciativa de se tornarem pessoas mais íntegras ou abandonarem seu estilo de vida por livre e espontânea vontade, de modo a serem merecedores do amor e atenção delas. Não há expectativa por parte deles de que as mulheres tenham como  propósito servi-los ou consertá-los — uma mentalidade comum nutrida pelos papéis quase maternais desempenhados pelas mulheres — e tampouco demandam que elas correspondam aos seus sentimentos. São homens que reconhecem o potencial e profundidade de suas companheiras e, ao invés de sentirem-se ameaçados por elas ou de sabotarem suas ambições, encorajam e inspiram-nas. Eles as veem não como objetos, mas como pessoas, como iguais. Tudo isso pode parecer o básico de um relacionamento saudável e respeitoso, mas na realidade é muito mais raro do que imaginamos.

A famosa “cena da mão”, de Orgulho e Preconceito (Pride and Prejudice, 2005), evidencia o romance nos detalhes. [Imagem: Reprodução/Twitter/@tracklist]

Mesmo que seja muitas vezes sobre a experiência e perspectiva feminina, isso não significa que não possa ser produzido por homens, como é o caso do livro Uma Mulher no Escuro (Companhia das Letras, 2019), de Rafael Montes. Para criar a protagonista Victoria Bravo, o autor conversou com diversas mulheres sobre suas vivências e perspectivas, construindo uma personalidade mais desenvolvida e complexa, processo que é explicado no prefácio do livro e também em seu blog pessoal

Da mesma forma, nem todas as mulheres são capazes de escrever sem ceder às estruturas sexistas inerentes à sociedade. A booktoker Ana Júlia Barros (@anajulivros no TikTok) conta que percebeu traços machistas em muitos livros escritos por mulheres: “A série de O Acordo (Paralela, 2016), de Elle Kennedy, foi torturante demais de ler. Só mulheres lindas, magras e perfeitas, que quase não tem amigas mulheres, que a vida toda gira em torno daqueles homens lindos e perfeitos, é péssimo.” 

A importância do female gaze 

Mas por que é tão importante ter representação feminina de forma fiel à realidade, mesmo em obras de ficção? A quebra de padrões machistas que objetificam as mulheres é essencial na luta feminista, auxiliando garotas de todas as idades a reconhecer o próprio valor, assim como comportamentos nocivos em relacionamentos — como abuso, físico ou psicológico — e a criar noções do que seria um relacionamento saudável. 

Barros acredita que, se durante sua pré-adolescência tivesse lido mais livros escritos de forma a exaltar mulheres e não retratá-las como inferiores, hoje seu círculo social e até mesmo forma de se comportar provavelmente seriam diferentes. “Eu vejo o quão feliz eu fico quando eu saio com minhas amigas, como eu me sinto mais confiante quando eu saio desses ambientes masculinos. Eu acho que hoje eu seria uma pessoa mais segura, mais confiante, e ficaria mais à vontade com mulheres se eu tivesse consumido esse tipo de conteúdo mais voltado para nós”, revela.

Karin Volobuef, professora assistente doutora na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP especializada em Romantismo, acredita que a crescente valorização de livros escritos a partir da perspectiva feminina tem alterado comportamentos e padrões na própria sociedade: “Os romances de Jane Austen, por exemplo, contribuíram para essa visão feminina de uma mulher que não se casa simplesmente porque é isso que se espera dela, que não aceita se submeter a imposições de status ou de dinheiro.”

Volobuef também aponta a literatura como uma forma de as mulheres quebrarem essas construções sociais baseadas no patriarcado. Um exemplo famoso seria Madame Bovary — personagem da obra homônima escrita por Gustave Flaubert em 1856 — que, nos livros lidos em seus silenciosos momentos à espera do marido, encontra uma nova perspectiva e ideias fora do que já conhecia, descoberta que é atribuída à sua rebeldia e também o que a leva a cometer adultério, transgredindo as expectativas de gênero. A literatura foi, durante muito tempo, considerada perigosa pelos homens, porque uma mulher educada e informada raramente se submeteria às restrições impostas pelo marido. 

Femme Fatale 

O arquétipo da femme fatale segue o pensamento de que a autonomia feminina leva à rebeldia, ao apresentar uma mulher sensual e independente que é responsável pela ruína de homens, que perdem seu poder frente a esse cenário incomum. Quando ganhou força, com a emergência do movimento feminista no final do século 19 e início do 20, a figura da femme fatale era majoritariamente pejorativa, o que apresenta contrastes com como é percebida atualmente — um símbolo do livre-arbítrio das mulheres e abandono de restrições. Ainda assim, muitas dessas representações são feitas de acordo com o male gaze, explorando a figura da mulher como algo a ser observado e desejado, ainda que sejam as antagonistas. 

Mulher-Gato é um exemplo clássico de femme fatale; extremamente sexualizada, ainda que poderosa. [Imagem: Reprodução/DC Comics]

O outro lado da moeda

Apesar de ser uma ferramenta de empoderamento e consciência feminina, o female gaze também pode trazer aspectos negativos aos leitores. Embora almeje a representação real das pessoas e das relações, esse olhar feminino, ainda inscrito em uma lógica hollywoodiana, constrói narrativas frequentemente idealizadas, que geram expectativas irreais — em especial sobre parceiros — e, consequentemente, decepções. De forma semelhante, a literatura romântica do século 19 desencadeou o chamado “Mal do Século”, uma crise de crenças e valores que fez com que milhares de pessoas tirassem suas vidas como forma de escapar à realidade insatisfatória. 

Volobuef afirma que muito de nossa literatura e perspectiva atual é uma herança do Romantismo do século 19, e “não é à toa que a taxa de suicídio hoje em dia está tão alta. Agora ela está alta para homens e mulheres porque o sistema é insatisfatório” A pesquisadora explica que os homens, que possuem papel dominante da sociedade, também não atingem a satisfação: “Eles também não recebem tudo o que precisam, já que para isso precisam ter outra pessoa do lado dele. E não alguém que seja um outdoor e que está constantemente tentando mascarar suas características para se encaixar nas expectativas da sociedade.” 

As frustrações, sempre presentes no sujeito social, não diminuem a conquista da representação feminina por meio do female gaze. Mulheres são muito mais que apenas corpos, muito mais que seus companheiros. Mulheres têm sonhos, ambições, esperanças, sentimentos, pensamentos e nuances que, ao serem reconhecidos e valorizados, enriquecem ainda mais o mundo da literatura.

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