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Uma palavra que buscamos evitar

Conheça mais sobre o termo visto como negativo mas essencial em nossas vidas

(Ilustração: Laura Alegre – Comunicação Visual/Jornalismo Júnior)

Por João Pedro Malar (joaopedromalar@gmail.com)

“Lamentar ou ter pena por alguma coisa feita ou dita ou não feita ou não dita.”- Dicionário Aurélio, 2018.

Qual é a primeira palavra que vem a sua mente ao ler essa significação? Se foi “arrependimento”, ou algo próximo a isso, você está bem familiarizado com esse sentimento. O arrependimento trabalha exatamente com essa ideia de lamentação, pesar. No geral, subdivide-se em dois tipos: o pelo ato realizado ou o pelo ato não realizado.

Mas afinal, qual a origem dessa palavra? Como lidamos com o sentimento por ela representado? E como a sensação de arrependimento surge em nossa mente? Será que, em alguma outra área do conhecimento, “arrependimento” possui outro significado?

Para entender a origem dessa palavra, é importante, primeiro, entender sua utilização no mundo das artes. Esse termo pode representar uma via temática, a retratação de uma sensação de arrependimento. Ou, pode representar uma técnica artística, baseada em uma correção, repintura de uma parte da obra pelo artista que a está produzindo.

Mas como identificar essa repintura? Segundo Fernanda Pitta, historiadora da arte e curadora da Pinacoteca de São Paulo, “quando um pintor repinta uma parte de uma obra, depois reaparece o pigmento que estava em baixo, porque o de cima decaiu ou se deteriorou.” Essa deterioração ocorre devido a um processo químico de reação da tinta com o próprio ambiente. O estudo desses arrependimentos, ou seja, dessas correções, é muito importante para os historiadores da arte, já que isso permite que eles entendam o processo criativo e de produção por trás de uma obra, além de entender melhor o seu autor.

Na arte, essa técnica de correção foi nomeada na atual Itália de Pentimento. Segundo Érica Santos Soares de Freitas, pós-doutura em Língua Portuguesa e membra do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa (NEHiLP), a palavra “arrependimento” tem sua origem exatamente a partir dessa palavra italiana. Essa relação vem da ideia de que um pintor sentiria remorso de algo feito em sua pintura, isso seria um tipo de arrependimento.

A obra O Velho Guitarrista, de Pablo Picasso, é um exemplo de pintura que passou pelo processo de pentimento, uma repintura por cima de algo. (Imagem: Reprodução)

Ainda segundo Freitas, a palavra “arrependimento” surgiu na língua portuguesa no século 15, com o livro Crónica de Portugal de 1419, no trecho: “que vos arrependeres em tempo que ho arrependimento vos prestara pouquo”. Já a palavra pentimento tem sua origem na união do verbo italiano pentirsi (ação de sentir dor ou remorso) com o sufixo -mento. O verbo pentirsi tem sua origem do latim tardio repaenitere, que significa sentir pesar. Esse último verbo tem sua origem no latim clássico paenitere, que possui significado semelhante ao anterior e aparenta ser, de acordo com Freitas, a origem central da palavra arrependimento.

A grafia da palavra também teve variações com o passar dos séculos. A professora Vanessa Martins do Monte, coordenadora do NEHiLP e doutora em Filologia e Língua Portuguesa, aponta grafias antigas atestadas pelo dicionário Houaiss: rreprehendimẽto e rrepentimento no século 14, arrependimento e arepimdimento no século 15.

A primeira definição formal dessa palavra veio no dicionário criado por Rafael Bluteau, autor de um dos primeiros dicionários da língua portuguesa, publicado no século 18. Ele define a palavra como:  “O pesar, que se tem do que se tem feito, ou dito. Penitência.” Porém, Martins ressalta que, mesmo esse significado tendo se mantido com o tempo, o que é considerado como pesar varia de acordo com a época e cultura analisadas.

Já como tema, o arrependimento é retratado, principalmente, em pinturas religiosas. Aqui, prevalecem as que difundiam a ideologia da Igreja Católica e poderiam, até, ter seus autores ligados à ela. O arrependimento dentro da religião é tratado a partir de uma ideia de conversão espiritual, um exame de consciência. Esse sentimento é visto como positivo, pois representa uma busca pela salvação, pela iluminação religiosa.

A obra Madalena Penitente, pintada em 1565 por Tizian, é um dos exemplos do uso do arrependimento como tema nas obras do período, geralmente atreladas à própria Igreja. (Imagem: Reprodução)

Nas chamadas Pinturas de Gênero, que surgiram nos Países Baixos em meio à expansão do Barroco na Europa, o arrependimento é utilizado para dar caráter moralizante às obras. Nesse sentido, a ideia seria mostrar as consequências de uma ação vista como errada ou contrária à moral da sociedade da época. O espectador, impactado pela obra, evitaria um possível arrependimento gerado ao realizar a ação representada. Além disso, ao longo da história da arte, há momentos em que as temáticas de melancolia e arrependimento se aproximam.

A obra A Fazedora de Anjos, de Pedro Weingärtner, é um grande exemplo de uma Pintura de Gênero que busca ter um caráter moralizante. Na pintura, a jovem da esquerda se relaciona com o homem que a cumprimenta. Depois disso, ela engravida e dá a luz a uma criança. Arrependida, entrega o bebê a uma senhora — a fazedora de anjos — que o mata. (Imagem: Reprodução)

Em relação aos artistas, Fernanda Pitta afirma que cada um lida com o seus arrependimentos de forma diferente. Alguns incorporam essa sensação em seus processos produtivos, permitindo melhoria de suas futuras obras ou até da obra que está sendo feita no momento. Já outros, não possuem a mesma reação. O arrependimento os leva a esconder obras — acabadas ou não — ou até destruí-las. Esse recorte mostra, também, como as pessoas como um todo tratam o arrependimento, e como esse sentimento pode ser destrutivo ou construtivo.

Segundo a psicanalista Aline Souza Martins, o arrependimento não é abordado conceitualmente dentro da psicanálise. Na psicologia como um todo, porém, ele é visto como “um sentimento despertado quando uma pessoa  tem um pesar sobre algo que fez ou não fez.” Mesmo assim, Souza Martins explica que existem dois conceitos psicanalíticos que, juntos, abarcam o que seria o sentimento de arrependimento.

O primeiro conceito seria a culpa. Para a psicanalista, a culpa é importante para o indivíduo e para sua participação em sociedade. É evocada por gatilhos, sejam eles advindos de algo que fizermos ou de nosso inconsciente. Esse sentimento faz parte do desenvolvimento natural dos indivíduos, e é significativo pois possibilita mudanças, evoluções.

Uma história que trabalha com a culpa é a do Totem e Tabu, criada pelo neurologista Sigmund Freud para dar uma explicação mítica para o surgimento da sociedade. Segundo ele, havia inicialmente um grupo formado por um pai, que seria detentor de todos os bens e da exclusividade de se relacionar sexualmente com as mulheres. Os filhos desse pai, porém, acabariam por ser reprimidos e limitados, gerando neles uma grande raiva. Essa raiva levaria os filhos a atacarem o pai, matá-lo e, então, comê-lo. A partir daí, porém, os filhos perceberiam a atrocidade que cometeram e se sentiriam culpados. Para evitar situação semelhante e conseguir estruturar o grupo em uma sociedade, evitando que novas atrocidades sejam cometidas, os filhos criaram um conjunto de regras, visando controlar os impulsos básicos do homem (sexo e violência). A história mostra que, para além da culpa, foi o arrependimento que motivou a criação dessas regras e possibilitou o estabelecimento da sociedade.

Martins também trouxe a visão da psicanalista Melanie Klein. Klein defende que a culpa é algo natural no desenvolvimento humano, já que a partir dela é possível realizar mudança, evolução e correção de nossos pensamentos e atos. Para ela, o homem não consegue controlar a chamada ambivalência — manifestação intensa dos sentimentos de agressividade e busca de prazer sexual — e isso o leva a comportamentos e ações contraditórios. A culpa gerada por essas ações permite auto reflexão, reconhecimento de erros e alteração em nossos comportamentos, hábitos e pensamentos. Essa transformação é chamada por Klein de reparação, e pode inclusive ser direcionada para o outro, com a prática de ações mais conscientes.

A obra Remorso de Judas, de José Ferraz de Almeida Júnior, é um exemplo da temática do arrependimento dentro da religião, onde é amplamente explorado. (Imagem: Reprodução)

Outro psicanalista, Lacan, fala que o arrependimento está relacionado com a distância entre a imagem que construímos em relação ao que somos e a que construímos em relação ao que deveríamos ser (o chamado ideal de ego). O arrependimento seria gerado quando não conseguimos atingir esse ideal criado por nós mesmos. Essa idealização de imagem está associada a construções sociais que nos são repassadas, a produtos internos de nossa mente e a influência de nossos pais, em especial, com frustrações e desejos não realizados deles que são repassadas para nós. Para Martins, o arrependimento propicia revisão desses padrões e imagens que criamos.

O outro conceito que a psicanalista usa para explicar o arrependimento é o luto. Para ela, lidar com ele e conseguir aceitar a perda de coisas, ou pessoas, também é essencial para o desenvolvimento humano. O arrependimento seria, assim, a junção dos conceitos de culpa e luto. Sentimos pesar por algo e nos culpabilizamos pela ação (ou omissão).

Martins defende que o arrependimento é essencial para realizarmos um processo profundo de auto reflexão, entendendo as origens sociais e naturais de nossas atitudes,  questionando imagens pré-concebidas e alterando nossas ações e raciocínios. A psicanalista defende que o processo associado ao arrependimento pode ser duro e doloroso, portanto é importante que as pessoas busquem ajuda para lidar com ele. Por mais que o modo de lidar com esse sentimento varie de pessoa em pessoa.

Uma ferramenta de auxílio seria a religião, que pode, para Martins, ter “duas funções opostas”. Por um lado, pode ser usada para lidar com o arrependimento, já que fornece uma figura externa que nos perdoaria. Ao mesmo tempo, porém, também pode gerar situações que levem a arrependimentos, devido ao estabelecimento de dogmas. Não seguir esses dogmas gera arrependimentos, que seriam aplacados pela própria religião. Cria-se, desse modo, um ciclo sem fim.

A psicanalista defende que a melhor ajuda para o arrependimento é a procura de profissionais especializados. Eles ajudariam a canalizar a sensação de arrependimento, muitas vezes intensamente negativa, para um lado transformador e reflexivo, auxiliando no processo de desenvolvimento dos indivíduos.

Existem, também, dois tipos de arrependimento: o de curto prazo e o de longo prazo. Pesquisas indicam que o de curto prazo está associado a ações já feitas, e o de longo prazo, a ações não concretizadas. Isso acontece pois mantemos, em nossa mente, uma situação imaginária, teorizando sobre o que poderia ter ocorrido de diferente dependendo de tal ação. Como nossa imaginação não possue limites, acabamos por refletir e focar muito nas possibilidades. Interessantemente, porém, outras pesquisas indicam que as pessoas procuram evitar mais o arrependimento de curto prazo, embora não se saiba explicar o porquê.

Na verdade, outros aspectos do arrependimento ainda não foram completamente explicados. Ainda hoje, não se sabe exatamente como é o processo  que gera os arrependimentos em nosso cérebro. É isso que explica a Professora Associada do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e membra do Laboratório de Neurociências da USP, Maria Inês Nogueira.

A professora explica que todas as emoções são adaptativas, e com o arrependimento não é diferente. Elas existem para serem usadas de modo a impulsionar nossa razão. Toda emoção sentida gera uma reflexão e uma ação posterior. Seria esse o caso de uma ação pós-arrependimento, que aumentaria a tendência de sobrevivência do homem, pensando no seu aspecto mais básico de comportamento. A razão traria, assim, um aprendizado. O arrependimento é importante pois é com ele que reconhecemos erros, refletimos sobre eles e conseguimos aprender e evoluir.

A origem de qualquer sentimento está ligada aos nossos 5 sentidos. A professora explica que “recebemos estímulos a partir dos nossos sentidos, eles são associados a conceitos e então produzem ideias, impressões e ações (respostas).” Entre os conceitos e ideias produzidos, estão os sentimentos, e, entre eles, o arrependimento.

O processo de criação de um sentimento a partir de uma sensação (ou estímulo) é resumido no chamado Circuito de Papez, uma versão mais simplificada que mostra os locais do cérebro pelos quais uma sensação passa. Nestes, são atribuídas a ela ideias e efeitos e, no final do ciclo, surge a ação resultante que será realizada.

Circuito de Papez. (Imagem: Caroline Aragaki – Comunicação Visual/Jornalismo Júnior)

Vale lembrar que outras partes do sistema nervoso também estão associadas a esse Circuito, em especial considerando o alto grau de comunicação existente entre as áreas do cérebro. O Giro do Cíngulo, por exemplo, se projeta (passa informações) para o Hipotálamo, que repassa informações para a hipófise, responsável por regular os hormônios das glândulas do organismo. Isso gera alterações no sistema endócrino que afetam todo o funcionamento do corpo. Isso mostra a força dos sentimentos, e como eles conseguem impactar, até, nossa saúde.

No caso específico do arrependimento, o sentimento é coordenado pelo córtex pré-frontal dorsomedial, pela ínsula (um dos lobos do cérebro) e pelo córtex órbito frontal, que também está associado à visão. A participação dessa última região é exclusiva do arrependimento, sendo um diferencial em relação aos outros sentimentos.

Inês Nogueira lembra que, mesmo que o arrependimento em si tenha sido superado, situações semelhantes à geradora do arrependimento podem despertar reações semelhantes às geradas anteriormente. Isso também requer trabalho de superação, com a substituição desse sentimento por outros melhores e positivos. Para isso, existem vários métodos e alternativas, desde consultas com psicólogos a prática de meditação.

Interessantemente, pesquisas apontam que os animais também são capazes de se sentirem arrependidos. Isso ressalta o conceito de que os sentimentos são ferramentas adaptativas. Tanto nós quanto os animais teríamos capacidade de nos arrepender de ações que representam ou representaram uma ameaça a nossa sobrevivência, evitando que as realizemos novamente. Esse lado instintivo de nos arrependermos de uma ação que nos ameace é algo transmitido geneticamente, a partir dos nossos antepassados.

Mesmo com todos essas faces do arrependimento, Inês Nogueira afirma também existirem disfunções que impedem o cérebro de processar uma informação. Com isso, ele não consegue gerar uma reflexão sobre o arrependimento nem uma transformação. Em alguns casos, o arrependimento nem é criado. Isso aconteceria quando o circuito associado a esse sentimento está danificado. O caso mais emblemático é o de Phineas Gage.

Gage trabalhava com explosivos em uma companhia de mineração, sendo responsável por depositar a pólvora que seria utilizada para explodir rochedos. Fez isso durante anos, até que, um dia, cometeu um erro. Ele utilizou uma barra de ferro para colocar a pólvora na rocha, a pressão porém gerou um atrito, que gerou uma faísca, e então houve uma grande explosão. Gage foi atravessado pela barra de ferro no córtex órbito frontal e parte do frontal, e pessoas morreram. Depois disso, ele nunca mais conseguiu sentir arrependimento pelos seus atos, nem se arrepender do acidente. Isso aconteceu porque a parte do cérebro responsável pelo arrependimento foi avariada. O ciclo foi danificado e Gage perdeu a capacidade de sentir esse, e outros, sentimentos.

Phineas Gage e a barra de ferro que o atravessou. Foto retirada pouco após o ano do acidente, 1848. (Imagem: Reprodução)

É importante diferenciar o arrependimento de outras sensações, como a de desapontamento. Essa última está associada necessariamente a outro indivíduo, enquanto o arrependimento é algo associado ao próprio indivíduo. Outra sensação é a inveja, que na verdade acaba por intensificar o arrependimento. Invejamos o sucesso ou a conquista do outro, e nos arrependemos por não termos tomado decisões ou ações que poderiam possibilitar um sucesso e reconhecimento social semelhantes.

Por último, é importante ressaltar que hoje esse sentimento possui outro aspecto: é utilizado nas estratégias de venda atuais. A propaganda busca estimular uma sensação de possível arrependimento caso não compremos algo, tentando nos influenciar para que realizemos a compra. Nos jogos, por exemplo, é trabalhada a ideia de nos arrependermos de decisões tomadas em uma certa etapa do jogo e pagarmos para alterá-las, ou para nos preparamos melhor para a situação que já encontramos e encontraremos novamente.

Para além de uma palavra, o arrependimento possui múltiplas facetas. Ferramenta evolutiva, instrumento de mudança e evolução, técnica de pintura, temática na arte. Todos esses aspectos se reúnem para compor a definição de uma das palavras que mais nos acompanha, e que mais buscamos evitar.

1 comentário em “Uma palavra que buscamos evitar”

  1. Maria Ines Nogueira

    O artigo ficou deveras instigante, parabens.
    Gostei tb de conhecer este espaço de divulgação/discussão inovador e corajoso pelos temas que aborda e a forma como o faz!

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