Pensar em Hollywood para muitos remete a um imaginário de glamour, fama e dinheiro. Esse mundo aparentemente ideal, no entanto, tem enfrentado desafios na tentativa de se inserir em uma nova era nas quais discussões e movimentos sociais acerca de racismo e representatividade ganham cada vez mais força.
É fato que Hollywood ainda não é e nunca foi sinônimo de diversidade e representação de minorias. Nos primórdios, suas produções eram ostensivamente brancas. Usavam e abusavam de táticas como o blackface e o yellowface (práticas nas quais atores e atrizes brancos são maquiados para interpretarem personagens negros e asiáticos respectivamente). Ou até o whitewashing, a substituição (ou melhor, apagamento) de personagens de outras etnias pela utilização de artistas caucasianos, que passou a ser muito utilizado após a condenação dessas outras práticas.
Essas táticas, aliadas do uso constante de estereótipos que reduzem etnias a meras representações depreciativas, se encontram presentes em inúmeros filmes de sucesso.
A crítica Isabel Wittmann, criadora do portal Feito por Elas, em entrevista a Jornalismo Júnior, respondeu que não acredita que tal visibilidade seletiva gere mudanças reais. Quando perguntada sobre a atual ascensão de alguns diretores latinos (em sua maioria homens e brancos) em Hollywood, ela comenta: “Vejo com descrença o aumento significativo do número de pessoas latinas trabalhando na direção em Hollywood. Até mesmo porque o sistema de produção, responsável pelo custeio, permanece o mesmo”.
A latinidade nas telas
O quadro para os latino-americanos em Hollywood certamente não é dos melhores, como demonstrado pelos dados da USC. A comunidade que representa mais de 17% da população americana é uma das menos e mais mal representadas na indústria.
O problema reside na qualidade dos papéis oferecidos: os estereótipos latinos altamente disseminados nas produções americanas limitam não só o entendimento da população sobre a cultura latina, reduzida a arquétipos depreciativos, como também a atuação de artistas latinos. Sobre isso, a atriz America Ferrera, filha de hondurenhos, comentou, em entrevista à Agência Efe, que “o talento latino raramente têm a oportunidade de interpretar personagens complexos e com matizes”.
De fato, o uso de estereótipos para representar personagens latino-americanos pode ser considerado uma febre em Hollywood. A maior parte dos filmes vale-se de três representações-modelo. A primeira delas é um clássico das comédias americanas: a empregada confusa que não sabe falar nada de inglês. Um exemplo desse tipo é Patricinhas de Beverly Hills (Clueless, 1995), no qual em uma cena típica de comédia hollywoodiana, Cher (Alicia Silverstone) aparece falando com sua empregada latina que grita palavras desconexas em espanhol na tentativa de se comunicar. Outra representação recorrente e extremamente nociva é a do criminoso. Inúmeros filmes exploram a figura do latino como um personagem perigoso, sem perspectiva e sem escolaridade.
Isso quando as produções não apagam ou omitem a latinidade de um personagem, substituindo por um ator americano. É o que ocorre em Argo (2012), filme baseado em fatos, em que Ben Affleck interpreta Tony Mendez, um oficial da CIA de ascendência mexicana. Essa prática é ainda mais excludente, pois retira a oportunidade de artistas latino-americanos interpretarem personagens bem construídos.
Latinos nas premiações
Durante os quase cem anos de presença latina no Academy Awards foram poucas as nominações, e menores ainda os prêmios recebidos. O Oscar de 2018 ficou marcado como o que mais obteve nominações latinas na história da academia, ainda assim tendo um número escasso de premiados.
A Academy Awards não é a única premiação hollywoodiana que conta com a falta de diversidade nos seus indicados e premiados. A edição de 2020 do Golden Globes não contou com nenhum premiado latino, tendo apenas duas indicações das 125, dispersas em 25 categorias.
Com cerca de 175 indicações nos 90 anos de presença latina no Oscar, somente quatro atores ganharam o prêmio, sendo somente um deles o prêmio de Melhor Ator: José Ferrer na edição de 1950 recebeu o prêmio de Melhor Ator, Anthony Quinn (mexicano) recebeu o prêmio de Melhor Ator Coadjuvante em 1952 e 1956, e Benicio del Toro (porto-riquenho) também recebeu esse prêmio em 2000. Somente duas atrizes receberam o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante: Rita Moreno (porto-riquenha) em 1961 e Lupita Nyong’o (mexicana e queniana) em 2013. Somente cinco diretores receberam o prêmio de Melhor Diretor: Alfonso Cuarón em 2013 e 2018, Alejandro González Iñárritu em 2014 e 2015 e Guillermo del Toro em 2017 (todos mexicanos).
Isabel Wittmann ainda destaca o protagonismo mexicano em Hollywood, sendo o protagonismo latino ocupado majoritariamente por diretores mexicanos, como Cuarón, González Iñárritu, e del Toro. O México por sua vez, que faz fronteira com os Estados Unidos, tem séculos de troca cultural.
Poucos foram os filmes latinos que ganharam ou foram ao menos indicados em categorias fora de Melhor Filme Internacional. O motivo, suposto e especulado pelos ávidos consumidores de cinema, é que alguns dos eleitores que votam nos filmes do Oscar não assistem os filmes. O tópico, apesar de velho, é comentado desde 2014, quando dois eleitores contaram ao Los Angeles Times que não assistiram 12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave, 2013) antes da premiação por conta do tópico do filme, mas votaram nele mesmo assim. De acordo com a revista The Hollywood Reporter Magazine, cerca de 6% dos eleitores nem ao menos assistiram os filmes.
Assim como não assistir aos filmes, membros da academia alegam votar apenas pelo nome do ator e a “marca” em volta dele, como um que contou não ter votado em Jóias Brutas (Uncut Gems, 2019) ao New York Post, porque a marca de Adam Sandler (principal no filme) “não grita Oscar” para ele, mas a de Leonardo DiCaprio [principal em Era Uma Vez em… Hollywood, (Once Upon a Time in Hollywood, 2019] sim.
Ademais, alguns membros mais velhos se recusam a ver filmes que envolvem raça, tal como como Corra (Get Out, 2017) e julgam não ser “válido de um Oscar”. Outros não assistem filmes que já foram vítimas de diversos remakes ou tratem sobre gênero, como Adoráveis Mulheres (Little Women, 2019). Entre outros que alegam não querer assistir filmes por conta das legendas, tópico que causou revolta durante o Oscar de 2020 com a nominação de Parasita (Gisaengchung, 2019).
A história dos latinos no Emmy não é diferente, com a primeira indicação na premiação sendo feita em 1956, com José Ferrer (porto-riquenho), na categoria de Outstanding Lead Actor in a Limited Series or Movie, pelo seu papel principal na minissérie Producers’ Showcase (1955). Apesar da longa presença na premiação, as indicações vieram espaçadas e escassas, sendo os artistas latinos nem ao menos indicados em muitos dos anos.
Foram cerca de 120 indicações nos quase 70 anos de presença latina no Emmy, tendo apenas seis atores recebendo o prêmio: Jharrel Jerome (dominicano) em 2019 recebeu o prêmio de Melhor Ator Principal em uma Minissérie ou Filme, Albert Paulsen (equadorense) em 1964, Edward James Olmos (mexicano) em 1985, e Jimmy Smits (porto-riquenho) em 1990, receberam o prêmio de Melhor Ator Coadjuvante em uma Série de Drama, Ricardo Montalbán (mexicano) em 1978 recebeu o prêmio de Melhor Ator Convidado em uma Série de Comédia, e John Leguizamo (colombiano) em 1999 recebeu o prêmio de Performance Individual em uma Variety ou Programa Musical.
Apenas quatro atrizes receberam prêmios: America Ferrera (argentina) em 2007 recebeu o prêmio de Melhor Atriz Principal em uma Série de Comédia, Rita Moreno (porto-riquenha) em 1978, e Alexis Bledel (argentina) recebeu o prêmio de Melhor Atriz em uma Série de Drama, e Rita Moreno recebeu em 1977 o prêmio de Performance Individual em uma Variety ou Programa Musical.
Os três diretores latinos destaques, Alfonso Cuarón, Guillermo del Toro e Alejandro González Iñárritu, assim como as atrizes e atores mais celebrados como Alexis Bledel, são brancos ou passíveis de se passarem por brancos dentro da sociedade estadunidense (white passing). Wittman comenta isso em entrevista, “embora sejam localizados como latinos, em termos étnico-raciais, dentro dos confusos critérios étinicos adotados pelos estadunidenses, são o que se definiria como brancos para os critérios latino-americanos”, o que já os fazem partir de um ponto de privilégio.
Raros são os grandes nomes latinos de origem indígena, sendo Yalitza Aparicio a primeira mulher indígena a ser indicada ao Oscar de Melhor Atriz. A falta de representatividade não fica somente nas indicações, mas também no número de atores da etnia em grandes produções. De acordo com o Hollywood Diversity Report (Relatório de Diversidade em Hollywood) de 2020 feito pela UCLA, menos de 1% dos atores no elenco dos filmes mais populares eram indígenas.
O espaço ocupado por latinos em hollywood se mantém pequeno, ainda dividido e impedido de grandes conquistas à medida que os artistas se distanciam do padrão caucasiano norte-americano. Yalitza foi indicada ao Oscar em 2018, Jharrel Jerome foi o primeiro afro-latino a ganhar um Emmy em 2019. As conquistas feitas no campo dos atores é extremamente recente, e anda de forma ainda mais lenta nos outros campos, como diretores, roteiristas, e todos os outros artistas envolvidos na indústria.
A escassa e deficitária presença de latinos nas produções e premiações americanas certamente reflete o preconceito enraizado na cultura americana que reduz toda uma comunidade com variações linguísticas, culturais e fenotípicas a arquétipos unidimensionais. “A interpretação estadunidense da latinidade como uma delimitação étnico-racial, ao invés de sócio-geo-política, cria incoerências em suas próprias classificações. Basta ver a incógnita que se cria em torno da afro-latinidade”, comenta Isabel Wittmann.
Ao unir todos os latino-americanos em uma só caixa, Hollywood deixa passar que não existe tal coisa quanto um conceito único que identifique a latinidade. A tentativa de apagar tantas nuances entre os vinte países que compõem a América Latina é um trabalho retrógrado, visto que mesmo ao analisar um só país, já teríamos tantas variações sócio-culturais que tornariam a tarefa impossível.
A análise da indústria cinematográfica americana reduz o mosaico que é a América Latina a um rótulo que parece servir apenas ao uso de estereótipos superficiais e à criação de barreiras para a ascensão do talento latino.
*Imagem de capa: [Reprodução/Paul Deetman]