Por Bianca Muniz (biancamuniz@usp.br)
“Androides sonham com ovelhas elétricas?” (1968) é uma das histórias mais conhecidas de Philip K. Dick, escritor norte-americano famoso por suas obras de ficção científica adaptadas para o cinema e televisão. Talvez você não conheça o romance por esse nome, mas pelo título “Blade Runner – O Caçador de Androides”, sua adaptação cinematográfica. O livro, relançado no Brasil pela Editora Aleph em 2014, traz, em uma atmosfera sombria pós-apocalíptica, questionamentos sobre o que nos torna humanos, o papel da religião na sociedade e o poder da tecnologia, cada vez mais intrínseca ao comportamento humano.
No início do romance somos apresentados a uma Terra que, em 1992, está desolada e coberta por uma nuvem de poeira tóxica, originada após um confronto global chamado de Guerra Mundial Terminus. A Poeira levou várias espécies de animais e plantas à extinção, e é capaz de deteriorar as capacidades físicas e mentais dos organismos sobreviventes. Diante desse cenário de destruição, o governo oferece uma esperança: a possibilidade de emigração e colonização de outro planeta. No planeta colonizado, cada família tem direito a um androide — robôs humanoides que realizam serviços diversos. Entretanto, emigrar só é permitido àqueles que são saudáveis e não afetados pela radiação, restando para aqueles que optaram por não emigrar ou não se encaixam nos critérios de emigração (os chamados de Especiais, humanos afetados pela Poeira), viver nas ruínas da guerra.
A tecnologia por trás da confecção de um androide visa deixá-lo cada vez mais parecido com o ser humano. Com essa aproximação, muitos robôs começaram a se rebelar contra seus donos e ao regime de servidão ao qual eles eram submetidos, e acabavam cometendo assassinatos na colônia e fugindo para a Terra. Os “andys” fugitivos eram capturados por caçadores de recompensas, como o protagonista do romance, Rick Deckard. Rick trabalha para o Departamento de Polícia de São Francisco e sua tarefa é aposentar andys, ou seja, eliminá-los. Na trama, Rick recebe a missão mais difícil de sua vida: aposentar seis androides fugitivos dotados do sistema Nexus-6, uma unidade cerebral que deixa o robô ainda mais parecido com um ser humano. Seu maior desafio é conseguir diferenciá-los dos humanos, algo essencial em seu trabalho.
Com a convivência de humanos “normais” (ainda não afetados pela Poeira), Especiais e androides na Terra, K. Dick introduz um dos principais temas presentes no livro: o que constitui a humanidade e qual o seu valor. O objetivo dos androides é serem cada vez mais parecidos com o seres humanos, ou melhor, serem melhores que eles. Por outro lado, ser Especial é algo abominado por todos: é estar destinado à destruição.
Através da trajetória de dois personagens, o autor também mostra que o conceito de ser humano é vacilante para cada um. De um lado, temos Rick, um humano normal que no decorrer da narrativa se vê confuso a respeito da sua “humanidade” ao confrontar alguns andys e começar a sentir algo além do desejo de eliminá-los; de outro, J.R. Isidore, um Especial que vive sozinho em um edifício em ruínas (cheio de “bagulho” e caminhando para um estado cada vez mais “bagulhificado”), visto como um humano “inferior”, vai se sentindo cada vez mais humano ao ter contato com outras formas de vida, como uma aranha e até mesmo um androide.
Diante disso, questiona-se o que é responsável por nos fazer humanos, pergunta a qual K. Dick responde com a palavra empatia — a capacidade de se colocar no lugar do outro. É a empatia que diferencia andys de humanos, servindo de instrumento de análise da Escala Voigt-Kampff, um teste utilizado por Rick que avalia respostas fisiológicas (como a dilatação da pupila, por exemplo) à perguntas que testam a empatia do entrevistado, medindo sua reação a situações que provocariam alguma comoção em humanos.
Dentro desse tema, cabe ressaltar a importância dada aos animais na Terra pós-Guerra: o sonho de todo humano é ter um animal de verdade, algo difícil de ser realizado, visto que muitos foram dizimados pela Poeira. Assim, os poucos animais sobreviventes são vendidos a preços altos, e quem não consegue bancar esse valor, recorre à réplicas elétricas quase perfeitas de animais vivos. Esta valorização da vida animal pode ser explicada pela empatia sentida pelas poucas formas sobreviventes na Terra.
Outro ponto de destaque na trama é o mercerismo, uma espécie de religião que cultua o líder Wilbur Mercer. O mercerismo pode ser relacionado às religiões “das massas”, como o cristianismo. Os seguidores desta religião tem a prática de se fundir ao Mercer através da Caixa de Empatia, aparelho que permite seu usuário se conectar com outras pessoas que estão usando a caixa no mesmo momento, compartilhando emoções, ao mesmo tempo em que enxergam seu líder messiânico recebendo pedradas enquanto sobe uma montanha. Na maior parte do romance, o mercerismo é relatado sem maiores explicações, sendo difícil de compreender o seu real significado. No final da história, quando sua veracidade é questionada, vemos como o mercerismo é importante para os humanos sobreviventes na Terra: a possibilidade de dividir emoções é mais um culto à vida, tão valiosa no mundo pós-Guerra Mundial Terminus.
“Androides sonham com ovelhas elétricas?” é uma história rápida, desenvolvida em 24 horas. Isso dá um ritmo acelerado de leitura, facilitado pelas frases curtas e diretas — o que não prejudica a reflexão sobre as questões propostas. Por se passar em um futuro que hoje já conhecemos como um “passado”, é de se admirar o quanto Philip K. Dick se adiantou em colocar em voga temas que até hoje são alvo de discussão, como os limites do uso da tecnologia, e até se aventurar em questões mais profundas, como a essência de nossa humanidade.