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47ª Mostra Internacional de Cinema de SP | Em ‘Paraíso em Chamas’, a juventude feminina não precisa de pena

Roteiro despreocupado do filme acerta ao cativar pela honestidade, ao invés da piedade pelas protagonistas órfãs

No subúrbio sueco, três irmãs experienciam a liberdade no abandono. Sem os pais, as meninas de Paraíso em Chamas (Paradiset Brinner, 2023) vivem à deriva, e abusam da sorte de principiante para esquivar dos conflitos. Quase em uma contagem regressiva, uma visita domiciliar do Conselho Tutelar cronometra o longa e, enquanto o  assistente social não chega, elas sobrevivem ao verão com pequenos delitos e festas na piscina. A primeira direção de Mika Gustafson é premiada duplamente pelo 72º Festival de Veneza, na seleção de estrangeiros “Orizzonti”, e chega ao Brasil com a 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Como os cachorros de rua, que são recorrentes na tela, o escapismo une as meninas do bairro, e manifesta o tropo de família-escolhida. Para desviar dos problemas familiares, elas não fogem de casa – invadem condomínios, na procura de refúgio e refresco. As personagens nascem vira-latas, mas viram mulheres por meio de cerimônias inventadas. “É o sentimento pré-puberdade, quando o peito ainda é reto, de ser humano antes de se transformar em mulher”, declara a diretora; ao passo que a caçula perde os dentes de leite, a menstruação começa para a irmã do meio, e a passagem do tempo é celebrada com ritos que, naquele universo particular, são sagrados. O triunfo nas primeiras-vezes não se resume à ficção: a obra é a estreia de Mika na direção, de Alexander Öhrstrand no roteiro, e das atrizes protagonistas,  Bianca Delbravo, Dilvin Asaad e Safira Mossberg em frente às câmeras. 

Para evitar uma separação forçada, a filha mais velha parte em busca de alguém disposto a representar sua mãe perante a Assistência Social. É quando se constrói a tensão ambígua entre ela e a personagem Hannah (Ida Engvoll), moradora de um dos condomínios invadidos. Para Laura (Bianca Delbravo), ela simboliza a mãe perdida, enquanto Hannah vê na outra a juventude que perdeu com a maternidade. Incapazes de processar os vazios que personificam uma à outra, passam a ter encontros escondidos e, fugindo da responsabilidade maternal que lhes foi imposta, projetam na figura da parceira a supressão de seus anseios pessoais.

Com planos abertos esparsos, a diretora chamou de “câmera-cachorro” os cortes em que o telespectador fareja a paisagem, de arbusto em arbusto, e a visão se fixa em pontos avulsos do cenário. O trabalho de filmagem remete a Projeto Flórida (The Florida Project, 2017), drama enquadrado no ponto de vista prematuro das crianças. Mostra-se, sem o uso de palavras, que a narrativa está filtrada por um olhar pueril, cujas memórias afetivas não honram compromisso com os fatos. As famílias disfuncionais, em ambos os filmes, causam comoção pela edição despretensiosa, que não pede piedade ao espectador; este é convidado para acompanhar o veraneio que, entre brincadeiras simples, será atravessado pelo abandono. Em entrevista à Ion Cinema, Mika expressa o desejo de “mostrar o que é ser um ser humano nesses momentos quando a liberdade eufórica deita lado a lado com o desamparo total”.

 A referência à obra estadunidense é explícita quando se reconstrói o show dos fogos de artifício – tal qual as crianças da Flórida, as irmãs suecas se reúnem em um gramado para assistir, à distância, a reverberação celeste de um evento fechado. Em reforço ao conceito central de liberdade nos filmes, o compartilhamento do mesmo céu é o que a desigualdade social não consegue ceifar.

Em Projeto Flórida, o show de fogos de artifícios da Disney World é assistido por fora das grades. [Reprodução/X (antigo Twitter)/ OnePerfectShot]

Para além da fotografia, a instabilidade também se traduz no roteiro. A leveza que conduz o enredo motiva minutos de tela ociosos, que pouco adicionam à jornada, e poderiam ter sido melhor aproveitados. Mas, na condição de filme de estreia, não é destoante a aparição de informações dispersas, que enfrentam alguma dificuldade para se conectar com a trama.

Paraíso em Chamas é uma declaração de amor à irmandade. A aqueles que conhecem sua história e te fizeram ser quem você é. Uma ligação mais forte que todas as outras coisas”, diz Mika Gustafson. [Divulgação/IntraMovies]

Perante uma liberdade avassaladora, o cultivo e a transmissão de novas tradições é, para as irmãs, a imposição de perspectivas. Pela criação de uma cultura própria, consolidam um compasso fixo, em que podem finalmente criar raízes seguras. A expressão literal da busca por estabilidade é a procura por uma figura materna: Hannah ensina uma pegadinha para Laura, que consiste na quebra de confiança por alguns segundos; a primogênita repete a brincadeira com Mira (Dilvin Asaad), que logo a leva para Steffi (Safira Mossberg).

Laura reproduzindo, com Mira, a brincadeira que aprendera com Hannah. [Divulgação/IntraMovies]

Em Paraíso em Chamas, a adolescência abandonada é selvagem, suja e pequeno-criminosa.  No cinema, coros de irmãs frustradas, como o sucesso As Virgens Suicidas (The Virgin Suicides, 1999), ou o mais recente Cinco Graças (Mustang, 2015), insistem em um sofrimento feminino pautado no controle parental das meninas, restritas de qualquer liberdade. Dessa vez, o cenário de convento se desmonta, e a construção que antecede a experiência feminina não precisa se pautar na inocência, afinal, o roteiro não almeja conquistar compaixão. 

Esse filme fez parte da 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique na tag no final do texto. Confira o trailer:

*Imagem de capa: Divulgação/IntraMovies

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