Por Ricardo Thomé (ricardo.thome@usp.br)
Em 1996, na Turquia, o intelectual turco-armênio Hrant Dink fundou, ao lado de outros quatro homens, o jornal Agos, primeiro veículo jornalístico nacional escrito em turco e em armênio. O objetivo do Agos era, além de se comunicar com a minoria armênia do país, refletir o ponto de vista dela, preservando sua memória e denunciando o genocídio armênio.
O extermínio foi marcado pelo assassinato e deportação em massa da população armênia pelo Império Turco Otomano,entre os anos de 1915 e 1923, na atual Turquia. Foram dizimados entre 1 e 1,5 milhão dos 2 milhões de armênios que habitavam o país, aproximadamente. Em 2007, Dink foi assassinado em frente à sede do jornal, em Istambul, por um jovem ultranacionalista turco. Após o ocorrido, Pakrat Estukyan, um bioquímico que escrevia artigos esporádicos para o periódico, assumiu como editor da parte armênia do jornal.
No último domingo (7), Pakrat Estukyan esteve presente no 9º Festival Piauí de Jornalismo, promovido pela Revista piauí, na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Em entrevista a Luigi Mazza, editor da piaui, e a Cassiana Der Haroutiounian, artista visual e documentarista de origem armênia, Estukyan falou sobre o papel do Agos na Turquia, além de abordar questões identitárias do povo armênio e de discutir o cenário político e social atual acerca do reconhecimento — ou não — do genocídio de seu povo pela Turquia e por outros países.
O papel do Agos
Estukyan comentou que a morte de Hrant Dink esteve diretamente vinculada à atuação do Agos de elucidar os acontecimentos do genocídio. Afinal, o governo turco sempre associou as mortes armênias como “efeitos colaterais” da Primeira Guerra Mundial, que acontecia paralelamente, sem assumir responsabilidade sobre elas.
Indagado por Der Haroutiounian sobre o que teria acontecido com Dink caso ele não fosse armênio, o editor foi categórico: “Muitos intelectuais turcos falavam as mesmas coisas que ele e nenhum sofreu o que ele sofreu. Era um humanista, socialista, que gostava de todos e sabia que povos não são inimigos; governos, sim”.
Em 2025, a Turquia ocupa o 159º lugar no Ranking Mundial do Repórteres Sem Fronteiras (RSF), que analisa o nível de liberdade de imprensa em 180 países, caracterizando a situação do país como “muito grave”. Diante desse cenário e do avanço das tecnologias digitais, financiar o jornal tem sido uma tarefa cada vez mais difícil — hoje, ele é impresso semanalmente em turco e armênio e opera virtualmente na duas línguas e em inglês.

Apesar disso, Estukyan não teme por sua vida: “O governo não quer um novo Hrant Dink, porque eles não querem passar por essa crise e não querem causar essa mobilização novamente. A morte dele garantiu que ficássemos ‘intocáveis’, ainda que muitos jornalistas tenham desistido da profissão ou ido trabalhar fora da Turquia”.
Recentemente, ele e outros dois jornalistas foram processados por supostamente fazerem apologia ao terrorismo em um artigo publicado em outro jornal. Ele negou: “Claramente, foi só para me assustar. Mas fui absolvido, não tinha justificativa para me condenar”. No processo, um jornalista foi condenado, e já cumpre pena. Processos como esse vêm se tornando comuns na Turquia, que tem, em seu código penal, um artigo que permite enquadrar diferentes ações como “insultos à identidade turca”. Quando Dink foi morto, ele estava sendo processado com base no mesmo artigo.
Der Haroutiounian também questionou se o governo turco poderia estar sendo permissivo com o Agos como forma de passar uma imagem de tolerância, no que o editor apontou que a liberdade de expressão passa por dificuldades no mundo todo. “Temos de gritar ‘basta!’. E isso vai além do Agos, de Hrant ou de Pakrat. Exige que lutemos contra o inaceitável e que tracemos um novo caminho, sem guerras e sem o capitalismo neoliberal.”

No que diz respeito à xenofobia, Estukyan afirmou que alguns armênios sofrem com isso: “Muitos adotam nomes turcos para trabalhar”, por exemplo. Não é o caso dele: seu nome oficial é Pakrat Estukoğlu, uma vez que a Lei de Sobrenomes da Turquia, que esteve em vigor entre 1934 e 2013, proibia o uso de afixos não-turcos, como o armênio “yan”. Por essa razão, ele opta por assinar seu sobrenome simbolicamente como Estukyan, a fim de valorizar sua origem armênia.
O genocídio armênio: muito além de perdas humanas
Para Estukyan, não é factível pensar em um reconhecimento do genocídio pela Turquia no momento, ainda que ele acredite que esse é um passo fundamental para que esse assunto seja superado. “Os armênios já sofreram, ao longo da história, com ataques dos mongóis, dos romanos, dos bizantinos, dos persas…mas 1915 foi além, porque tirou os armênios da sua própria pátria”, comentou.
Atualmente, dos cerca de 10 milhões de armênios pelo mundo, apenas 3 milhões estão no território da Armênia. Segundo Estukyan, isso é muito negativo para a manutenção da cultura milenar do seu povo: “Temos um alfabeto próprio e o mesmo tempo de vida que civilizações que nem existem mais. Mas a cultura não cresce em vasos. Os emigrantes vão tentar mantê-la, mas é muito difícil. Nos vasos, a vida não será longa”.
Em entrevista à Jornalismo Júnior, com tradução do arquiteto e fotógrafo brasileiro-armênio Norair Chahinian, o editor complementou a análise: “Existe um movimento do ser humano de não querer incluir o diferente. Nos Estados Unidos, por exemplo, muitos armênios votaram em Donald Trump porque ele disse que não vai mais deixar imigrantes entrarem. É um incômodo com o novo, uma ideia de ‘concorrência’, mesmo que estejam na mesma situação”.

À reportagem, Estukyan também endossou algo que já havia comentado no Auditório da Cinemateca Brasileira: “Negar um genocídio é perpretar a continuação dele”. Ao comparar a derrota do Império Turco Otomano após a Primeira Guerra Mundial à da Alemanha, igualmente responsável por um genocídio — o holocausto —, ele pontuou que, enquanto na Alemanha houve um movimento de reconhecimento do mal causado pelo regime nazista, “na Turquia, isso não aconteceu. Veio a República Turca e se apresentou como algo novo”.
Em abril deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recebeu uma carta da comunidade armênia no Brasil pedindo pelo reconhecimento, o que não gerou resultados. Já os Estados Unidos, que haviam reconhecido o genocídio durante a gestão do democrata Joe Biden,, não mantiveram o posicionamento no atual governo de Donald Trump
A cobertura completa do 9º Festival Piauí de Jornalismo está disponível no site e nas redes sociais da Jornalismo Júnior.
[Imagem de capa: Nina Nassar/Jornalismo Júnior]
