Por Bianca Muniz (biancamuniz@usp.br)
Visitar o Centro Cultural São Paulo (também conhecido como Centro Cultural Vergueiro, ou ainda CCSP) me traz uma série de lembranças. Estudos pré-vestibular nas mesas externas, vários shows assistidos na sala Adoniran Barbosa (sempre com a dúvida de sentar perto da banda ou assistir o show de cima, na arquibancada) ou meditação sentada no chão frio dos pisos expositivos.
A primeira vez que fui ao CCSP foi em 2015, para comprar o ingresso de um show que aconteceria semanas depois, no mesmo lugar. Enquanto subia a rampa da saída da estação Vergueiro, logo minha visão foi tomada por diferentes manifestações artísticas. Fui explorar o local após sair da bilheteria. Lembro que estava acontecendo uma feira de zines e publicações independentes naquele dia, poucos metros distante dos grupos de dança e de estudo. A quantidade de arte e de diferentes personalidades que dividiam o mesmo espaço foi o que me motivou a continuar a visitar o CCSP nos anos seguintes, certa de que toda vez que eu passasse por lá, me sentiria acolhida.
Próxima estação: Vergueiro, desembarque pelo lado direito do trem
Antes de começar essa caminhada, é preciso se familiarizar com a arquitetura do CCSP, que não é algo secundário ao seu acervo e programação cultural. Admito que não tinha reparado em como o CCSP é externamente até o momento desta reportagem; afinal, é possível chegar ao centro cultural sem precisar fazer um percurso externo, seguindo o caminho à esquerda das catracas do metrô. Assim, decidi conhecer suas outras entradas.
O desnível do terreno em que se levantou o Centro possibilitou a construção de uma estrutura que se “afunda” na rua Vergueiro e está no nível da avenida 23 de maio, possibilitando a existência de salas escondidas em seu subsolo (os “porões”) com entrada pela avenida movimentada.
Talvez esse seja o motivo para encontrar, em toda visita ao CCSP, algo novo.
Comecei minha visita às nove horas. Nesse horário, a única entrada aberta para o CCSP está do lado Vergueiro. Apesar de quase todos os serviços oferecidos pelo centro cultural começarem suas atividades após às dez horas, em torno de 15 pessoas esperavam, sentadas às mesas de xadrez, nos bancos ou no chão, acompanhadas de livros, apostilas e notebooks. “Por que chegar tão cedo?” perguntei à jovem que se sentou ao meu lado. Ela disse que é para conseguir um lugar melhor para estudar, visto que durante a manhã muitos estudantes vão para o CCSP antes de suas aulas em cursinhos, ou utilizam o espaço para aulas marcadas com professores particulares.
Nilza é uma dessas frequentadoras que chegaram cedo ao centro cultural. Geralmente, ela o utiliza para treinar dança, mas no momento da entrevista, tinha acabado de finalizar uma aula de inglês com um professor. “Eu frequento o CCSP todos os dias porque estou sem trabalhar. Venho mais pra estudar dança, mas hoje vim estudar inglês. Eu tive aula mais cedo com um professor aqui”, conta Nilza, apontando para o espaço Foyer.
Cinco, seis, sete, oito!
Se o foco dos estudantes é algo que chama atenção nas mesas da biblioteca ou na área próxima à rampa do metrô Vergueiro, está lado a lado com a dança. O silêncio dos espaços expositivos é tomado por ritmos musicais diversos quando se aproxima do chamado corredor da dança: do hip-hop em pequenas caixas de som potentes, passando pelo samba e o tango nos alto-falantes de celulares. Não é incomum vermos “rodinhas” de adolescentes e casais treinando seus passos refletidos nos vidros, que separam o corredor de salas do setor administrativo do CCSP e da famosa sala Adoniran Barbosa.
As amigas Tamires, Stella e Lívia encontraram um canto para ensaiar seus passos. O motivo que as leva ao centro cultural é o mesmo de outros jovens que lotam o CCSP, principalmente aos finais de semana: o k-pop. O pop coreano de grupos como BTS e Blackpink são imitados por adolescentes, às vezes, de forma despretensiosa. Stella conta que uma vez viu a área aberta do centro cultural com uma multidão de pessoas dançando músicas diversas. Perguntei à elas se isso não atrapalha os grupos, mas Lívia acredita que isso facilita a amizade entre eles. “Os grupos aqui são divididos, mas quando é pra ajudar um ao outro, ou quando toca alguma música que reconhece, a gente se junta. Fazemos amizade por causa disso.”
Um espaço vazio, várias possibilidades
Continuando a visita, encontrei o casal Claudete e Valdir no Jardim Suspenso do CCSP, observando a Horta Comunitária. Claudete conta que tem várias lembranças envolvendo o centro cultural: “Há muitos anos eu venho aqui, desde 81, quando eu fazia colégio. A gente fazia caravana com a turma para visitar as mostras, assistir os filmes da época. Mais tarde, na faculdade, eu passava os meus finais de semana aqui, fazendo pesquisas para o meu TCC, 15 anos atrás”. Hoje, com 54 anos, ela conta que suas visitas ao local se resumem a tomar um sol nos espaços abertos e relaxar enquanto espera o horário de atendimento nos hospitais da região.
Os dois, que frequentam o local desde sua inauguração, veem uma utilização pouco proveitosa dos espaços, sentindo falta de exposições artísticas: “Nós percebemos agora que tem muito espaço vazio. Em 82, ele era muito mais dinâmico, toda vez mudava as mostras, os artistas. Não sei se era mais divulgado pela secretaria de educação nas escolas”, conta Claudete.
Seu marido completa, ao ver um grupo de crianças em uma excursão escolar no momento da entrevista, que apesar de ser comum encontrar adolescentes, adultos e idosos no CCSP, ver escolas no local é algo raro. Ele acredita que isso é resultado de uma política que ignora os investimentos em cultura, refletindo em centros culturais vazios e com pouca manutenção. “Você percebe que a conservação do local tá zerada; tem só limpeza, e limpeza não é conservação. E aqui é um espaço tão bonito, tão bem projetado. Basta ver o que aconteceu no Museu Nacional, no Rio. No Brasil, as pessoas, os governantes, não dão valor pra cultura.”
Se os espaços para Claudete e Valdir são pouco utilizados para exposições, há outra utilidade para eles: o uso dos próprios visitantes. O segurança conta que os jovens costumam utilizar os lugares vazios para ensaiar dança e peças de teatro, ou apenas se reunir com amigos no chão. Ele me mostrou uma placa que dizia não ser permitido sentar no chão dos pisos expositivos – isso atrapalha a movimentação dos visitantes – mas enquanto conversávamos, ele precisou sair algumas vezes para impedir namorados de realizarem tal ação.
“Quem quer levar uma surra no xadrez?”
Em outro lugar do CCSP, observo um grupo de idosos jogando xadrez. Dois homens, ao perceber minha aproximação, perguntam se eu sei jogar e me convidam para assistir uma partida. Roberto, o mais falante entre os jogadores, apresenta o seu oponente, Romeu, e comenta que a turma de enxadristas (jogadores de xadrez) saiu para almoçar. Eles costumam chegar ao CCSP às 14h, de segunda à sexta-feira, e ficam até 22h jogando. “Quando é sábado, domingo e feriado, dez horas, dez e meia da manhã, a gente tá aqui jogando. Todos os dias. Só dá uma pausa no final do ano, mas retornamos na segunda semana de janeiro. Às vezes, o segurança tem que falar pra gente sair.”
Assisti Roberto e Romeu jogarem, enquanto conversava com eles. A cada movimentação de peças, eles batiam em um aparelho na mesa. “É um grupo de amigos que vem aqui. Aqui é um centro cultural, tem biblioteca, tem vários lugares, diversas atividades para a molecada, que passa pela nossa mesa e desperta o interesse por essa máquina aqui. Isso aqui é um relógio. Elas ficam curiosas, e acabam se interessando pelo xadrez”, relata Roberto.
Romeu começou a frequentar o CCSP há cerca de um ano, devido ao xadrez. Já seu oponente da partida vai ao centro cultural há quase dez anos. Nesse período, Roberto coleciona histórias suas e de seus amigos. Ele me conta, empolgado, um fato que não teve repercussão na mídia brasileira e que poderia ter espaço neste texto: um colega seu, frequentador das partidas de xadrez, foi campeão mundial da modalidade, representando a polícia brasileira em 2005. “Nós temos um campeão mundial de xadrez, o Alexandre Simioni, e ele frequenta o Centro Cultural. Nós sabemos disso, não porque ele queria se envaidecer. Como a gente está no meio ‘enxadrístico’, a gente vai perguntando ‘como você joga tão bem assim?’ Ele foi explicando para a gente, com o tempo”, conta Roberto.
Enquanto Romeu vencia a partida, chegaram os outros integrantes do grupo, fazendo muito barulho. Eu estava inserida em um ambiente de amigos, todos se conheciam e brincavam entre si sobre a habilidade dos colegas – ou a falta dela.
Entre os jogadores, conheci Denis, um jovem que ensina quem estiver passando pelo CCSP a “fortalecer a base” da pirâmide de conhecimentos no xadrez. Ele conta, enquanto me ensina a dar um xeque-mate utilizando a “estratégia da escada” com duas torres, os benefícios que jogar traz. Usa como exemplo o ‘seu’ Peter, um dos frequentadores das rodas de xadrez que, com 94 anos, joga e conta histórias com muita lucidez. “Peter acompanhou o holocausto. O cara não tem só um nome; ele tem um número gravado no braço. E tá aqui, jogando”.
Reforçando a ideia de Denis, Roberto me conta o porquê de jogar xadrez: “Eu jogo por entretenimento. Há colegas que participam de torneios, mas eu jogo para deixar o alemãozinho pra bem longe. Você sabe qual alemãozinho? O Alzheimer”, diz o senhor, enquanto ria.
Se a estrutura do Centro Cultural São Paulo esconde salas e documentos valiosos – como a discoteca Oneyda Alvarenga, os arquivos da missão de pesquisas de Mário de Andrade e a gibiteca Henfil, que nem entraram nesse texto – as pessoas que o frequentam são um acervo à parte de histórias e memórias. Vale a pena conhecê-las.