Charlie Kaufman, roteirista famoso por filmes sobre a consciência e a condição humana, como Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004) e Quero ser John Malkovich (Being John Malkovich, 1999) impacta a audiência novamente com Estou Pensando em Acabar com Tudo (I’m Thinking of Ending Things, 2020), lançado pela Netflix na última sexta-feira (04).
Dessa vez ocupando o papel também de diretor, Kaufman guia o telespectador por uma viagem de casal, interpretado pelos atores Jessie Buckley e Jesse Plemons. A namorada, apesar de incerta sobre o relacionamento, está indo conhecer os pais do namorado, durante uma forte nevasca.
Já de início, a atmosfera estabelecida é perturbadora – o que só vai se agravando ao longo do filme. Algumas mudanças acontecem: de início, quase imperceptíveis, como quando em uma cena um personagem está com uma roupa e, na cena seguinte, já está com outra, mesmo não tendo passado muito tempo. Depois, ficam mais explícitas: a história de como o casal se conheceu, por exemplo, muda várias vezes ao longo da trama, assim como o nome e a profissão da namorada. Com isso, cresce uma desconfiança no telespectador, que é necessária para que ele questione o que de fato está acontecendo no filme.
O trailer de Estou Pensando em Acabar com Tudo vende um suspense psicológico sobre uma mulher que encontra sogros perturbadores (Toni Collette e David Thewlis). Apesar de também ser isso, o filme tem muitas camadas e parece que vai mudando de foco ao longo da trama. A audiência tem que assumir um papel ativo – Kaufman não entrega o desfecho sem um esforço por parte do espectador.
Em certo momento, a namorada diz que é difícil saber onde você termina e outra pessoa começa. No filme, isso é retratado pela convergência entre a personalidade dela e a de Jake, o namorado. A obra, que usa a técnica convencional de narração para mostrar o que os personagens estão pensando, tem o monólogo interior da namorada como o fio condutor da história.
Desde o início, ela pensa: “estou pensando em acabar com tudo”, referindo-se ao relacionamento, e ele parece escutá-la. Em outro momento, a namorada vê uma foto de uma criança na casa dos sogros e pensa que é ela própria, mas Jake afirma que, na realidade, é ele.
Além de diálogos intensos e de cenas de suspense que são garantias de deixar a audiência presa à tela, a atuação dos protagonistas também é estrelar. Especialmente, a de Toni Collette, que interpreta a mãe, já tendo provado seu talento para terror psicológico em Hereditário (Hereditary, 2018).
Estou Pensando em Acabar com Tudo não é um filme fácil e nem agradará a todos, porém deve ter seu mérito reconhecido. Tanto a trilha sonora quanto a fotografia são muito bem construídas e transmitem a aura que o filme quer passar, a sensação de que algo está fora do lugar. Além disso, a película utiliza diferentes manifestações artísticas, criando uma obra excêntrica e original, com cenas de dança, música e até animações, que ajudam na consolidação do filme como uma viagem psíquica, prometida na sinopse dada pela Netflix.
A história não trata de um episódio específico – um jantar com sogros bizarros -, mas de toda uma vida. De como as experiências moldam os personagens e das expectativas, tanto as que eles têm sobre si mesmos, quanto as dos outros. Aborda também o que é criado pelo subconsciente de cada um ao lidar com traumas. O longa é surreal e poético, podendo trazer uma identificação por parte da audiência. Como a namorada fala durante a cena da viagem de carro, o propósito da poesia é uma universalidade no específico, no interior de cada um.
Para apreciar o filme, o espectador tem que ir com a mente aberta: questões como a cronologia do tempo são postas em cheque, e lacunas restarão a serem preenchidas até mesmo quando os créditos começarem a rolar. Contudo, Estou Pensando em Acabar com Tudo é uma experiência válida para os que gostam de resolver quebra-cabeças – mesmo que algumas peças estejam faltando.
O longa já está disponível na Netflix. Confira o trailer:
*Capa: [Imagem: Divulgação/Netflix]