George Steiner cravou famosamente que o intelectual é aquela pessoa que lê um livro com um lápis na mão. Ele não estava exatamente errado. No entanto, caso tivesse vivido a tempo de ler o Argonautas (Autêntica, 2017), de Maggie Nelson, o filósofo seria convidado a repensar — uma vez que o livro, talvez, só faça sentido total a partir dos garranchos pessoais de cada interlocutor.
Vamos pelo começo. Argonautas discorre em primeira pessoa sobre todo o universo que orbita o relacionamento de Nelson com seu parceiro, o artista Harry Dodge; trata-se de não-ficção, portanto. Ao longo de sete anos, eles se conhecem, se apaixonam um pelo outro, transam muito, casam, se mudam e criam dois filhos. Nada mais banal, certo?
Sim e não. O ponto central dessa história de amor é que se trata de um casal queer, já que Dodge “nasceu mulher”, mas se identifica como sendo de gênero fluido (ou, de maneira mais pragmática, como uma butch que toma testosterona). Isso não é um problema, e sim uma problemática, à qual Nelson se debruça brilhantemente durante cerca de 150 páginas.
A autora alterna histórias pessoais com citações de teóricos dos campos mais diversos: gente das artes, feminismo, psicanálise, estruturalismo e, na esteira de tudo, teoria queer. Essa “autoteoria”, termo que a própria Nelson cunhou, parece a receita certa para uma overdose de autoindulgência e pretensão, mas funciona por uma série de razões estranhas. Primeiro, que todos os autores citados são bons, e falam verdades muito potentes sobre a condição humana; segundo, que a vida da escritora foi tremendamente intensa e singular, de maneira igualmente boa e ruim, o que fez com que ela acumulasse experiências interessantíssimas num tempo razoavelmente curto de vida; e, por fim, ela conseguiu aplicar uma coisa à outra como se não houvesse distância alguma entre vida e teoria, o que torna tudo o que lemos muito mais real.
Nelson — sem frescura, mas sem agressividade — te pega gentilmente pela mão em meio a esse amontoado de discursos e mostra como todos eles vêm de algum lugar, excluindo uma tradição desnecessária de fetiche pela abstração teórica. (História rápida: o pai do escritor israelense Amós Oz, Yehuda Klausner, brincava que um acadêmico que citasse uma só fonte em seu trabalho era um ladrão, enquanto um que citasse 50 era um gênio; sendo assim, pode-se dizer que Maggie é uma ladra genial.)
Não seja pego de surpresa, portanto, se você descobrir coisas novas e surpreendentes sobre si mesmo durante a leitura do texto (ensaio? poema em prosa? autobiografia? quanto mais penso nisso, menos acho a discussão de gênero relevante). Daí vêm os garranchos. As margens e recuos de linha generosos do livro convidam o leitor, lápis ou caneta a postos, a produzir um sentido pessoal imediato para aquilo que lê. Dois anos atrás, quando o livro saiu em primeira mão nos EUA, virou até moda entre os escritores com algum público na internet fotografar e compartilhar suas anotações de Argonautas nas redes sociais. Não é preciso chegar a tanto (ainda mais pela escavação brutal da intimidade emocional à qual você pode se ver imerso), mas tampouco é um movimento sem sentido. O que todo mundo quer é ser compreendido, não?
Retorno ao corpo
Considerando que, hoje, muito da discussão sobre questões queer pareça mais metafísica do que terrena, é uma grata surpresa que boa parte de Argonautas foque em experiências físicas, notadamente em trepar e dar a luz.
“Não estou interessada numa hermenêutica, uma erótica ou uma metafórica do meu ânus. Estou interessada em dar o cu”, Nelson diz, em certo ponto, após argumentar convincentemente que o feminismo atual trabalha em favor do apagamento do “erotismo anal feminino”. Essa frase é maravilhosa. Quantos dos autores que você conhece teriam a coragem de escrever algo parecido?
Trazer tudo de volta ao corpo funciona em vários sentidos, desde produzir identificação no leitor a mostrar o quão ridículo é implicar com os corpos dos outros: Nelson expõe criticamente, em dado momento, uma passagem na qual o sociólogo hype Slavoj Žižek argumenta que as pessoas trans estariam fadadas a ter um “gozo idiota” (masturbação), em detrito do “verdadeiro amor” (sexo hétero). É como se a própria tônica do livro o refutasse, dizendo: é só um corpo, Žižek.
A discussão vai além disso. Há um belo momento no qual ambos os corpos do casal estão passando por transformações profundas: enquanto os órgãos internos de Nelson se rearranjam para dar lugar a um bebê, Harry remove as mamas cirurgicamente e desenvolve todos os marcadores físicos decorrentes do tratamento hormonal. Mais tarde, o livro converge simultaneamente para o nascimento do filho do casal, descrito com toda a riqueza incômoda de detalhes, e para a morte da mãe de Harry — dois episódios distantes cinco anos no tempo, mas que se aproximam ao narrar extremos. É só um corpo, mas também é tudo isso.
Rodapés
A tradução primorosa de Rogério Bettoni merece nota. Ele, que também organizou a coleção da qual Argonautas faz parte, conseguiu a proeza de naturalizar no português palavras distintamente anglófonas, advindas em peso do glossário LGBT.
Bettoni ainda faz questão de explicar algumas figuras-chave da cultura americana nos rodapés, mas sem nunca subestimar a inteligência do leitor. É uma atitude rara, e justamente por isso, muitíssimo bem-vinda.
Por Laura Castanho
laura.castanho.c@gmail.com
Maravilhoso! Essa parte do livro sobre dar o cu me lembra muito o Manifesto Contrassexual de Paul Preciado