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Sono: viajando pelo universo fantástico do tédio e do absurdo

Imagine ficar dezessete dias sem dormir. É um absurdo, certo? O simples fato de supormos essa realidade já nos dá cansaço. Porém, não é assim que a protagonista de Sono (Alfaguara, 2017), conto do escritor japonês Haruki Murakami, se sente. Em um relato em primeira pessoa, ela se diz nem um pouco cansada. Quer ler, …

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Imagine ficar dezessete dias sem dormir. É um absurdo, certo? O simples fato de supormos essa realidade já nos dá cansaço. Porém, não é assim que a protagonista de Sono (Alfaguara, 2017), conto do escritor japonês Haruki Murakami, se sente. Em um relato em primeira pessoa, ela se diz nem um pouco cansada. Quer ler, andar pelas ruas, se exercitar, ou seja, aproveitar a vida agora que não perde um terço dela dormindo.

Ela – a qual o autor não nomeia, igualmente a todos os outros personagens da história – é uma mulher em seus 30 anos, casada e com um filho. Seu marido é dentista, trabalha o dia todo no consultório. O filho só chega no final da tarde em casa. No restante do dia, ela fica sozinha. Tenta arranjar pequenas coisas para fazer, resolver alguns problemas no banco, fazer compras no mercado. Mas, em geral, sua rotina inteira gira em torno dos dois: se despede deles de manhã, os espera voltar. Perto do almoço, cozinha. De noite, a mesma coisa. É um dia a dia mecânico e monótono de uma dona de casa.

Esta mulher já havia passado por algo parecido anteriormente, um período de severa insônia. Só que, diferentemente de agora, antes sentia-se presa em um estado de torpor, exaustão. Depois de quase um mês sem conseguir dormir, o problema sumiu assim como apareceu: sem nenhuma explicação. Já no presente, mais de dez anos depois, não sente um pingo de sono ou de fadiga.

O momento em que ela não consegue mais dormir é marcado por estranhezas. De madrugada, enquanto seu marido dormia profundamente ao seu lado, a mulher simplesmente acorda assustada e depara-se com um velho homem ao pé de sua cama. Ele segura algo na mão, um regador. De repente, joga uma enorme quantidade de água em seus pés, mas ela não consegue se mexer, está totalmente paralisada. Ao que ela chama de estado de transe após um sonho, não é muito explicado. A sensação de paralisia passa gradualmente depois que o senhor desaparece com mistério. Está encharcada de suor e muito agitada. Em uma tentativa de acalmar-se, vai até a sala e bebe um pouco de conhaque – algo que ela raramente fazia depois que se casou. O susto já passou, mas o sono não vem. O que fazer agora? Decide ler e, quando percebe, já são 6 da manhã.

E é assim que os dezessete longos e anormais dias se seguem. O livro em momento algum dá explicações do porquê ela não conseguir dormir. É aberto a interpretações meio a elementos surreais e fantásticos. Mas com certeza uma mudança, que poderia se configurar como uma descoberta de si mesma, acontece com a personagem principal. A falta de sono, na realidade, aumenta sua percepção de mundo. Ela questiona seu casamento, sua função doméstica, seu papel como mãe. Ninguém ao seu redor percebe que ela não dorme, ninguém nota o quão diferente ela está, nem mesmo seu marido. Por isso a dúvida quanto ao seu amor, sua felicidade e satisfação. Todos os tópicos de sua vida são postos em cheque agora que ela vê-se mais claramente. E, na realidade, o que ela não suporta mais é esse cotidiano tedioso e automático, uma velha repetição sem sentido.

Decide não mais preocupar-se com o sono. Vai usufruir dessa condição. Enxerga sua situação como uma evolução frente à humanidade, uma expansão de sua vida e de sua consciência. Livros que ela consulta tratam o ato de dormir como uma forma de equilibrar “tendências” humanas de ação e pensamento. Porém, ela já não queria que suas tendências – essencialmente as domésticas – a consumissem. Queria ter autonomia e um jeito de tomar controle sobre sua vida (e, consequentemente, suas “tendências”).

O livro, com apenas 120 páginas, conta com elementos fantásticos e surreais essa história filosófica e pessimista. O final é simbólico, aberto às diversas perspectivas e reflexões. Sono é uma metáfora para o descontentamento com a rotina e com a mecanicidade e o despertar para novas experiências que trazem sentido à vida. O fato da mulher não ter um nome enfatiza a universalidade da questão: qualquer um poderia assumir o seu papel e estar insatisfeito com a monotonia. Não espere respostas. Ao leitor, apenas resta sua imaginação e seus questionamentos. Aliás, a edição feita pela Alfaguara possui ilustrações que muito acrescentam à obra, com traços psicodélicos e caóticos que traduzem o clima surreal do livro. Desta forma, tanto Murakami quanto as ilustrações de Kat Menschik  transitam bem entre o real e o imaginário e conseguem transmitir o tédio do cotidiano insípido.

Por Giovanna Simonetti
g_simonetti@usp.br

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