Esse filme faz parte da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique na tag no final do texto.
É uma tendência há algum tempo, pelos padrões de consumo vigentes, que longas se desenvolvam com uma importante discussão sobre identidades minoritárias ou desigualdades sociais. Mãe de Aluguel (The Surrogate, 2020) não é uma exceção à norma nesse aspecto, mas supera toda e qualquer expectativa com relação ao seu conteúdo.
Jess (Jasmine Batchelor) é uma web designer que mora em Nova Iorque. Ela decide se tornar a barriga de aluguel do seu melhor amigo Josh (Chris Perfetti) e seu marido Aaron (Sullivan Jones). No entanto, após 12 semanas de gravidez, um teste pré-natal revela que o feto possui trissomia do cromossomo 21, ou seja, Síndrome de Down.
O que torna a obra impressionante é que, em um contexto pelo qual a sétima arte está vulnerável à banalização, tokenismo e até mesmo uma indiferença fria em virtude de uma repetição viciosa e vazia dos denominados “temas importantes”, o filme faz com que o espectador verdadeiramente questione não apenas as suas hipocrisias, mas a de toda uma sociedade que se reafirma progressista e inclusiva.
O longa escancara o capacitismo enraizado inclusive às mais altas sociedades 𑁋 propriamente as que possuem as melhores condições financeiras para oferecer mais acessibilidade e qualidade de vida às pessoas com deficiência (PCD) 𑁋 e a relação intrínseca desse conceito à eugenia. Escrito e dirigido por Jeremy Hersh, não há receios em cutucar a ferida da função social e falsa consciência limpa de pessoas politicamente engajadas.
Nesse contexto, não há diminuição da culpa para qualquer minoria. Homens gays brancos ou negros e mulheres negras e amarelas são igualmente indiferentes e responsabilizados por seus atos. Há um recorte definitivo para a elite estadunidense ou de países europeus, mas não se reduz também exatamente a um rich people problems (problemas de pessoas ricas). Se trata de questionar o verdadeiro retorno dessa população à sociedade e como até mesmo a camada social mais politizada e erudita tende à segregação.
Ao discorrer sobre sua obra, Hersh afirma que os personagens do longa, assim como “tantos de nós” em suas próprias palavras, se orgulham de serem pessoas com mente aberta e progressistas. Porém, eles são acometidos por grandes questionamentos éticos sobre expectativas ligadas à paternidade, papéis e construções sociais. “O conflito do filme surge quando eles são finalmente confrontados com um tema do qual eles não sabem conversar”.
Com isso em mente, ele sai pela tangente da simplicidade narrativa e expande a crítica construída. Esse ponto somado à atuação admirável de Batchelor, além do cenário suburbano gentrificado nova iorquino, garantem uma excelência semelhante ao podcast do New York Times sobre desigualdade racial no ensino público estadunidense “Nice White Parents” 𑁋 traduzido como bons pais brancos.
Tudo isso construído sobre a garantia de uma representação honesta e real sobre pessoas com Down e suas famílias, ao expor que ela não é apenas incrível ou um milagre, mas sim natural e linda, além de ser carregada de especificidades e compromissos particulares.
É admirável acompanhar a força de vontade de Jess em não se submeter ao ambiente alienante que a cerca. Sem temer o ostracismo e a incompreensão, ela questiona todas as estruturas e até mesmo as desinformações propagadas por pessoas próximas em sua vida que, juntas, compactuam com tamanha exclusão.
Ao final, o que prevalece é uma reflexão inédita, até mesmo àqueles que se orgulham de seus posicionamentos, sobre o enraizamento profundo da negligência de justiça social em relação às PCDs.
Confira o trailer:
*Imagem de capa: Divulgação/Monument Releasing