“Nenhuma arte ― pintura e poesia inclusas ― comunica tão bem quanto o cinema, a natureza específica do sonho. Quando a escuridão se faz na sala e aparece este quadrado branco brilhante, nosso olhar se fixa, ele fica imóvel, não se afasta nem para a direita nem para a esquerda. Estamos sentados numa poltrona e as imagens se sucedem diante de nós, nossa vontade enfraquece pouco a pouco ― ela para progressivamente de funcionar. Somos cada vez mais incapazes de selecionar e de situar os acontecimentos, somos puxados para dentro de uma ficção e participamos de um sonho. E fabricar sonhos é algo de bem picante”.
Essa é uma das inúmeras respostas de Ingmar Bergman presentes no livro de entrevistas O Cinema Segundo Bergman, de autoria dos críticos Stig Björkman, Torsten Manns, Jonas Sima. A partir dessa fala é possível ter uma prévia do que era a essência do cinema para ele, um dos mais célebres cineastas da história da sétima arte. Ainda que carregados de referências a sua vida pessoal, seus filmes tentam levar o espectador a uma atmosfera de sonho, para que ele próprio construa suas interpretações.
O começo de tudo
O interesse de Ingmar Bergman pela sétima arte veio desde muito cedo. Nascido em 1918 em Uppsala, na Suécia, ele recorda ter visto seu primeiro filme com seis anos de idade. Algum tempo depois, passou a acompanhar o irmão em idas ao cinema aos fins das tardes de sábado. Esses passeios foram sintomáticos na sua inclinação para a área: o que mais o fascinava, para além do filme em si, era o projetor e o homem que o fazia funcionar.
Por isso, há anos o pequeno Ingmar desejava um projetor de cinema, ainda que fosse considerado muito novo para receber um de presente de sua tia abastada. Em um Natal, no entanto, o menino se viu cheio de falsas esperanças ao ver um pacote com a etiqueta “Fosner” embaixo da árvore: era para o seu irmão, que pouco se interessava por cinema de fato. “Felizmente, nós tínhamos, eu e ele, um monte de soldados de chumbo e, no dia seguinte, troquei metade do meu exército pelo projetor. Depois disso, perdi todas as guerras”, ele contou em uma das entrevistas. Mais tarde, descobriu que podia comprar bobinas por 5 centavos o metro e colá-las umas às outras. Assim começou a criar suas primeiras histórias, que comentava em voz alta enquanto girava a manivela.
Foi apenas depois que Bergman começou a se interessar pelo teatro ― área na qual atuaria extensivamente, moldando seu fazer cinema de maneira peculiar. Ele começou construindo um teatro de marionetes bastante rudimentar por volta de seus doze anos de idade. Isso se modificaria ao longo dos anos até seu bacharelato, entre 1924 e 1937, quando construiu teatros de marionetes mais complexos. Seu desenvolvimento enquanto dramaturgo foi tamanho que se estima que sua obra seja três vezes maior que a cinematográfica – que gira em torno de 60 longas, muitos deles feitos para a TV.
O maior legado que obteve da experiência como dramaturgo foi a teia relacional que desenvolveu com os atores. É nesse meio que conhece artistas emblemáticos, que estariam presentes em sua filmografia, como Bibi Anderson (Persona, Morangos Silvestres, O Sétimo Selo, Cenas de um Casamento), Harriet Anderson (Monika e o Desejo, Gritos e Sussurros, Noites de Circo), Mark von Sydow (O Sétimo Selo, Morangos Silvestres, Luz de Inverno) e Erland Josephson (Cenas de um Casamento, Fanny e Alexander). O senso de comunidade típico do teatro foi a maior herança nesse sentido. A sintonia entre ator e filme presente em seus longas é resultado da relação que o cineasta nutria com seus atores, permitindo diálogos que pudessem levar as cenas à excelência ― ainda que fossem totalmente diferentes da ideia inicial. “Eu sou uma parte deles mesmos, a parte complementar. Eles podem realmente me ajudar no meu trabalho cinematográfico”.
Introspecção como inspiração
A sua filmografia foi principalmente influenciada por sua vida pessoal e seus questionamentos interiores acerca do mundo. Ainda que seu interesse pelas artes já houvesse se manifestado desde cedo, durante toda a sua infância e adolescência Bergman se classificava como um menino “amorfo”, devido ao seu meio familiar e à escola que frequentava. Ele passava muito tempo na casa de sua avó, um ambiente extremamente religioso, onde “tudo se passava como se [vivessem] há cinquenta anos”. Para o cineasta, aquele era um espaço pouco estimulante e isolado do mundo exterior. Essa situação começa a mudar progressivamente em 1938, quando entra na escola superior e sente uma “leve brisa libertadora” ― por mais que esta ainda fosse “muito sufocante e [cheirasse] a mofo”.
Junto a essas circunstâncias, havia o sentimento de humilhação, tido por Bergman como um dos mais marcantes de sua infância. Isso pode ser visto como um dos motivos pelos quais desenvolveu uma forte crítica ao sistema de educação, evidente em Tormenta (Torment, 1944) ― a primeira aparição de Bergman nos créditos, como assistente de direção. A partir disso, ele passa a criticar a ordem burguesa e o sistema social em sua volta, ainda que isso apenas se manifeste de fato em filmes como Luz de Inverno (Nattvardsgästerna, 1962) e O Silêncio (Tystnaden, 1963). O cinema bergmaniano, via de regra, preocupa-se com assuntos atemporais ― por isso a predileção por temas metafísicos e filosóficos.
“Humilhar e ser humilhado são, na minha opinião, dois sentimentos que constituem uma componente ativa de todo nosso sistema social, e não falo somente pelos artistas.
Penso, por exemplo, que a burocracia que nos envolve é baseada em grande parte sobre um sistema de humilhações, o que faz dela um dos venenos mais terríveis e perigosos que existem atualmente.”
Nesse sentido, Bergman falava sobre aquilo que havia vivenciado e sobre os questionamentos decorrentes disso. Um exemplo seria a sua dura crítica ao cristianismo enquanto instituição, já que acreditava que o tema da humilhação se apresentava nessa doutrina como justificativa para a vigilância e a punição.
São diversas as nuances da religião abordadas em seus filmes. Em determinadas obras, ela é contraposta à arte: enquanto esta representa a criatividade como fator essencial à manutenção da sanidade dos homens, a religião seria aquela que faz promessas que não pode cumprir. Em O Sétimo Selo (Det sjunde inseglet, 1956), por exemplo, os artistas são os que vivem de forma mais plena e sã, além de serem os únicos salvos da morte; já o cavaleiro (Max von Sydow) vive atormentado pela proximidade da morte, tentando achar respostas à questões de caráter existencial, como a fundamentação de sua fé e o silêncio de Deus frente às suas preces.
Outro tema frequente nos filmes de Bergman é o mistério que ronda a morte. Quando jovem, o cineasta tinha medo da possibilidade de deixar de existir ― o que, mais uma vez, refletiu em seu trabalho quando adulto. É por isso que em O Sétimo Selo, a Morte é ao mesmo tempo cômica e macabra: ela representa a morte que não tem segredos e responde às perguntas do cavaleiro sem rodeios. Ela seria, portanto, a expressão material da superação do medo do diretor.
Experimentar mantendo o tradicional
Dentre os mais famosos filmes de Bergman está Persona (Persona, 1966). O longa gira em torno da relação entre a enfermeira Alma (Bibi Anderson) e a atriz Elizabeth Vogler (Liv Ullmann), que para de falar após uma atuação na peça de teatro Electra. Sob os cuidados de Alma, a atriz é aconselhada por sua psiquiatra a passar algum tempo em uma casa na praia ― onde a enfermeira passa os dias falando pelas duas.
O filme tem um prólogo de seis minutos composto por imagens desconexas, que é sintomático no que diz respeito ao seu caráter experimental. Ainda que a linguagem utilizada seja bastante inusitada, o longa é tradicional ao repetir os mesmos grandes temas da obra do cineasta, ainda que em um grau diferente de reflexão ― o que é bastante característico de Bergman. A tentativa de aproximar o filme da livre associação de ideias promovida pelo sonho é levada ao extremo em Persona. Assim como o conceito de “persona” é objeto de estudo da psicanálise, o sonho também o é, sendo a obra um olhar acerca da psique humana.
Enquanto Persona pode ser tida com a película mais experimental da carreira de Bergman, Gritos e Sussurros (Viskningar och rop, 1972) foi o mais prestigioso. O longa foi indicado ao prêmio de Melhor Filme no Oscar, feito raríssimo para uma obra estrangeiro. Foi vencedor também do prêmio de Melhor Fotografia, e recebeu o Grande Prêmio Técnico, no Festival de Cannes. O filme faz jus ao prêmio quando a sua riqueza estética é colocada em pauta: tudo é milimetricamente pensado para chamar a atenção do espectador. O mais notável seria a escolha das cores, principalmente da intensa cor vermelha em toda parte.
Ainda que seus outros filmes não tenham tido tamanha repercussão nesse sentido, a preocupação com as cores não deixou de existir. O Sétimo Selo e Persona foram filmados quando já existia a possibilidade de desenvolver produções coloridas. No entanto, a escolha do preto e branco foi intencional para construir a atmosfera do longa, muito ligada ao estado psicológico dos personagens.
É possível dizer que o protagonismo do universo interior dos personagens é uma característica dos filmes de Bergman. Dentre as táticas para conseguir esse efeito, ele utiliza os closes numa tentativa de revelar suas respectivas personalidades. Um exercício interessante para entender o real efeito dessa técnica é imaginar a exibição do filme no cinema, com a tela totalmente ocupada por um rosto ― o qual, muitas vezes, olha para a câmera e “conversa” com o espectador. Esses momentos, por sua vez, deixam de se referir meramente a momentos de introspecção do personagem e passam a refletir angústias e percepções caras a quem está lhe assistindo.
A complexidade e a densidade dos filmes de Bergman podem dar a impressão de que ele pertence a cena independente do cinema. Essa ideia, no entanto, é equivocada: o cineasta surgiu em um contexto industrial e fez sua carreira em Filmstaden, na Svensk Filmindustri ― que funcionava como uma Hollywood sueca. O diferencial é que ele era parte de uma indústria que lhe propiciava certa liberdade criativa, essencial para que deixasse um legado tão significativo na história do cinema. Admirado por figuras como Woody Allen e Krzysztof Kieslowski, Ingmar Bergman foi um cineasta que, diante do espelho, discutiu as nuances da natureza humana.
Falecido em 2007, Ingmar Bergman dirigiu também filmes como Morangos Silvestres (Smultronstället, 1957), Fanny e Alexander (Fanny och Alexander, 1982), Saraband (Saraband, 2003), Cenas de um Casamento (Scener ur ett äktenskap, 1973), Sonata de Outono (Höstsonaten, 1978), entre outros.
por Laila Mouallem
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