Há dois séculos atrás viviam em um pequeno vilarejo inglês três mulheres que mudariam a literatura, e figuraram como escritoras de renome em um ambiente literário dominado por homens. Charlotte, Emily e Anne Brontë, conhecidas como as “irmãs Brontë”, certamente foram mulheres excepcionais à sua época.
As irmãs foram criadas pelo seu pai, Patrick Brontë, no vilarejo de Haworth Hill. Ele atribuía uma educação bem conservadora, porém nada usual, às meninas. A professora Paula Alexandra Guimarães, especialista em Literatura Inglesa e Oitocentista, em entrevista à Jornalismo Júnior, afirma que “apesar de geograficamente isoladas no curato de Haworth e sujeitas a uma doutrina religiosa e uma conduta moral rígidas”, as irmãs ultrapassam essas barreiras com sua grande imaginação e cumplicidade.
Mesmo com poucos recursos, as meninas aproveitavam tudo à disposição, como reitera a professora: “As lições dadas a Branwell (o irmão mais velho), a biblioteca seleta do pai delas, os jornais e revistas de grandes cidades. Eram todos leitores ávidos de vários gêneros da escrita”.
Assim, as três se constituíram como pequenas intelectuais. E, ainda na infância, começaram sua trajetória na escrita: realizavam encontros literários nos quais debatiam variados temas políticos e sociais e escreviam contos. Os contos sobre o reino imaginário de Angria, localizado na África Central, são os mais conhecidos atualmente e já mostravam a incrível habilidade das meninas que narravam eventos extraordinários (e até violentos).
Na juventude, enquanto o irmão delas tinha apoio financeiro para sua carreira artística e aulas particulares, as meninas tiveram que começar a trabalhar como governantas e professoras, as profissões consideradas apropriadas para mulheres. Como lembra Sandra Guardini, professora de Literatura Inglesa e Comparada na Universidade de São Paulo,“nesse momento há toda uma discussão do que seria a feminilidade, quais seriam os padrões ideais para o feminino, e eles diziam respeito à submissão feminina dentro do casamento e dentro da família”. Assim, as profissões permitidas eram aquelas que replicavam o papel da mãe.
Contudo, ainda na juventude lançaram seu primeiro livro em conjunto, Poems by Currer, Ellis and Acton Bell (publicado em 1846), uma compilação de poemas que vendeu somente três ou quatro exemplares. Como posto no título, as irmãs optaram por não assinarem seus nomes e utilizavam uma tática muito comum entre as escritoras da época. “Como o espaço público não estava aberto a elas, era muito comum que publicassem de forma anônima ou com pseudônimos. As Brontë escolheram pseudônimos muito neutros, nos quais mal dava para distinguir o gênero do autor, e eles se iniciam justamente com a inicial do nome de cada uma”, adiciona Sandra.
No entanto, o fracasso do primeiro livro não as desanimou e pouco tempo depois cada uma já possuía um romance finalizado. Mesmo com o pouco acesso feminino a esse meio, Charlotte tomou a frente e passou a negociar com os editores. Atitude pouco usual, a Brontë mais velha tinha que agir com discrição em sua “vida pública”.
Jane Eyre e o retrato cruel do ensino feminino vitoriano
Charlotte foi a primeira a publicar um romance. Jane Eyre foi lançado em 1847, e acompanha a história de uma órfã, da infância à maturidade. O livro se constitui como um relato do amadurecimento feminino e pode ser considerado a versão vitoriana de um “coming of age”.
Na narrativa, Jane, uma menina que perde os pais muito cedo, é criada por sua austera tia que, após anos de maltrato e abandono, a envia a um colégio interno. Lá a criança passa por diversas situações impostas por uma sociedade que valorizava um modelo de educação feminina extremamente rígido (chegando à crueldade) e que visava a submissão.
Acredita-se que muito do relatado no livro seja baseado nas memórias da própria autora, que passou anos em um internato. Charlotte, em seu escrito, denuncia não só o modelo educacional da época, mas a normalização do tratamento abusivo atribuído às crianças do sexo feminino pela sociedade misógina.
“Não é razoável condenar as mulheres ou rir delas, se elas querem mais do que os costumes definiram como sendo o necessário para seu sexo.” – Jane Eyre
A obra tem um caráter de rebeldia contra as normas impostas através da atitude determinada e serena de Jane, uma personagem peculiar e à frente de seu tempo, diante de todas as dificuldades que enfrenta.
Apesar de suas características subversivas, o texto teve grande aceitação e colocou Charlotte em uma posição de destaque na literatura, ocupada por poucas mulheres.
Após esse livro, ela lançaria outros dois romances, Shirley e Villete (lançados em 1849 e 1853, respectivamente), considerados textos mais maduros e que também possuem caráter autobiográfico.
O Morro dos Ventos Uivantes e a reflexão do autor na obra
O Morro dos Ventos Uivantes (Wuthering Heights, publicado em 1847) foi o único romance publicado de Emily Brontë, a mais reclusa e misteriosa membro da família, que viria a ser conhecida como a “Esfinge da Literatura Moderna”.
Muitos dizem que Heathcliff, o seu famoso personagem retraído e selvagem, seria um reflexo da autora. De fato, há muito de Emily Brontë em sua obra. A inspiração para a paisagem bucólica retratada de forma realista e poética em seu romance foi o seu vilarejo Haworth.
Considerado hoje um dos maiores romances da literatura, adaptado inúmeras vezes ao cinema e teatro, a obra não teve uma boa recepção na época. A professora Sandra Guardini comenta que “no caso da Emily, o romance foge do esperado na literatura da época: tem uma alta dose de violência verbal, são personagens que fogem do estereótipo dos ingleses bem comportados. A Catherine e o Heathcliff têm um alto grau de rebeldia”. O livro foi considerado inadequado e imoral, pois, além de tratar de personagens nada tradicionais, explora temáticas como o adultério e o incesto.
Assim, a obra foi encarada como um fracasso. Emily morreu muito cedo, como suas irmãs, e após sua morte a sua obra foi gradualmente revivida pela crítica, hoje consiste em um dos maiores clássicos da literatura inglesa.
A irmã Brontë esquecida flerta com o feminismo
Anne Brontë é considerada a irmã invisível pelas suas obras menos lembradas em comparação às de suas irmãs mais velhas. Seu primeiro livro publicado, Agnes Grey, foi lançado em 1847 conjuntamente com O Morro dos Ventos Uivantes. Ele acabou sendo ofuscado pela repercussão do romance de Emily, mas obteve uma popularidade razoável.
A obra conta a história da personagem que nomeia o livro, uma mulher que começa a trabalhar como governanta para provar-se independente e madura após sua família passar por uma crise financeira. Relatando a marginalização e a solidão que essa classe de mulheres trabalhadoras sofria nas casas burguesas, o romance foi julgado como “moralizador” e “vulgar” por alguns críticos na época.
No entanto, sua última obra, A Inquilina de Wildfell Hall (The Tenant of Wildfell Hall, publicado em 1848), seu romance mais celebrado, não fica atrás dos livros de suas irmãs em qualidade.
Esse foi o segundo romance publicado por ela, sob o seu pseudônimo Acton Bell, teve um sucesso imediato, e esgotou em poucas semanas.
O livro introduz a trajetória de Helen Graham, uma mulher que abandona seu marido agressivo e alcoólatra e leva seu filho consigo. A narrativa epistolar mostra a luta de Helen em busca de sobrevivência e independência ao chegar em uma cidade desconhecida e iniciar uma carreira como pintora para se sustentar.
A temática ousada naturalmente chocou a sociedade inglesa e atraiu críticas similares às de sua irmã. Por conta do impacto da obra, Charlotte não permitiu a publicação de uma nova edição após a morte de Anne.
No entanto, o livro apresenta um legado incontestável e é uma das poucas obras vitorianas a contestar o sistema legal que não agraciava as mulheres. “Há, então, uma denúncia contra o sistema legal. Luta contra a lei que não dava o direito à mulher de ter a guarda do filho e das posses. No momento em que ela corta as reações com o marido abusivo, ela perde todos os direitos”, afirma Sandra Guardini.
O legado Brontë
Além de escrever sobre temáticas que desafiavam os padrões vigentes, elas ainda adotaram um estilo muito único, como lembra Paula Guimarães: “Utilizavam o monólogo dramático e formas afins, combinando poesia e drama, mas não só. Elas acabariam, assim, por transformar o gênero do romance”. A professora também afirma que as irmãs abriram caminho para a mulher de hoje ao descrever heroínas realistas, inteligentes e que não abdicaram de seus sentimentos.
Hoje, os escritos das Brontë geram discussões sobre o caráter feminista dos textos. A chamada “crítica feminista” identifica características do movimento nos textos, pelo tom de denúncia e manifestação de descontentamento com as limitações impostas às mulheres. No entanto, a doutora Sandra Guardini enfatiza que, como malmente se tinha o conceito de feminismo formado, “é anacrônico. Poderia se dizer um protofeminismo, antecede o feminismo”. Paula Guimarães também recorda a própria criação conservadora e religiosa das irmãs, que tornaria difícil que se identificassem por tal termo.
Ainda assim, seus trabalhos tiveram impacto considerável na literatura feminina. Autoras como Virginia Woolf e Simone de Beauvoir foram expressivas na sua admiração às obras de Charlotte, Emily e Anne. Simone chegou a afirmar que Emily Brontë foi uma das três escritoras femininas que verdadeiramente exploraram seu dom.
Contudo, o maior legado das irmãs Brontë é sem dúvidas a importância de modelos como Jane Eyre, Helen Graham e Agnes Grey na imaginação de milhares de meninas que puderam se sentir inspiradas e representadas pelas heroínas à frente de seu tempo.
Gostei bastante do artigo, que legada e pouco se fala delas, parabéns pelo conteúdo de qualidade e relevante
Parabéns pela matéria. O artigo situa a condição das mulheres no contexto histórico do século XIX e apresenta as informações biográficas das escritoras e ambiente social e literário da época.