Você já o deve ter visto algumas vezes na televisão, assustado-se com ele quando era criança. Sua avó ou sua mãe ao o verem ou ouvir falar dele talvez deem aquele suspiro misto de susto e repugnância. Ele veste preto. Terno, capa e cartola. Ele tem barba e unhas enormes amareladas. Sim, é ele, esse mesmo em que você está pensando. Zé do Caixão.
À Meia Noite Levarei Sua Alma é a película que apresenta esse personagem um tanto quanto peculiar ao mundo (Sim, ao mundo. Vossa repórter, caros leitores, não está sendo hiperbólica.). Gravado independentemente entre 1963 e 1964, o filme é um clássico do pouco explorado terror e, é claro, trash brasileiro.
Antes de qualquer ação, você ouvirá algumas palavras da boca da estranha figura interpretada por José Mojica Marins. Vida, morte, existência, sangue… nada que faça muito sentido. É um prólogo, que justifica as bizarras cenas protagonizadas posteriormente por Zé do Caixão.
E então você acha que o enredo finalmente começará! Mas não, antes você ainda é desafiado a continuar na sala por uma cigana que segura um crânio humano. Para completar o clichê, ela tem aquela risada sinistra típica, uns gritos de pavor e dor complementam o background, e o cenário é repleto de teias de aranha embrenhadas entre frascos e objetos estranhos e nojentos.
Se você é um dos amaldiçoados por continuar a assistir o filme, finalmente conhecerá Josefel Zatanas (o verdadeiro nome de Zé do Caixão). Ele é um agente funerário que causa arrepios nos cidadãos da pequena e pacata cidade em que vive. As unhas e as roupas são apenas o começo da sua excentricidade. Ele zomba da fé das outras pessoas. Contrariado, a zombaria e a gargalhada irônica somem e, com sangue nos olhos e expressão vidrada, ele pune o autor da ofensa. Corta os dedos de um com uma garrafa. Dá chicotadas em outro. Crava os espinhos de uma imagem de Jesus Cristo no rosto de um terceiro.
Ele não acredita em Deus. Não acredita em Demônio. Não acredita em espíritos. Ele acredita na vida. Acredita em si próprio. Acredita no seu sangue. E, em prol deste sangue, ele quer um filho, a única coisa que pode dar continuidade à sua existência.
Para ter o tão sonhado filho, Josefel fará de tudo. O enredo, composto por uma sequência confusa de assassinatos bizarros e acessos de fúria do funerário, é dirigido exclusivamente por esta necessidade de gerar um fruto de sua carne.
A mulher escolhida por Zé para dar à luz a este filho é Terezinha (Magda Mei), amiga de sua esposa e noiva de seu melhor (e único) amigo. Para tê-la, ele mata os dois, e então a violenta. Deflagrada e desgraçada, Terezinha promete matar-se e diz que seu espírito voltará à meia noite para levar a alma do funerário descrente.
A moça, de fato, suicida-se. E Zé do Caixão encontra o destino prometido por ela no trecho mais trash do filme, com direito a mortos vivos, quedas, gritos, muito sangue e olhos esbugalhados. As pessoas a quem matou e os mortos de quem riu levam sua alma. À meia noite.
O filme foi pensado para chocar e assustar, e o fez nos anos 60 e 70, mesmo com a pressão da censura. Mas hoje não há como não rir da dramatização dos atores, da dublagem de suas vozes e das cenas bizarras ao longo da história, como os olhos vidrados de Zé quando irritado ou os mortos-vivos ao fim do longa. Ainda mais trash é a cena em que o funerário assassina sua última vítima, o médico da cidade. Zé do Caixão fura os olhos do doutor com as gigantescas unhas e, enquanto o homem forçosamente geme de dor, incendeia seu corpo.
Para quem está acostumado a efeitos especiais modernos e bem elaborados, a produção das cenas de À Meia Noite Levarei Sua Alma é certamente risível. Mas é preciso admitir a criatividade das soluções encontradas para a falta de tecnologia da época e o pouco dinheiro da produção. Um exemplo é a cena final, em que, para criar uma aura fantasmagórica em um personagem, foi colada purpurina em torno dele no próprio negativo.
E você, que cresceu achando essa figura de roupas pretas estranhíssima e sinistra (com colaborações da sua família, admita!), vai se surpreender ao saber que, apesar de tudo, À Meia Noite Levarei Sua Alma é conhecido e reverenciado internacionalmente por inovar em certas questões técnicas, como cenário e posicionamento de câmeras, e pela originalidade de seu roteiro. Recebeu três prêmios internacionais na década de 70: Prêmio L’Ecran Fantastique para originalidade e Prêmio Tiers Monde da imprensa mundial, na III Convention du Cinéma Fantastique (França), em 1974; Prêmio Especial no Festival Internacional de Cine Fantástico y de Terror Sitges (Espanha), em 1973 (viram só como esta repórter não exagerou?).
É trash, mas é um trash cult.
Por Bruna Romão
bruna.romao.silva@gmail.com