Este filme faz parte do 12ª Mostra Mundo Árabe de Cinema. Para mais resenhas do festival, clique aqui.
O festival teve início no dia 9 de agosto e permanecerá no Cinesesc até o dia 16 do mesmo mês.
O que é a cultura árabe? Os estereótipos são muitos, mas Cinzas de Sonhos (L’Ivresse d’une Oasis, 2011) é um documentário que traz uma nova significação para o termo — ou pelo menos uma significação desconhecida de grande parte do público ocidental. A cineasta Hachimiya Ahamada constrói sua linha de pensamento em torno de uma figura: a de seu pai, o que casa bem com a data que acaba de ser comemorada em terras brasileiras. Uma fita VHS de autoria do patriarca é o ponto de partida para uma imersão em seus reencontros com diversos membros de família e a exposição de um dos itens mais simbólicos de toda uma geração afetada pela diáspora comoriana que se sucedeu à crise econômica e política que acometeu Comores.
A casa. Ela era o objetivo principal da maioria dos homens. As remessas vindas do exterior representam boa parte da economia do país e grande parte dos chefes de família, em uma sociedade ainda bastante patriarcal, investem desde os primeiros ganhos na construção de um imóvel no lugar de onde vieram. Não foi diferente com o pai, que naquela fita antes citada posa satisfeito na obra ainda crua de seu sonho. A casa era uma forma de se eternizar na paisagem, uma mostra de sucesso e também de provar, talvez mais para si mesmo, que um dia voltaria para a terra de onde saíra. As cidades de Comores são repletas de construções vazias e inacabadas que nunca receberam quem as idealizou. Isso porque a vida dos migrantes é muita vezes uma contraposição entre o querer e o poder e, por isso mesmo, a cineasta fala sobre como sua família direta são “os que vêm”, enquanto os parentes que entrevista ao longo do filme são os “que ficam”. Estando apenas de passagem pela terra de seus antepassados, ela escorrega em entrelaçar os acontecimentos e os pontos de vista, e por muitas vezes há um choque bruto entre uma fala ou ponto de vista conceitual e subjetivo e um simples documentário expositivo. A intenção da autora em contar uma história pessoal parece convergir com diversas possibilidades interessantes que se oferecem.
Em francês, sua língua nativa, ela narra um pouco da história do país e as origens de sua família nesse arquipélago da África, que até 1975 pertencia à França. Após sua independência, uma das quatro ilhas que faziam parte do país, Mayotte, decidiu continuar sob domínio europeu, por meio de um referendo, enquanto as outras três entraram em uma profunda instabilidade política, sendo acometidas por mais de vinte golpes de Estado ao longo das últimas décadas. A insatisfação popular levou uma considerável parcela de pessoas, incluindo os pais de Ahamada, a buscarem refúgio em territórios mais estáveis. Mas, diferentemente do que aconteceu com a cineasta, a maioria dos cidadãos comorianos procuram refúgio na ilha vizinha, a qual também pertenciam até pouco tempo. Agora, as diferenças étnicas estabelecidas burocraticamente já pesam, e muitos são deportados após serem pegos por serviços de imigração. Outros, por viverem ilegalmente, veem frustradas suas expectativas de juntar dinheiro e voltar em melhores condições para sua terra de origem. E ainda existem os diversos casos de barcos que nunca chegam ao destino final, com seus passageiros tendo seus sonhos abortados em meio ao oceano.
É uma temática profunda e repleta de pormenores mas, infelizmente, as histórias da sobrevivência em meio ao caos, principalmente na ilha de Anjouan, que concentra cidades populosas e com grande parcela de seus habitantes abaixo da linha da pobreza, são apenas tangenciadas e parecem subaproveitadas. De lá, vêm os mais poderosos relatos a respeito da migração e das baixas expectativas para o futuro, além das declarações a respeito do laço entre a terra e quem nasceu nela. Mas o caráter intimista e pessoal dado pelo tom da produção, com apenas a cineasta e sua câmera, ainda que por vezes parece nos levar pelos registros de uma viagem e oferece um tom sincero à história, também traz os maiores prejuízos à coesão das cenas. Por vezes, a impressão é que se assiste a um compilado sem muito sentido para quem não estava dentro da ação gravada, ou pelo menos para quem carece de alguns conhecimentos prévios a respeito da cultura local.
A população da União de Comores é majoritariamente islâmica e as influências árabe e africana convivem no viver de seu povo. Ao se pesquisar a respeito da nação, muito pouco se encontra sobre as tradições locais ou crises que acometem a população. Os resultados são permeados de dicas de turismo na região, pouco explorada pelos viajantes e repleta de atrativos naturais. Por isso mesmo, se aventurar em diversas das cenas de Cinzas de Sonhos pode se mostrar um desafio para os espectadores despreparados. Ahamada não só não faz questão de realizar um trabalho didático como também insere um tom poético que por vezes pode cansar o expectador. As cenas mostrando acontecimentos cotidianos não necessariamente seriam vazias de sentido, já que onde não existe nenhuma função narrativa outros vários sentidos podem existir.
Então, o possível pecado do documentário ao abordar o ordinário não é a inação em si, que algumas vezes se sobrepõe às interessantes declarações das pessoas sobre suas vidas, e sim a sua ineficácia em nos tocar, em estabelecer uma relação mais global com quem assiste. Cinzas de Sonhos parece um filme feito para poucos, e por isso mesmo o pecado é uma possibilidade. A cineasta se motivou por sua vontade em conhecer mais Comores e em honrar a memória de seu pai. Talvez seu objetivo não seja tocar a todos que tiverem acesso a seu documentário, mas fazer dele mais da memória do povo comoriano assim como a fita VHS que abre o filme fazia parte de sua memória do que era Comores.
Esse ponto de vista por vezes confuso da realizadora casa com sua dificuldade em se reconectar às suas raízes e se reflete num resultado confuso também para quem assiste, e a interpretação é ainda mais dificultada por uma legendagem bastante falha que acompanha os diálogos. Como narrou, os laços de sangue estavam presentes, mas outras fronteiras agora a separavam daqueles a que chamava de família. Uma língua que não falava, um apego à terra que não sentia. As paredes entre Hachimiya e seus parentes parecia tão dura quanto as de sua casa por direito. O preço da partida foi um distanciamento difícil de reparar após tantos anos. A francesa fez sua primeira visita ao país já com 21 anos e, novamente, vir é diferente de ficar, e a passagem breve da cineasta não a torna perene no cenário, como as casas que se impõem, mesmo que vazias.
Saiba um pouco mais a respeito da Ilha de Comores e suas crises aqui (em inglês)
por Pietra Carvalho
pietra.carpin@hotmail.com