É comum se ater a símbolos para estudar história – e o ano de 1968 é definitivamente um deles. Entre toda a sua energia e importância, 68 é a síntese e a mediana, a convergência de algo maior, uma comoção mundial. O jovem, nesse meio, representa o belo e enérgico, mas não deve ser a única imagem presente no inconsciente coletivo.
Por Yasmin Oliveira (yasmin.oliveirac12@usp.br) e João Gabriel Batista (joao.gabriel.vr@usp.br)
1968. O que poderia ser apenas um ano, breves 366 dias, tornou-se um símbolo quase místico da cultura pop e do estudo de história. Meio século atrás, o mundo e o status quo viam eclodir e primaverar revoltas de estudantes e trabalhadores em ambos os lados da Cortina de Ferro – tanto o Ocidente alinhado aos Estados Unidos, quanto o Oriente aliado a URSS. Em contextos conturbados, mas de reivindicações variadas, 1968 é o “o ano das viradas”. Pelo menos, é por essas poucas palavras que historiadores e entusiastas o definem, exatos 50 anos depois – embora critiquem a forma simplificada como é visto pelo senso comum.
É mais do que 12 meses encaixotados e definidos. De acordo com Osvaldo Coggiola, pesquisador de História Contemporânea e chefe do departamento de História da FFLCH-USP, 68 é uma data “puramente simbólica”. Na verdade, 1968 é a convergência de um período que atende de 67 a 69 e resulta de todas as transformações sociais, culturais e comportamentais de uma nova geração.
Entre os tantos segmentos existentes na sociedade da época, hoje ainda se estuda e pensa muito apenas a movimentação estudantil – essa visão direcionada e simplória não é a preferida entre historiadores, mas permanece presente no imaginário geral.
Tal movimento trazia em seu cerne, como explica Coggiola, questionamentos que iam além de estruturas políticas autoritárias, mas também do modo de vida da sociedade.
O contexto da época é, primeiramente, de crises estruturais. Após os “anos gloriosos”, o capitalismo pós-guerra se encontra em crise: a maior potência econômica mundial, Estados Unidos, concentra seus investimentos em uma guerra no Sudeste Asiático sem grandes perspectivas, gerando uma situação problemática para o país. Por consequência, a própria economia da América Latina é prejudicada, o modelo fordista-keynesiano começa a colapsar e, do outro lado dos muros geopolíticos, a economia planificada soviética mostra suas contradições. Na política, regimes concentrados e repressores são vistos como insustentáveis e, culturalmente, na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, não se aceita mais a visão de mundo da geração que viveu a guerra, pais desses jovens que estavam presentes em 68.
No movimento formado nas universidades mundo afora, estão europeus filhos da guerra e dos baby-boomers, divididos pela Cortina de Ferro, mas parecidos em seu espírito questionador. Também estão os jovens de países considerados periféricos – como o nosso –, que viviam em meio a ditaduras e estavam em busca não só do fim da repressão, mas do fim do sistema capitalista. No símbolo deste sistema, estão americanos indignados com a guerra e influenciados pelo movimento flower power e do rock progressivo. Assim, desde o desconforto com velhos hábitos à ambição pela liberdade civil, a imagem do jovem está consideravelmente presente quando se reflete sobre 68.
Ao pensar o papel do movimento estudantil no desenrolar da história, é a imagem do jovem, sonhador, imediatista, que se destaca. A juventude é naturalmente associada a uma espécie de chama, de primavera, que detona em meio a idealizações. Isso não é necessariamente ruim. No caso de 1968, Everaldo de Oliveira Andrade, professor titular do Departamento de História da FFLCH-USP, comenta que apesar da ousadia e inexperiência comuns à juventude, havia um fundo econômico de crise e desemprego que os movia. “Há uma tensão entre o espontaneísmo, que quer transformar o mundo, e as tradições revolucionárias que ajudavam não a controlar, mas a levar o movimento mais longe.”
Apesar de toda a concentração de debates e visões romantizadas sobre a questão estudantil, ainda há uma discussão sobre a importância da movimentação de universitários e secundaristas. João Roberto Martins Filho, professor da UFSCAR e autor de “A rebelião estudantil: México, França, Brasil, 1968’’, afirma que naquele ano o que se destaca é o valor simbólico em torno do movimento. Apesar de não ter poder suficiente para mudar as instituições, a luta desses estudantes trouxe avanços em pautas importantes, como a luta pelos direitos humanos, mulheres e minorizados – em especial, negros e LGBTs.
Ademais, de acordo com Coggiola, 68 também é a primeira vez na história em que um dirigente do movimento estudantil se transformou em figura mundial. Nomes como o de Daniel Cohn-Bendit – o Danny LeRouge – ainda são marcados e lembrados. Isso mostra a importância, seja histórica, seja na formação de ídolos e arquétipos, do movimento estudantil na época. Obviamente, há muito além da França – o professor destaca a importância de outros dirigentes em países como Brasil ou Argentina, mas claro, quem esteve no Maio europeu e parisiense é quem assume a imagem principal.
Em suma, não há dúvidas de que 1968 é emblemático. Tanto por sua efervescência simultânea pelo mundo, algo relativamente incomum, quanto pelos novos questionamentos que trouxe no das ideias e da política, da filosofia e da cultura. Mesmo 50 anos depois, tantos acontecimentos em um período similar são algo que, de acordo com Martins Filho, ainda não têm explicação satisfatória.
O MAIOR EXPOENTE LATINO-AMERICANO
O regime pelo qual o México passava não era uma ditadura em termos, mas definitivamente autoritário e unipartidário. O PRI (Partido Revolucionário Institucional), que governava o país desde a Revolução Mexicana de 1917, tinha domínio sobre toda a política: dos sindicatos aos poderes Executivo e Legislativo. Um dos únicos grupos fora desse controle governamental eram os estudantes, daí sua força nesse contexto. Ao mesmo tempo, o país passava por um período favorável na economia. Coincidentemente, as Olimpíadas ocorreriam no México naquele ano; para o governo, seriam uma forma de exibir ao mundo seu avanço econômico, sem deixar de encobrir a repressão.
Entretanto, como cita o professor Everaldo, há um choque entre a nova geração de estudantes e um regime formado por velhos burocratas que não admitiam discordâncias. O movimento estudantil mexicano via, no evento esportivo, uma chance de mostrar para a mídia internacional o lado escondido pelo governo.
Sendo assim, estudantes da UNAM (maior universidade do México) ocuparam o campus em meados de agosto. Após negociações mal-sucedidas e falta de tato do governo, foram duramente reprimidos pelo exército em setembro – por ordens do presidente, Gustavo Díaz Ordaz Bolaños. A atitude militar gerou tamanha insatisfação que, em 2 de outubro (alguns dias antes do início das Olimpíadas), milhares de estudantes, conjuntos a trabalhadores de diversas camadas sociais, tomaram as ruas da capital ostentando cravos vermelhos, um sinal silencioso de protesto. A concentração foi na Plaza de las Tres Culturas, localizada em Tlatelolco, Cidade do México, em um movimento que se propunha ser pacífico.
Com um governo notadamente autoritário, novamente repressão militar, vinda da própria Cavalaria – tiros foram disparados contra os manifestantes na mesma noite, desarmados, resultando no Massacre de Tlatlelolco. Tal violência foi legitimada pelo governo da época e traz em seu cerne uma dúvida importantíssima e cruel: hoje, 50 anos depois, ainda não se tem ao certo o número de vítimas. Se o governo assumiu oficialmente a morte de 35 pessoas, o jornal inglês The Guardian e a maioria das fontes acadêmicas estimam em mais de 300 atingidos. Na época, devido à opressão estatal, os meios de comunicação locais foram silenciados. Assim, ainda é um mistério a perda humana envolvida em tal episódio.
Três décadas depois, questionado por uma comissão de investigação aberta pelo congresso mexicano sobre os fatos daquela noite, Luis Echeverría Álvarez, ministro do interior na época, admitiu que o Massacre foi premeditado com o intuito de destruir o movimento estudantil. De fato, conseguiram. O movimento não tinha intenções de derrubar o governo nem um aspecto violento e, depois do episódio, conjunto a algumas prisões posteriores, acabou pulverizado (pelo menos, naquele ano).
O movimento mexicano é único em muitos aspectos, justificando sua citação por tantos pesquisadores. Apesar de tantas diferenças ideológicas entre os estudantes, de guevaristas a trotskistas, democratas-cristãos a comunistas, foi criada uma unidade – em um contexto no qual ela se fez necessária. Além disso, ao contrário de mobilizações como a francesa ou a americana, suas reivindicações tinham um caráter menos acadêmico e mais social, em um momento de total insatisfação com o modelo imposto pelo PRI. Mesmo em suas limitações, a mobilização carregava potencial – é por isso que permanece a ser estudada, apesar da negligência do senso comum.
O EXEMPLO SOCIALISTA
Do lado Leste da divisão bipolar estava a Tchecoslováquia, aliada a Moscou e não a Washington, ao contrário do México. Mesmo nesse contexto, há uma semelhança importante em relação aos países capitalistas: a crítica ao autoritarismo.
Não era contestado o socialismo em si, mas o modelo autoritário e centralizador de Estado imposto pelos soviéticos, unipartidário e repressivo, tal qual nas outras nações que compunham a URSS. Dentro do próprio Partido Comunista se discutia a estrutura que dirigia o país. No fim, encabeçada pelo líder de Estado Alexander Dubček, a busca era pela democratização por um “socialismo com face humana.”
Dubček, veterano de guerra e reformista, tinha planos liberalizantes e democráticos para seu país ao assumir o cargo de primeiro-secretário do partido. Esses incluíam maior liberdade de expressão e uma leve abertura de mercado, depois de anos sob o regime de economia planificada e escassa liberdade individual que caracterizava o modelo soviético na época. Deve-se ressaltar, novamente, que não era uma tentativa de quebrar o modelo socialista por completo, mas alternativas para um país em crise. Tal busca contou com o apoio de trabalhadores, intelectuais e também estudantes. O curto período em que perduraram as medidas aplicadas foi a Primavera de Praga – o papel do jovem, aqui, é seu intenso apoio ao líder das reformas.
Logicamente, Moscou não aceitaria bem a possibilidade de perder o controle de um território inteiro, de uma possível revolução, de uma tangência. As medidas liberalizantes tiveram seu fim em agosto, com a invasão de tropas do Pacto de Varsóvia (organização militar soviética) em Praga.
Apesar de sua aparente derrota, a Primavera abre discussão para o poder das manifestações de uma sociedade unida, era mais um exemplo das contradições e insatisfações que trazia o modelo soviético – por isso é tão relembrada, 50 anos depois.
GERAÇÃO WOODSTOCK
O interessante do movimento americano é que ele é o único considerado, entre os pesquisadores entrevistados, majoritariamente estudantil. Os protagonistas são os próprios estudantes, notadamente contra a Guerra do Vietnã, mas também com outras pautas. Não devemos nos ater aos acontecimentos específicos e datados, mas ao simbolismo e à ideologia presentes. A influência do movimento hippie é marcante. Na crise dos anos de ouro do capitalismo, muito se contestavam os excessos que a mentalidade americana de super-consumo trazia.
Sean Purdy, professor do departamento de História da USP, em artigo para a revista Cult, defende que um movimento da “Nova Esquerda”, com enfoque além da lutas de classes, ganhou força no país na década de 60. Seu destaque era a favor dos direitos de estudantes e de nichos minóricos, nas críticas contra a hipocrisia de sua sociedade e, claro, a Guerra do Vietnã. Mesmo com o discurso liberal de igualdade, os Estados Unidos eram racistas e machistas em sua própria Legislação, ou seja, a lei validava a segregação – por exemplo a segregação racial em espaços teoricamente de todos, como o transporte público.
Com tantas especificidades, nem todas as reivindicações foram, a curto-prazo, conquistadas. O movimento estudantil americano não foi capaz de mobilizar sindicatos e trabalhadores e, tal qual na França, a despeito de sua democracia, foi duramente reprimido pelo Estado. Entretanto, tem um valor
simbólico muito importante até hoje, tanto culturalmente, com todo o romantismo em torno dos acontecimentos e a eternização do movimento hippie e da Nova Esquerda; quanto politicamente, o movimento anti-guerra foi bem-sucedido e mobilizou a sociedade americana em geral, com a saída dos EUA do Sudeste Asiático nos próximos anos. Pautas importantes em relação a machismo, racismo e outras intolerâncias ganharam espaço dentro e fora da universidade; além de ser uma inspiração forte para quem quer lutar por seu lugar, direitos e contra o status quo.
O MAIO
O emblemático Maio de 68 francês foi, cronologicamente, uma sequência de protestos e revoltas de estudantes, trabalhadores e intelectuais entre março e junho. Iniciou-se na Universidade de Nanterre, nos arredores de Paris, e se estendeu à capital posteriormente, culminando na noite das barricadas, em greves de trabalhadores e protestos contra o general De Gaulle. No fim de Maio, ele dissolveu o parlamento, convocando novas eleições e, por uma “maioria silenciosa” que não se manifestava de forma tão expressiva nas ruas, conseguiu se eleger.
Uma descrição objetiva e curta dos acontecimentos, é superficial para compreender a importância e as contradições do Maio. Primeiramente, é importante perceber que ele realmente foi inesperado, mas não imediatista. Apesar de certa espontaneidade por trás, havia um contexto de incômodo com instituições e representações conservadoras. Para o professor J. Roberto Martins Filho, os jovens não se viam representados no governo De Gaulle, herói de guerra e da geração anterior. Nessa nova perspectiva de mundo, o militar representava o conservadorismo a ser superado. Dessa forma, o movimento teria sido algo completamente novo na sua dimensão e radicalidade. “Tem a ver com o surgimento de uma geração que não mais trazia as marcas da Segunda Guerra e que vivia um mal-estar com a cultura e a sociedade da época.”
O Maio é mais do que protestos contra de Gaulle, coquetéis molotov ou dormitórios separados entre gênero – uma das pautas que eclodiram em protestos universitários. É uma espécie de estopim de mudanças que já vinham acontecendo, mas que precisavam de algo mais emblemático. Foi o momento em que convergiram questionamentos já iminentes e que não acabam ao fim do ano.
Entretanto, uma crítica sobre o Maio, em especial sobre seu movimento estudantil, é que ele ficou mistificado em nossa mente. A juventude e rebeldia típica de estudantes; o fato de serem jovens da França, berço de tantas outras revoluções; as barricadas, as pichações e cartazes; e, claro, a própria construção da história posteriormente, acrescentando um tom grandiloquente e poetizado aos acontecimentos do emblemático período. Todos esses fatores contribuíram para que, 50 anos depois, se enxergue o Maio de 68 como a grande revolução jovem e estudantil o que, a despeito de sua importância, para o professor Coggiola é uma deturpação de tal momento.
UM PANORAMA TROPICAL
No Brasil, o ano estava sendo difícil. E os estudantes da USP (Universidade de São Paulo), animados pelo espírito da década de 60, não sucumbiam ao regime militar desde seu início em 64. Os jovens haviam ocupado o CRUSP (Conjunto Residencial da USP). O complexo de prédios que fora inaugurado em 63 sob o plano de alojar os atletas vindos para os Jogos Panamericanos, antes de abrigar seus 2160 universitários, em 68 já era tido como referência na mobilização estudantil. Naquela época alijado da cidade, ele emanava a agitação estudantil. Eram organizadas, além das bem frequentadas atividades culturais, séries de fervorosos debates e reuniões que buscavam minar o regime militar.
Na noite de 17 de dezembro de 1968, caminhões do Exército de repente cercam o conjunto de habitações e, considerando aquela altura, daquele ano, todos já previam o que aconteceria dali pra frente. “Eles nos mandaram para o refeitório, rapazes de um lado e meninas do outro, chamaram os ônibus municipais, encheram todo o mundo e mandaram para Tiradentes.” É o que conta Ernesto Pichler, um dos integrantes que figurava no grupo daqueles recém detentos, cujo destino era a extinta prisão situada no bairro do Bom Retiro, afamada por receber esse tipo de “subversivos”. Depois de dois dias por lá, soltaram-no, pois conforme relatou, seu nome não era “queimado”, embora já fosse membro do Partido Comunista Brasileiro, clandestino à época.
A mesma sorte, infelizmente, não tiveram vários colegas, os quais ele jamais teve a oportunidade de rever. Entre esses, relembra de um vietnamita que, embora conservador e negligente quanto às causas estudantis, pela infeliz coincidência do conflito de sua terra natal foi apelidado de Vietcongue pelos colegas, alcunha suficiente para lhe render infindáveis momentos de tortura nos porões da delegacia.
Embora não anule a brutalidade do acontecimento, a tomada do CRUSP estava longe de ser o maior escândalo do ano. 1968 começou acalorado.
Culturalmente o país prenunciava grande ebulição já nos finais do ano anterior, caminhando contra os ventos da tradição. A transgressão era evidente com o início do tropicalismo e as estreias de Terra em Transe (filme de Glauber Rocha) e O Rei da Vela (peça dirigida por José Celso Martinez Corrêa), obras que expunham e denunciavam o conservadorismo da sociedade. Havia uma mobilização estudantil ativa, engajada e inspirada na Revolução Cubana, sobretudo na figura mítica de Che Guevara. Visto o exemplo da tomada do poder na ilha caribenha, acreditava-se que era possível fazer algo parecido em solo tupiniquim. Compravam-se livros de Mao Tsé Tung, Marcuse e Sartre, intelectuais afeitos à guerrilha; assistia-se a Godard e Truffault, cineastas franceses também simpatizantes da causa revolucionária. A juventude nutria-se de revolução.
O MÁRTIR DESCONHECIDO
Logo em março, o episódio do assassinato do estudante Edson Luís de Lima Souto causou e ainda causa estupefação. No dia 28, o jovem de apenas 16 anos estava no Calabouço, restaurante universitário onde sobretudo alunos da UFRJ se reuniam. Naquele dia havia ali uma assembleia em que os pormenores de futura manifestação eram ajustados. Um grupo de policiais invadiu o recinto em confronto direto. Depois de incipiente dispersão, os estudantes retornaram com paus, reacendendo a briga, que terminou com um tiro no peito de Edson.
Ao encontrarem seu corpo estirado, os colegas imediatamente o tomaram e carregaram rumo à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, de onde não saíram até que fosse organizado o velório, transfigurado em passeata. É surpreendente, contudo, a comoção e mobilização geral causadas pelo episódio. Milhares de pessoas lotaram a sede do Legislativo Municipal para ver o corpo; a camiseta ensanguentada era brandida pelos companheiros sobreviventes e aquele micro protesto seria o ensaio para a Passeata dos Cem Mil.
O que havia de especial ali, se aquele rapaz, paraense e pobre, não seria nem o primeiro nem o último a morrer nas mãos dos militares? Certamente, o que espantou até a mais reacionária dona de casa foi o escancaramento da violência – que numa época sem internet e quando a TV dava seus primeiros passos, estava longe da atual banalização. Do ponto de vista da população, não se podiam deixar claro as agressões. Os militares até tentaram incorporá-las ao cotidiano nacional, legalizando a pena de morte – incluída na Constituição de 67 – mas não deu certo. Apesar da proteção legal, ela jamais foi aplicada. Matava-se, torturava-se, mas tudo sob as sombras dos porões do DOPS.
CHEGA ÀS RUAS O GRITO JOVEM
Como já anunciado, aconteceria no Rio de Janeiro dali a menos de três meses um dos grandes símbolos da luta contra o regime, tendo a malta estudantil como protagonista.
A Passeata dos Cem Mil, percorrendo da Cinelândia ao Palácio Tiradentes, mobilizou grande massa de universitários e secundaristas, além de intelectuais, artistas e até clérigos ligados à esquerda. Talvez aquele tenha sido o primeiro momento em que a sociedade como um tudo pôde ver os militantes como grupo organizado. Afinal, aquela grande marcha não contou com nenhum caso de violência, apesar de pequenos grupos infiltrados de policiais do DOPS que, na iminência de provocar pelejas, volta e meia eram identificados, imobilizados e desarmados pelos próprios estudantes.
Uma pena que não tenha havido mais mobilizações de tão considerável dimensão no período. Isso em parte se deve à já existente divisão na esquerda. Pelo menos dois grupos se mostravam de forma mais ou menos nítida. De um lado, estavam os “reformistas”, geralmente ligados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), que apostavam na luta política contra o regime. Antagonizando esse grupo, estavam os “revolucionários”, que por sua vez apostavam nas armas.
“Você vai criando um aparato clandestino, mas com baixa visibilidade pública”, é o que diz Ivan Valente, explicando a resposta à repressão. Hoje deputado federal pelo PSOL-SP, cargo resultado de uma vida doada à política, Valente compôs o corpo estudantil que militou durante o final dos anos 60. “Agora é hora de ação”, disse Otávio Ianni, então professor da USP de Sociologia, em uma palestra na qual Valente se fazia presente. Apesar dos esforços da juventude guerrilheira, o embate com o regime era absurdamente desigual e, conforme relata Valente, “a partir de 1972/ 73, eles tinham aniquilado os estudantes armados”.
NEM TANTO NA SURDINA
Em outubro, grande parte da força estudantil, juntamente com seus mais notórios líderes, preparava o XXX Congresso de Nacional da UNE (União Nacional dos Estudantes). “A UNE se organizava a partir de uma entidade nacional com ramificações locais. Havia os grêmios estudantis no movimento secundarista e, no universitário, os diretórios acadêmicos e as uniões estaduais”, assim explica o historiador da USP Marcos Napolitano, especialista em Ditadura Militar.
Criava-se essa capilaridade e, com as assembleias (isto é, os grandes congressos), decidiam-se os rumos do movimento. Naquela fatídica ocasião, estavam concentrados no sítio Muduru, nas encostas da serra de São Sebastião, mais de mil pessoas. Porém o grupo tomou atitudes de indiscrição, infelizes a uma reunião clandestina. As pessoas da cidade já desconfiavam, haja vista que, de uma vez, um sujeito saia da padaria com mil pães; outrora, vinha um grupo de jovens pra cidade e esgotava o estoque de escovas de dente. Assim, em pouco tempo, os policiais locais descobriram e contataram o DOPS. Caminhões cercaram o sítio, dispararam tiros de metralhadora e prenderam centenas de estudantes, inclusive as lideranças. Entre elas estavam José Dirceu, então presidente da UEE (União Estadual dos Estudantes); Vladimir Palmeira, presidente da UMES (União Metropolitana dos Estudantes) e Luís Travassos, Presidente da UNE.
“Desde a prisão de massa de Ibiúna o movimento estudantil já sofria um abalo muito grande”, afirma professor Napolitano, mas nada comparado à implementação do Ato Institucional Número 5, AI-5. Através de seus decretos, entre os quais estava a suspensão do direito de Habeas Corpus a qualquer cidadão, o sufoco aos estudantes torna-se mais explícito. Como diz o especialista, “o movimento estudantil passa a ser uma base social muito importante para a guerrilha”.
UM PANORAMA ATUAL
Ainda em vista do passado, não espanta uma verdadeira disputa por 68. Também não estranha grupos conservadores reduzirem seus reflexos a apenas uma revolta estética de jovens rebeldes, tentando assim esvaziar seu significado de luta de classes, de contestação do sistema político e econômico. “Houve uma percepção de que o estudante era o porta-voz da luta social por democracia e pela mudança social”, diz Napolitano. Se em 1918, na cidade argentina de Córdoba, umas das primeiras mobilizações estudantis em solo latino-americano pedia por independência – de tudo e de todos, também 68 reeditou tal discurso. “A autonomia não é só financeira. É autonomia política. É autonomia acadêmica. [A universidade] não pode depender do mercado”, pontua Everaldo de Oliveira Andrade, professor de história contemporânea da USP. Para ele, os estudantes da década de 60 também queriam que a liberdade estivesse presente não apenas na universidade, mas na política e em toda a sociedade. “Preservar o espaço de crítica e contestação universitária – esse foi o grande legado”, arremata o professor.
É comum encontrar militantes contemporâneos que num primeiro momento tiveram péssimas impressões do centro acadêmico. Conforme relata Vinícius Lucena, estudante de jornalismo da USP, “entrei na faculdade e tive meu primeiro baque, achava que as pessoas seriam mais politizadas.” Entretanto, esses mesmos alunos contam que participar da militância universitária é gratificante, tal como expõe Guilherme Weffort. “Houve um momento em que me encontrei. E ali eu vi uma alternativa: dava para fazer movimento estudantil fugindo das palavras de ordem, tendo responsabilidade real com os estudantes e com a construção de uma universidade mais democrática”.
Atual vice-presidente da UEE, Diego Pandullo decidiu entrar no movimento estudantil sem a influência de 68. Porém, diz que acha fundamental estar sempre olhando o histórico e a memória. Na ocasião da entrevista, já atrasado por vir de uma reunião no litoral paulista, Pandullo não teve tempo nem mesmo de almoçar, uma vez que dali iria direto para outro compromisso correlato à mobilização – isso em pleno feriado de Dia do Trabalho.
Quando perguntado sobre como as grandes organizações estudantis se estruturam atualmente, explica que existem os conselhos executivo e o pleno. Este tem mais gente, mas concentra menos poder. Aquele, mais restrito, é eleito através dos congressos, a cada dois anos, e está no topo da hierarquia. As faculdades elegem seus delegados para lhes representar. E é pelo número de estudantes que se define a quantidade de delegados de cada universidade, de forma que as maiores instituições tenham mais representantes.
Para Pandullo, estamos passando por um momento muito grave na educação brasileira. Ele defende que há um forte ataque à educação no que diz respeito ao livre pensamento, o que fica evidente com ideias como “escola sem partido” e alguns atos de censura. “Então acho que esse fechamento em relação ao livre pensar, à livre manifestação, que tem se dado na universidade tem dificultado, estamos com cada vez mais dificuldade de realizar atos e eventos.” Foi o que declarou Pandullo, mostrando que pouco se evoluiu no Brasil no que tange às pautas estudantis.
Se por um lado as reivindicações continuam iguais, não se pode dizer o mesmo da posição política dos movimentos. Ao contrário do que diz o senso comum, o movimento estudantil aglutina grupos não apenas da esquerda, mas também da direita. O que é de se preocupar, no entanto, é que a luta se faz hoje não por uma revolução, mas pela garantia dos direitos democráticos que estão ameaçados. “Tudo isso traz nova realidade para o movimento estudantil, que talvez não seja mais de ofensiva, de ganhos, mas de resguardar aquilo que a gente conquistou e tentar trazer mais gente pro nosso projeto, para aí sim podermos continuar avançando”, finaliza o vice-presidente da UEE.
68 foi uma revolução, a expressão de um espírito de época, um questionamento. Ao mesmo tempo, é preciso olhar para frente. Houve conquistas no campo das ideias e da política, da filosofia e da cultura, seu simbolismo é emblemático. Entretanto, se o mundo que vemos hoje é, em parte, consequência de 68, é também diferente daquele que o provocou.