Por César Costa e Gabriel Cillo
Por mais que não tenha o mesmo valor de outros tempos, o Paulistão nunca deixou de ser uma das competições mais icônicas do futebol brasileiro. Histórias foram sendo escritas em cada edição, jogadores sendo elevados ao patamar de ídolos e, o mais importante, memórias que foram registradas e que nunca mais serão esquecidas no imaginário futebolístico do torcedor.
Em 1998, tivemos um dos maiores exemplos disso tudo: o Campeonato Paulista conquistado pelo São Paulo Futebol Clube. No aniversário de 20 anos do título, o Arquibancada conta o que de mais importante aconteceu em uma das edições mais lembradas pelos torcedores tricolores.
O modelo do campeonato
O Campeonato Paulista de 1998 tinha um modelo bem diferente do atual: primeiro, todos os times, exceto os quatro grandes (São Paulo, Corinthians, Palmeiras e Santos), foram divididos em dois grupos de seis, com jogos de turno e returno. Os quatro melhores de cada grupo se classificaram para a próxima fase, enquanto os dois últimos disputaram um quadrangular conhecido popularmente como “Torneio da Morte”, rebaixando o lanterna entre esses quatro, que no caso foi o Juventus da Mooca.
Na segunda fase, novamente em dois grupos de seis times cada, os quatro grandes, que disputavam o Torneio Rio-São Paulo durante a primeira fase, foram integrados. Neste momento, é disputado outro turno e returno. Agora, os dois melhores se classificaram para as semifinais, que são disputadas num sistema de mata-mata de ida e volta. A final mantém o mesmo regulamento das semis: sistema de mata-mata, e, em caso de empate no placar agregado, o time de melhor campanha ficaria com o título.
O time do Corinthians não era qualquer um
O Sport Club Corinthians Paulista mudou de patamar, como time de futebol, na década de 1990. Estamos falando em termos de títulos conquistados, considerando que sempre teve destaque em cenário nacional por conta do tamanho de sua torcida, a segunda maior do Brasil. No entanto, foi em 1990, durante a gestão do então presidente Vicente Matheus, que o Corinthians começou a crescer no aspecto de conquistas, colocando-se como vencedor. Essa guinada veio com o primeiro título de Campeonato Brasileiro de sua história, coincidentemente, em cima do São Paulo.
No final dos anos 90, o Corinthians começou a formar um esquadrão de craques que iria conquistar muitos títulos de relevância. E, para isso, teve a ajuda de grupos privados que investiram no clube, permitindo ao presidente em exercício no período, Alberto Dualib, contratar muitos craques como: Gamarra, Rincón, Vampeta, Edílson Capetinha, Dida e Marcelinho Carioca, o “pé de anjo”.
No Campeonato Paulista de 1998, esse Corinthians comandado por Vanderlei Luxemburgo alcançou o primeiro lugar de um dos grupos da segunda fase.
Caminho do campeão
O São Paulo começou o ano já com um grande espetáculo. Um Morumbi reformado foi palco do jogo comemorativo entre o time tricolor contra um combinado de Santos e Flamengo no dia 25 de janeiro, aniversário da cidade de São Paulo e também do clube.
Ainda nesta partida, o grande destaque ficou pela presença do ídolo Raí. Apesar de não ser sua volta definitiva – essa que aconteceria só quatro meses depois, pelo segundo jogo da decisão do Paulista –, serviu como um gostinho do que estaria por vir naquela temporada.
O primeiro compromisso oficial do Tricolor Paulista era na já extinta Taça Rio-São Paulo. Naquela edição, que reuniu os quatro grandes de São Paulo (Corinthians, São Paulo, Palmeiras e Santos) e os quatro grandes do Rio de Janeiro (Flamengo, Fluminense, Vasco e Botafogo), o São Paulo até conseguiu chegar na final, mas parou no Botafogo e ficou com o segundo lugar.
O Campeonato Paulista viria ser a segunda competição do ano. Além do vice em 1998 no Rio-São Paulo, o São Paulo também ficou com outro vice em 1997, justamente no Paulista, contra o mesmo rival que faria a final de 98, o Corinthians. O grupo são-paulino de 1998 reunia novos talentos que viriam a se destacar bastante naquele ano: o futuro mito da torcida tricolor, Rogério Ceni, e o futuro pentacampeão mundial pela seleção brasileira, Denílson. Além deles, era destaque o artilheiro do Paulista de 1998 com 12 gols, Françoaldo, conhecido popularmente como França.
A primeira rodada foi logo um clássico contra o Santos. O time da baixada contava com figuras conhecidas como o centroavante Muller, o goleiro Zetti, ídolo tricolor, e Emerson Leão como técnico. Mesmo com o Santos vindo de 11 jogos invictos, o São Paulo conseguiu a vitória dentro da casa do adversário, em plena Vila Belmiro, pelo placar de 3 a 2, com gols de Carlos Miguel, Fabiano e Denílson. Muller e Ronaldão balançaram as redes pelo Peixe.
Depois disso, o Tricolor teve a melhor campanha da segunda fase de grupos: oito vitórias, um empate, com a Portuguesa, e uma derrota, para Matonense, somando 25 pontos. Nesse tempo, o jovem atacante França fez oito gols e o goleiro Ceni também marcou duas vezes, uma delas no jogo do returno justamente contra o Santos. E na última partida da fase de grupos, o São Paulo deu show com uma goleada: 6 a 1 em cima do lanterna do grupo, São José, com gols de Dodô, Aristizábal duas vezes, Rogério Ceni, Edmílson e Marcelinho.
A disputa das semifinais seria contra o segundo colocado do grupo oposto, o Palmeiras. No primeiro jogo, na casa alviverde, os palestrinos ficaram com um a menos ainda no primeiro tempo, após a expulsão do lateral-direito Arce, facilitando a vida do Tricolor. O São Paulo fez valer a superioridade numérica e, mesmo na casa do adversário, conseguiu uma vitória importantíssima por 2 a 1 graças aos gols de Denilson e Dodô. Na volta, não teve muitas dificuldades para se classificar e garantir um lugar na final. Dessa vez os gols vieram dos pés de França e um contra de Rogério, defensor palmeirense.
A final seria contra um forte Corinthians, que futuramente seria campeão brasileiro daquele ano. Mas isso não foi problema para o time de Nelsinho Baptista.
A grande final
Se do lado do São Paulo estava Nelsinho Baptista na área técnica, no comando do Corinthians havia um dos melhores técnicos da história do futebol brasileiro, Vanderlei Luxemburgo. O campeão do Paulistão de 1998 sairia de um confronto em dois jogos, ambos disputados no estádio Cícero Pompeu de Toledo, o conhecido Morumbi. E o São Paulo, por ter feito a melhor campanha na segunda fase, tinha a vantagem do empate no agregado dos dois jogos.
Jogo de ida – 3 de maio de 1998 – Estádio do Morumbi:
Corinthians 2 x 1 São Paulo
No jogo de ida, o primeiro gol foi do Corinthians, em jogada de Souza, que cruzou do lado esquerdo do ataque para Marcelinho Carioca fazer de cabeça. O São Paulo buscou o empate em escanteio cobrado por Denílson. França, no meio da área, escorou de cabeça para Fabiano, no segundo pau, finalizar também de cabeça e mandar para as redes. Aos 22 minutos da etapa complementar, veio o segundo do Corinthians. Em cruzamento de Marcelinho, após num escanteio cobrado com sua categoria habitual, batendo de três dedos e colocando curva na bola, Cris antecipou Rogério Ceni e colocou valores finais na partida. O Coringão saía na frente e a história de 1997 se repetia.
O elemento Raí
Raí Souza Vieira de Oliveira chegou no futebol francês em 1993. Ficou no Paris Saint-Germain (PSG) durante cinco anos, lugar onde virou um dos favoritos da torcida. Antes de ser idolatrado na França, ele também teve uma passagem histórica pelo São Paulo: sob o comando de Telê Santana, Raí ajudou o Tricolor a ganhar inúmeros títulos, entre eles o Campeonato Brasileiro de 1991, a Copa Libertadores da América duas vezes, em 1992 e 1993, e a Copa Intercontinental de 1992, esta última sendo melhor jogador do torneio e marcando dois gols na final contra o Barcelona.
Esse ícone do futebol brasileiro foi quem roubou todas as atenções do segundo jogo da final, mas de uma forma um tanto quanto peculiar. Raí veio de maneira inesperada, exclusivamente para o segundo jogo da final, fato permitido pelo regulamento daquele ano. O próprio Raí conta: “no começo do campeonato, acho que nem os dirigentes do São Paulo sabiam que existia essa possibilidade. Eu já tinha fechado o acordo, mas, em nenhum momento, ninguém tinha citado essa possibilidade. Aí perceberam e me ligaram. E falaram ‘Raí, você tem a chance! Vem pra cá antes e tal que dá pra você jogar a final’” disse em entrevista ao globoesporte.
Por mais que se esperasse algum tipo de atrito com o time pelo fato dele chegar para jogar apenas a final, o grupo pareceu unido, pelo menos de acordo com declarações de algumas figuras relevantes, também ao GE. “Eu reuni o grupo no meio do campo, antes do treino, e falei para eles ‘o Raí vai jogar amanhã, vai sair fulano e vai entrar o Raí’. E eu senti assim um astral grande, uma nuvem bem leve no meio grupo, e falei que seria importante a entrada dele”, disse Nelsinho Baptista.
Denílson, outro personagem importante da campanha, ainda fortalece a tese do grupo realmente estar de acordo com a entrada do então camisa 23. “Acho que não teve nenhum cara que falou ‘caraca velho, o cara tá voltando’ com uma certa raiva, inveja”.
O próprio Raí ainda cita o clima bom do elenco: “E aí quando decidiu, ainda nesse coletivo, eu falei ‘esse time é muito bom, é fácil jogar aqui’. A atenção está em cima de mim, mas estou jogando com futuros craques, com certeza”.
Dodô, titular durante boa parte da campanha do Paulista e meio-campista que deu lugar ao Raí, até concordou com a atitude do treinador Nelsinho, mas lamentou um pouco a situação, desta vez em entrevista concedida ao Uol: “Eu era titular do time, mas no primeiro turno eu tive uma lesão no joelho, fiquei fora e voltei no segundo turno. Aí foram chegando as finais e, realmente, se fosse naquele momento, quem tinha que sair era eu, porque o França estava muito bem, o Denílson muito bem e o Raí, chegando, tinha que jogar. Tecnicamente eu não estava no nível dos caras, porque eu estava voltando de contusão. Eu concordei muito com a entrada do Raí no meu lugar, apesar de eu ter feito mais de 60 gols na temporada anterior. Com tudo isso, se tivesse que tirar alguém, seria eu mesmo”. E ainda completa: “Concordo com o Nelsinho. O que eu não concordo, e ele sabe agora, é porque ele não falou nada comigo, nunca falou. O meu comportamento foi exemplar mesmo. Eu não falei nada, esperei, mas eu penso que ele devia chegar pelo menos em mim e falar que iria me tirar.”
Jogo de volta – 10 de maio de 1998 – Estádio do Morumbi:
São Paulo 3 x 1 Corinthians
Público: 80 mil
Árbitro: Sidrack Marinho
São Paulo: Rogério Ceni, Zé Carlos, Capitão, Márcio Santos (Bordon) e Serginho; Alexandre Rotweiller, Fabiano, Raí (Aristizábal) e Carlos Miguel (Gallo); França e Denílson.
Técnico: Nelsinho Baptista.
Gols: Raí (30’) França (57’ 82’)
Corinthians: Nei, Rodrigo (Didi), Cris, Gamarra e Sylvinho; Romeu (Edílson), Vampeta, Souza (Marcelinho Paulista) e Rincón; Marcelinho Carioca e Mirandinha.
Técnico: Vanderlei Luxemburgo.
Gols: Didi (50’)
Foi coisa de cinema. O que aconteceu no dia 10 de maio de 1998 é de arrepiar qualquer fã do futebol. Talvez nem se fosse roteirizado poderia ser um filme tão bom quanto foi esta partida para o torcedor são-paulino. A volta do ídolo, a vingança em cima do rival e o título nas mãos. Praticamente um sonho real.
Com um gol de desvantagem no agregado, São Paulo teve que partir para cima. O domínio foi muito grande da equipe mandante, de acordo com Denílson: “O Corinthians não estava pegando na bola, e quando pegava, a gente já roubava a segunda bola. Ou eu errava um drible na intermediária, o volante já vinha e roubava a bola. A gente praticamente jogou a maioria do tempo no campo do Corinthians”.
O primeiro gol da partida não poderia ter sido de outro personagem. Aos 30 minutos do primeiro tempo, Zé Carlos cruzou pela direita e a bola foi desviada por Sylvinho. França ainda ganhou no alto, jogou ela para trás e Raí conseguiu cabecear forte para abrir o placar na sua reestreia.
No segundo tempo, o Corinthians assustou: logo com cinco minutos da segunda etapa, Didi recebeu na grande área e colocou a bola com perfeição no ângulo esquerdo de Rogério Ceni. O alvinegro voltava a colocar a mão na taça, o que não duraria muito tempo.
Pouco tempo depois, França e Raí voltaram a demonstrar um entrosamento que assombrava pela naturalidade demonstrada e pelo pouco tempo que tiveram para desenvolvê-lo. França tabelou com Raí, que desvencilhou o centroavante e o deixou na cara do gol. Livre de marcação, França só tirou a bola de Nei para ampliar para o São Paulo.
“Eu saí sentindo que era campeão”. Raí disse e acertou, após ser substituído. O São Paulo ainda ampliou o placar sem ele, faltando oito minutos para o fim. Denílson fez jogada individual pela esquerda e tocou para trás. Lá estava o artilheiro França, que virou e bateu, marcando o seu 12º gol no torneio e sagrando o São Paulo campeão paulista de 1998.
A história contada por quem estava lá
De dentro de campo, Arnaldo Ribeiro, atual editor-chefe da ESPN, trabalhou como repórter do Estadão em ambos os jogos. “Foi uma experiência e tanto. Na época das finais, eles escalavam duplas de repórteres para cada time. Eu nem era o principal setorista do São Paulo mas eu entrei com o Tuca Pereira de Queiroz. Entre um jogo e outro, o cara teve um infarto, e no segundo jogo ele não pôde ir. De repente, eu tinha meio que segurar a peteca, o cara era quem tava cobrindo o São Paulo o ano todo, e tinha um tensão no jornal muito grande. E com o São Paulo tendo perdido o primeiro jogo antes, [ficou aquela sensação] o Corinthians vai ganhar de novo…”
Arnaldo traz um episódio curioso daquela final: “Uma coisa que me marcou foi o treino de sexta-feira. Eu era um cara que prestava atenção em treino, eu adorava treino. A coisa que mais me chamou atenção: acabou e o técnico do São Paulo, Nelsinho, ficou treinando o Carlos Miguel. Ele não tinha jogado o primeiro jogo porque estava machucado, e ele tinha sido, pra mim, o principal jogador do Campeonato, era um jogador fundamental pro funcionamento do time. E aí eu vi ele dando uns três chutes no gol e falei comigo: ‘mesmo com 100 kg, esse cara vai jogar’. Todo mundo tava em cima do Raí e eu consegui vislumbrar que o Raí ia entrar com o Carlos Miguel, tive essa percepção que não ia ser só o Raí.”
Presente no segundo jogo da final, ele comenta sobre a atuação de Vanderlei Luxemburgo e a diferença de intensidade entre os dois times: “A final tem um negócio de duelo de treinador. Ainda marcava um momento muito bom do Luxemburgo. Ele conseguia reagir muito bem ao que o jogo proporcionava. Vários técnicos são bons na escalação e no trabalho durante a semana, poucos são bons durante o jogo. Luxemburgo era muito bom. Só que, às vezes, ele exagerava, e acho que nesse jogo ele exagerou. O Corinthians empata o jogo, o estádio vem abaixo e ele imediatamente faz uma substituição para segurar o time. Ele tinha colocado uma marcação individual no Raí com o Romeu, e o Raí estava ‘deitando’ no Romeu. Ele põe mais um cara para ajudar na marcação e o São Paulo cresce e faz 2 a 1, daí ele não consegue voltar. Ele até tenta fazer outra alteração, mas ele se perdeu dali”. E ainda comenta: “Durante o jogo, de fato, dava pra perceber que não só em termos de astral, mas em termos de jogo, o São Paulo tava engolindo o Corinthians.”
Arnaldo ainda fala um pouco da expectativa pré-jogo e a mística que havia em torno de Raí: “O time do São Paulo era melhor, mas tinha uma questão dos jogos decisivos contra o Corinthians que parecia que ia se repetir. A ideia de que o Raí pudesse desequilibrar a favor do São Paulo era mais uma ideia do que ele tinha sido do que propriamente o que ele podia produzir do grupo”.
Quanto ao desfecho do Paulistão de 98, ele diz; “Quando tem um personagem deste tamanho envolvendo um jogo só, é óbvio que vai ficar O jogo do Raí, O Paulistão do Raí. E o Raí tinha um histórico com o Corinthians de ter três gols numa final e toda aquela mística.”
No fim, ele ainda fala sobre um momento em especial da partida, comentando na perspectiva de torcedor: “Tem outro lance desse jogo que eu achei absurdo, se eu estivesse torcendo mesmo, eu entraria lá e bateria no cara (risos). No comecinho do jogo, o Marcelinho enfia uma bola pro Mirandinha, – não sei se estava 1 a 0 para o São Paulo ou 0 a 0 –, e o Mirandinha corria que nem um louco. Ele dispara e o Márcio Santos, que tinha sido convocado para a Copa de 98 dois, três dias antes, sente a coxa. Só que a bola tava rolando! Em vez do Márcio tentar interceptar a bola de algum jeito, ele abandona o lance e o Mirandinha entra cara a cara. Aí o Mirandinha, que corria mas não sabia chutar, chutou reto. Mas o Márcio saiu evidentemente para não agravar a lesão e jogar a Copa do Mundo. Quem entrou foi o Bordon, que jogou a final inteira. E vou te contar: pra ser campeão com Bordon na zaga, o time tava inspirado.”
Belo texto!