Este filme faz parte do 23º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade. Para mais resenhas do festival, clique aqui.
Não existe maior conquista para um documentarista do que capturar os tais momentos decisivos de Henri-Cartier Bresson. Em outras palavras, aquele exato instante em que algo invade o quadro ou alguém reage inesperadamente. Não um segundo antes, não um segundo depois, mas um momento em específico que, ou foi registrado, ou ficará perdido para sempre. Malek Bensmaïl, diretor de A Batalha de Argel, um Filme Dentro da História (Battle of Algiers, a Film Within History, 2017), parece reconhecer isso. E assim, ele constantemente deixa de gravar o rosto dos entrevistados para se ater às mãos deles. Um efeito que, em outros casos, poderia até ressaltar o nervosismo ou timidez da fonte, mas que aqui se perde apenas em pura tecnicidade.
Esteticamente falando, Bensmaïl ainda se prende a outros desses movimentos de câmera, que pouco acrescentam à narrativa contada. Um bastante frequente é aquele em que, após terminada uma fala, ao invés de um corte seco, ele opta em mover a câmera e focar o fundo destruído das locações. Pensando que o título do filme remete a uma batalha, a ideia de escombros de uma guerra até faria sentido se conhecêssemos melhor os impactados por ela.
Em 1966, Gillo Pontecorvo dirigiria A Batalha de Argel (La battaglia di Algeri), filme que retrataria os acontecimentos da guerra civil que daria independência à Argélia. Filme de seu tempo, a obra viria aos cinemas apenas quatro anos depois do fim do conflito, o que sedimentaria ao país e ao mundo – já que venceu o prêmio máximo do Festival de Veneza –, a relevância do ocorrido. Cinquenta anos depois do lançamento, A Batalha de Argel, um Filme Dentro da História revive as dificuldades de produção, mas também mostra o impacto que o filme teve ao inspirar outros levantes e contra-levantes ao redor do globo.
Certamente os que escreveram os livros de história são os vitoriosos. E mais do que isso, aqueles que têm dinheiro. Por isso, é mais do que justo que o documentário seja recheado de acadêmicos e líderes políticos. Foram eles os mais sabidos do conflito e são eles, portanto, os mais aptos a apresentar um panorama mais preciso. No entanto, os mais imersos, ou seja, os que mais sofreram com os desdobramentos da guerra, foram os civis. E se a história fosse democrática, talvez esses devessem redigí-la.
Como não é, restam-lhes as lendas: costumes passados de boca a boca e, por isso, muito mais democráticos. Hoje em dia, com uma discussão cada vez mais intensa de lugar de fala e revalorização dos mitos, essa parece ser a tendência pela qual a história precisaria caminhar. Notar a relevância de um acontecimento não só às camadas mais intelectualizadas, mas também às mais populares. Por isso, o documentário é muito acertado quando entrevista Eldridge Cleaver, ativista negro dos Panteras Negras, ou um simples artesão argelino. Aqui, eles nos contam como ter contato ou reviver as memórias da guerra foi, por um lado, penoso, mas também esperançoso. Em outras palavras, ver que a morte do pai argelino ou do irmão negro não foram em vão, mas sim lendas pessoais que, num contexto maior, obtiveram respaldos históricos.
Mas com exceção desses dois momentos, o documentário parece se preocupar mais em provar como a produção foi “fiel” à realidade do que mobilizadora para os figurantes, cidadãos e outras pessoas que viram as filmagens de seus quintais. Isso não seria um problema se a ideia fosse produzir um making of do filme. Mas passa a ser um quando já o subtítulo vende o impacto que o filme teve “dentro da história” (do cinema, da Argélia e das pessoas que foram afetadas pelo conflito). Numa tentativa de aproximar essas noções de ficção, história e lenda, respectivamente, o montador Mathieu Bretaud até junta, em uma mesma cena, situações reais com momentos do filme original. Mas o efeito que consegue é mais fazer o espectador se questionar sobre qual dos dois o documentário está falando, do que de fato, como pretendia, parear o filme na história, e a história no filme.
Seja então pela fidelidade das cenas ou pela inteligência dos acadêmicos, tal como o preciosismo das tomadas de mão, o que temos é uma tecnicidade de pouca emoção. Felizmente, o documentário não é de todo ruim, e os momentos em que o principal líder revolucionário e também ator do filme original, Yacef Saadi, aparecem, não são para exaltá-lo. Pelo contrário, uma cena bastante emblemática é aquela em que diz que agora como ator, Saadi aceitaria até mesmo fazer um filme para os governantes contra quem antes se rebelava.
O documentário também é eficiente em retratar o incômodo que A Batalha de Argel gerou em seu lançamento. Sobretudo na França, antiga metrópole da Argélia, onde curadores de mostras e cinemas foram ameaçados de morte por simplesmente exibirem o filme. Um debate, que em alguma medida, muito se assemelha à intransigência de casos como os de Aquarius (2016), e mais recentemente, da série O Mecanismo (2018), no Brasil.
E se pequenas expressões ideológicas já afloram tanto as emoções dos cinéfilos, o que não imaginar da política em si. Ainda mais quando, ao final do documentário, alguns testemunhos inesperadíssimos mostram que qualquer um pode se apropriar da mensagem de uma obra e, assim, utilizá-la como melhor convier; mesmo que como um manual para se combater o inimigo.
Infelizmente, são todos trechos curtos que, de outro modo, deveriam ter sido o foco deste filme. Ainda assim, são trechos suficientemente emblemáticos para que comecemos a investigar a relevância de A Batalha de Argel na história. Mesmo que muitos, tanto hoje quanto já na época, vissem o diretor Gillo Pontecorvo como parte de uma esquerda ingênua, mais melosa do que política. Para uma amostra disso, procurem o artigo “Da Abjeção”, de Jacques Rivette, sobre um outro filme de Pontecorvo: Kapò: Uma História do Holocausto (Kapò, 1960). No mais, dificilmente A Batalha de Argel, um Filme Dentro da História valerá mais do que uma citação por parte de seus amados acadêmicos.
Trailer com legendas em inglês:
por Natan Novelli Tu
natunovelli@gmail.com